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Opinião

O que a divisão do Chipre nos ensina sobre pessoa trans e nossa identidade?

Acabo de sair de Chipre onde participei de um congresso de filosofia e psicanálise que tinha por tema as fronteiras e bordas. O tema foi escolhido de acordo com o país-sede, uma vez que o território da ilha compreende a nação cipriota e a curiosa República Turca do Chipre do Norte, formado em 1974, quando os turcos invadiram a parte setentrional do país.

Enquanto a parte oeste é um país-membro da União Europeia, a parte leste é reconhecida apenas por um outro pais, vejam só, a própria Turquia.

Entre os dois países existe uma faixa intermediária, que passa bem no meio da capital Nicósia, cidade dividida onde, para se ir de um país para outro, é preciso apresentar passaporte, como na antiga Berlim Ocidental/Oriental.

Famagusta, um polo turístico com mais de 40 mil habitantes tornou-se uma cidade-fantasma, com seus prédios e discotecas dos anos 1960 ocupadas por cães e gatos, além das tropas de vigilância da ONU, que administra a "terra de ninguém" criada pela separação litigiosa.

A situação é um monumento à intolerância e inépcia diplomática, com a minoria turca vivendo em um Estado, que é basicamente uma invasão militar sobre o outro.

O povo se adaptou a tal situação, resistindo a reconhecer o "outro lado".

Atravessar "para o outro lado" não é impossível. Em tese, toma apenas algumas dificuldades burocráticas e um custo adicional pelo seguro do carro, mas as pessoas, em regra, se recusam a transitar assim. Visitam parentes, mas sempre a contragosto. Com várias das pessoas com quem falei, isso aconteceu um número contável e marcante de vezes.

A resistência popular e espontânea consiste simplesmente em recusar-se a admitir a existência do outro.

Um dos artifícios mais interessantes para conviver com este outro lado, sem admitir sua existência, é acrescentar um sufixo "shura" a todas as coisas, pessoas e conceitos que se refiram ao lado turco. Desta forma, você pode tomar um refrigerante "shura", vendido por uma empresa "shura", pagando em dinheiro "shura".

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Como nossos indígenas Yawalapiti, eles usam este sufixo para designar algo que não é inteiramente existente, verdadeiro, real ou simplesmente "nosso". É mais ou menos como algo "fake", "imitado" ou "inautêntico".

Para quem estiver se perguntando o que isso tem que ver com psicanálise, considere a importância do déficit de reconhecimento, o sentimento de impostura e inadequação que toma conta crescentemente de nós, instaurando uma experiência de sofrimento generalizada ligada ao despertencimento.

Não é só que todos nós temos uma parte estrangeira, que Freud chamava de unheimlich, justamente porque sem ela não conseguimos penar direito o conceito de familiaridade. Trata-se justamente de como tratamos este estrangeiro que nos habita.

Alguns criam fronteiras rígidas, envolvendo custos psíquicos semelhantes aos das equipes inglesas, argentinas ou eslovacas que integram a vigilância da ONU na faixa intermediária.

Outros criam cidades desérticas dentro de si mesmos, às vezes habitadas por bichos, mais estranhos do que cães e gatos.

Outros ainda passam a vida com ódio e medo do "outro lado", de si mesmos.

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Podemos pensar que este "outro lado" é o lado do nosso vizinho, tão parecido e tão diferente de nós, que Freud descreveu esta briga permanente entre cães e gatos, dando como exemplo a desavença histórica entre portugueses e espanhóis —que se parecem tanto e que dividem seu destino de desavenças— com a expressão "narcisismo das pequenas diferenças".

Mas nem toda diferença é pequena. Existe em nós as diferenças flutuantes, aquelas sobre as quais podemos criar um "solo comum".

Existem ainda as diferenças menos fortes que no fundo são apenas diversidades, que tem um "solo comum", que não está sendo reconhecido.

Para o segundo caso, cabe a fórmula de que um "fator comum negado e posto sob segredo subitamente vem à luz" em oposição ao primeiro, onde temos uma passagem irredutível, cujo bom exemplo é sempre discutível: seria ele o caso da oposição entre vida e morte, tida por irreversível e inconciliável, ou seria mais o caso da oposição entre humanos e inumanos, para o qual podemos conjecturar a existência futura ou passada de tipos intermediários, sejam eles primatas ou futuros seres híbridos, criados pela tecnologia genética.

