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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'A voz do povo é a voz de Deus': por que opinião pública é uma anticiência?

O mito de que o senso comum possui alguma razão nada mais é do que um mito - rawpixel.com/ Freepik
O mito de que o senso comum possui alguma razão nada mais é do que um mito Imagem: rawpixel.com/ Freepik

31/05/2023 04h00

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Muitos ignoram que o grande epistemólogo e teórico da ciência Karl Popper manteve uma colaboração continuada com os teóricos seminais do neoliberalismo.

Além de colaborar com Von Mises e Hayeck, líderes da escola austríaca de economia, depois desdobrada no programa capitaneado por Milton Friedman, na Universidade de Chicago, Popper frequentou o principal ponto de encontro deste movimento teórico, a Sociedade de Mont Pelerin, antes mesmo de sua aplicação prática no Chile de Pinochet, em 1973.

Em uma das reuniões, ocorrida em 1955, ele legou teses muito claras de como deveríamos levar em conta a opinião pública, seguindo uma linhagem estritamente liberal de tratamento do problema.

Tais teses encontram um novo contexto e convidam a uma reavaliação criteriosa, principalmente se temos em mente as novas discussões sobre inteligência artificial e a PL das Fake News que em tese regularia certos aspectos da expressão da "opinião pública".

Devemos levar em conta, além disso, de que Popper, ao longo deste arco histórico que vai de 1955 a 2023, consagrou-se como um inspirador genérico do modelo de ciência que praticamos hoje em dia e tem subsidiado muitas discussões sobre o estatuto das pseudociências, das não ciências e em última instância das regras que devemos admitir para considerar uma teoria, uma argumentação e até mesmo uma apresentação de fatos, como parte da ciência.

Lembremos que um dos pontos de partida de Popper é uma demarcação clara entre ciência e metafísica e que, por metafísica, ele considerava não apenas a religião e as artes, mas boa parte da filosofia ela mesma.

Popper argumenta que nos acostumamos a atribuir à voz anônima das massas uma certa autoridade, expressa pelo ditado "a voz do povo é a voz de Deus".

O mito de que o senso comum possui alguma razão nada mais é do que um mito, esta figura-chave da anticiência.

A opinião de pessoas diversas em ruas diversas é tão verdadeira ou tão falsa como a de homens importantes em uma sala de reunião.

Ora, isso acontece porque muitas vezes "homens importantes" foram eleitos para cargos políticos pela mesma opinião pública e, portanto, porque a lógica que comanda sua escolha não é a lógica da pesquisa científica, logo só pode ser derivada da metafísica.

Para surpresa geral, neste contexto vemos um dos critérios mais consagrados para a estipulação da ciência aparecer atribuído ao senso comum, ou seja: a evidência.

Uma forma do mito - ou possivelmente da filosofia que há por trás do mito que me parece de importância especial é a doutrina de que a verdade é evidente. Segundo esta concepção, embora o erro precise ser explicitado (por falta de boa vontade ou por causa do preconceito), a verdade sempre se fará conhecer, desde que não seja suprimida artificialmente. [1]

Segundo este otimismo racionalista, se todos reconhecem a verdade em algum lugar na voz do povo, na voz do boato e principalmente quando ele parece formar uma unanimidade haveria um "grão de verdade".

A teoria de Rousseau da vontade geral, a astúcia da razão de Hegel e o materialismo histórico de Marx seriam derivados desta crença equivocada de que "o povo não pode errar" [2].

Resulta desta leitura bastante parcial de Popper sobre esta outra tradição, assim chamada "não liberal", que o Estado é perigoso e deve ser reduzido porque ele seria a expressão desta vontade popular.

Contra Max Weber e a maior parte dos teóricos que definem a modernidade pela tendência à racionalização institucional da vida, e entendem o Estado como expressão desta racionalidade, Popper, argumenta que a opinião pública e a vontade geral, mas não o consumo e o mercado, estão mais guiados pelas paixões que pela razão.

Ainda que esta linhagem "podre" da filosofia e da economia, se façam acompanhar de modalidades "suspeitas" de psicologia, o argumento contra elas é de que estas estariam ignorando que "a opinião pública é uma modalidade irresponsável de poder" [3] e o melhor exemplo disso seriam os "problemas raciais".

Como se a opinião pública jamais pudesse ser antirracista.

Como se a democracia não passasse de um processo formal no interior do qual "cidadãos podem agir de modo mais ou menos organizado e coerente" [4] a ponto de, do ponto de vista do conteúdo, devermos ser "tolerantes com a intolerância".

Para Popper, o Estado é um mal necessário, uma de suas funções é garantir a liberdade de pensamento e expressão no quadro da tensão entre instituições e tradições.

Mas surpreendentemente não é o Estado que deve proteger uma série de valores que não podem ser, eles mesmos, decididos pela ciência:

  • Discussão orientada pela crítica,
  • Valorização da diversidade de ponto de vista envolvidos,
  • Desenvolvimento do sentido de justiça e
  • Disposição conciliatória.

A tensão entre opinião pública institucionalizada (partidos, universidades, editorias, imprensa e sistema das artes) e opinião pública informal (comunidades de crença, conversação cotidiana e "características de certas raças ou grupos" [5]) não deve ser objeto de administração do Estado, mas da "forte tradição liberal".

Mas ele não nos dá nenhuma pista de como esta tradição liberal seria suficiente para enfrentar os problemas que ele mesmo levanta e que se reapresentam hoje no contexto do marco regulatório da internet, a saber:

  1. A maior parte dos argumentos contra a censura baseiam-se na existência de uma tradição de "autocensura", como se o senso comum estivesse a dizer: "não queremos limitações do Estado ou das instituições, uma vez que nós já temos nossas próprias censuras" [tradicionais].
  2. Os monopólios editoriais e de mídia não seriam por si só agentes de censura, normalizadas?
  3. O problema do gosto (uniformização) e da crueldade (instrumentalizada) não seriam versões do uso público da violência?

Se a opinião pública representa um perigo para a liberdade "se não for moderada por uma forte tradição liberal. [Se ela] É perigosa também como árbitro dos gostos e inaceitável como árbitro da verdade" [6], como esta mesma tradição liberal, que seria seu contrapeso moderador, poderia funcionar senão ele mesmo como uma parte da opinião pública?

A produção acumulada de evidências nesta matéria nos é fornecida pelos métodos das big techs.

Ou seja, a mesma "tradição liberal" da livre discussão, que elas encarnam e defendem, apoiada no neoliberalismo que as tornou possível, pode operar monetizando o ódio, premiando a irresponsabilidade da palavra, impulsionando opressão de gosto e crueldade, além de criar defesas institucionais de autoproteção e monopolização da censura como autocensura.

O paradoxo pode ser evidenciado pela compra do Twitter por Elon Musk. Em nome da "forte tradição liberal", para garantir a democracia e a liberdade de expressão, a "forte tradição liberal" cria para si mesma o privilégio e a prerrogativa de autolimitar-se.

Tudo isso porque a opinião pública é apenas mais um capítulo da metafísica, irracional, que não se deixa guiar pela ciência como "modalidade irresponsável de poder".

Como se fosse impossível individualizar e responsabilizar esta forma de poder e como se fosse inadequado limitá-lo como expressão do excesso de força da "tradição liberal".

Como se a banda podre das tradições nada tivesse a dizer sobre os descaminhos da opinião pública, sob a qual ela teria estabelecido sua irracionalidade de partida.

REFERÊNCIAS

[1] Popper, K. (1955) A Opinião Pública e os Princípios Liberais. In Popper, K. (1963) Conjecturas e Refutações. Brasília: UNB, p. 380.

[2] Ibidem.

[3] Idem: 381.

[4] Idem: 382.

[5] Idem: 385.

[6] Idem: 386.