Neste ponto alguém dirá que a tecnologia genética poderá tornar a finitude da vida uma situação contingente, pois aqueles que podem ter acesso a esta nova tecnologia do prolongamento indefinido da existência se opõem àqueles que ainda não podem, mas virtualmente poderiam.

Percebe-se assim que as discussões sobre o estatuto de nossa diferença ao outro se aplicam direta e reflexivamente ao estatuto de nossa relação a si. Inclusive, e no limite, a negação da existência de um Outro que "fala em nós", mais além de nossa "língua dominante", constitui um exemplo prático de como nossa relação com o inconsciente não envolve apenas uma discussão epistemológica sobre seu estatuto de existência e cognoscência, mas um estatuto ético sobre como lidamos com nosso "lado de lá".

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Isso pode ajudar a responder uma pergunta frequente em torno de por que nos preocupamos tanto com a experiência transexual, ainda que ela represente uma parte pequena da população.

A resposta é que mesmo que a questão trans afete radicalmente aqueles que têm a experiência radical de estar em uma identidade para a qual o corpo não lhe corresponde, ela tornou-se uma espécie de paradigma deste sofrimento que cresce em todos nós, ao qual me referi como inadequação, impostura ou impropriedade.

Percebemos agora que o deslizamento dos termos não é desprovido de sentido, pois cada um deles aponta para um entendimento diferente do que é a diferença.

Para alguns, afirmar que a diferença de gênero não é uma diferença irreversível, negociável ou essencial ofende sua política de identidade.

Ou seja, se admitimos que é possível literalmente "passar para o outro lado", de acordo com a definição linguística da partícula "trans", e, em oposição a partícula "cis", que se refere "a ficar do mesmo lado", isso pode acontecer virtualmente "com qualquer pessoa".

Sim. E este é ponto no qual a questão trans afeta a todos nós. Não porque sejam todos nós necessariamente dispostos a "passar para o outro lado", mas que essa diferença seja justamente não necessária nem impossível. Ora, o que não é necessário nem é impossível, mas" ainda assim é", corresponde a definição aristotélica do gênero lógico da contingência. Esta contingência "trans" é justamente universal e não patológica.

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Saindo de Chipre, passei dois dias em Malta, antes de lançar nosso livro sobre "Neoliberalismo como Gestão do Sofrimento", agora pela editora Daruê, em Portugal, junto com meus amigos Vladimir Safatle e Nelson da Silva Jr.

Malta, pode-se dizer, é uma espécie de Chipre invertido. Dominada por cartaginenses africanos e depois pelo Império Romano (olha ele aí!), fez parte do reino das duas Sicílias (Itália), do império Espanhol e Otomano. Foi invadida por Napoleão e Hitler, tendo ficado sob protetorado britânico até 1964.

Ali, bem no meio do mar Mediterrâneo, reuniu-se, por volta do ano 1100, a mítica ordem dos cavaleiros templários, fundada pelo cavaleiro Saint John, (aquele que aparece naquele filme do Indiana Jones). Retirados da Ilha de Rodes, os templários eram um grupo de elite "transnacional", responsável por proteger a cristandade durante as cruzadas. Seu marco é a exuberante Co-Catedral, dedicada às oito línguas, sob os auspícios da Ordem dos Cavaleiros de São João do Hospital.

O maltês é uma língua derivada do árabe e sua hibridização com latim, auvergne, baixo-alemão, provençal, inglês e espanhol é um exemplo de como as diferenças linguísticas, que parecem as mais intransponíveis, podem ser superadas pelo tempo e pela convivência.

Na prática, é uma experiência de suspensão dos limites e bordas, por incorporação das diferenças.

Malta é o país com maior densidade demográfica da Europa, com cidades encravadas em encostas massivas de pedra polida e rocha.

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Sim, toda polifonia tem limites, mas assim como a experiência trans pode ser rara na prática, mas universal na essência, a hibridização pode ser comum na prática, mas incompleta em sua universalidade.

Chipre representa uma solução por divisão entre Um e Outro.

Malta recria a estratégia da incorporação, por meio da qual o Outro é incorporado ao Um.

Ora, nosso problema cultural, acentuado pela emergência desta nova forma de império digital, feito de línguas e de tempo, que hoje se confronta com os antigos impérios geográficos, feitos de território e nações, demanda uma terceira forma de política, nem divisão, nem incorporação (com ou sem fragmentação dissociativa), mas excorporação.

Ou seja, busca ativa do Outro, para admitir sua existência contingente e para lidar melhor com nossa própria contingência de identidade.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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