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OPINIÃO

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NFT: valor de obras de arte digital não envolve apenas o lado financeiro

Estes gatinhos são NFTs desenvolvidos com a tecnologia blockchain e fazem parte do catálogo da CryptoKitties - Reprodução/ CryptoKitties
Estes gatinhos são NFTs desenvolvidos com a tecnologia blockchain e fazem parte do catálogo da CryptoKitties Imagem: Reprodução/ CryptoKitties

11/02/2022 04h00

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Token não fungível (Non Fungible Token ou NFT) são certificados negociáveis de objetos únicos, ou seja, uma obra de arte, uma antiguidade e até mesmo um tuíte podem ser registrados por meio deste sistema.

Em 2014 Anil Dash e McCoy criaram o primeiro NFT no blockchain chamado Namecoin, para registrar um videoclipe que sua esposa fez [1]. De lá para cá desenvolveu-se um mercado de compra e venda de objetos deste tipo, envolvendo diferentes encriptações.

Empregou-se a tecnologia blockchain para captar memorabilias de jogos de videogame, pelo padrão ERC-721 (CryptoKitties) ou pelo padrão ERC-1155.

A arte criada a partir da defesa do goleiro Victor, frente ao Tijuana na Libertadores da América, tornou-se um NFT. A escola de samba Império Serrano comercializa NTFs. Justin Bieber, Vini Jr. e Neymar pagaram alguns milhões de dólares para comprar vários NFTs.

Vários personagens únicos foram vendidos na plataforma Ethereum alcançando valores acima de US$ 900 mil. Existe até mesmo uma coleção de gatinhos colecionáveis (CryptoKitties) negociadas ao preço de mercado [2].

Como uma espécie de título negociável, os NFTs comunicam-se com o mercado real da arte e dos objetos específicos, como, por exemplo, na recente aquisição milionária do material ligado aos Beatles.

Uma obra de Bansky pode ser dividida por centenas ou milhares de proprietários.

Plataformas de comercialização destes criptoitens, como a OpenSea, podem ser invadidas, "derrubadas" ou manipuladas como qualquer outra bolsa de negociáveis.

A chegada desta nova paratecnologia, compatível com a instalação da linguagem digital no âmbito da cultura e das mediações sociais, encontra-se na fronteira desta nova forma de vida. Admitindo-se que o mundo digital caracteriza-se pela reprodutibilidade e pelo achatamento do preço dos produtos, especialmente aqueles que podem ser rapidamente reduzidos ao modo de "dados estruturados".

Em seu artigo clássico "A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica" [3], Walter Benjamin perguntava-se pelo impacto da reprodutibilidade, trazida pela linguagem da fotografia e do cinema, na emergência dos fascismos dos anos 1930. Poderíamos pensar em um análogo deste processo para pensar a reemergência dos neofascismos dos anos 2010-2020.

Ora, a reprodutibilidade não é exatamente o problema fundamental da arte digitalizável, porque de certa forma a arte sempre esteve ligada a práticas de reprodução.

A prensa, a xilogravura, a litogravura, a audiogravação e a fotografia são apenas extensões dos antigos ateliers e oficinas onde se aprendia a repetir padrões de um mestre ou a reconhecer a demanda típica de certas imagens como o retrato, a natureza morta, a natureza e os temas bíblicos ou mitológicos.

O que captura nossa atração moderna pela arte é a existência única do objeto, definida por três critérios fundamentais: autenticidade, originalidade e resistência a substituição.

Um objeto é autêntico conforme ele seja mais e mais idêntico a sim mesmo. Para isso reservamos o radical latino "idem", de onde vem identidade e identificação.

Temos aqui um problema porque em um universo onde tudo pode ser comparado com outra coisa de modo a estabelecer um preço, ganha cada vez mais valor aquilo cujo valor não depende apenas da possibilidade de ser comparado com outros, mas de ser comparado consigo mesmo.

Na arte moderna, a pesquisa sobre esta propriedade derivou das práticas de deformação deste objeto (como no cubismo, no futurismo e no fauvismo).

Na arte contemporânea, esse problema vai sendo tratado pela referência àquilo que torna aquela obra, uma obra, ou seja, seu autor. Assim também subjetividades podem se compor pela procura desta autorreferência e emergem cada vez mais em um cenário de luta por reconhecimento, baseada na autoria de suas vidas e na prerrogativa de contá-las.

Por exemplo:

A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até seu testemunho histórico." [4]

Aqui temos uma primeira contradição, como reconhecer a identidade e ao mesmo tempo reconhecer sua propriedade fundamental que é a autotransformação? Como reconhecer-se autêntico e perceber que esta autenticidade se tornará postiça e artificial amanhã ou depois de amanhã?

Aqui o fenômeno das NFT nos dá uma pista sobre a renovação das estratégias de reconhecimento. Não se trata mais das propriedades do objeto (arte clássica), nem das características do seu autor (arte moderna), mas dos traços de estilo que reúnem os compradores ou consumidores daquele objeto.

Por exemplo, hoje se você quiser adquirir certas obras de arte não basta que você tenha dinheiro, a exceção dos leilões abertos, é preciso que você mostre que é uma pessoa à altura de possuir um Modigliani ou um Cézanne. Isso enfurece muitas pessoas que sentem que jamais poderão fazer parte deste clube, o tão cobiçado clube dos autênticos, que se definem por uma única propriedade fundamental: o acesso restrito e exclusivo.

Ou seja, transportamos traços do objeto para traços que definem pessoas. De fato há uma inquietação crescente com esta perspectiva de "ser definido" por algo ou alguém e este mal-estar tem razão de ser porque algoritmos, redes sociais e linguagem digital fazem isso de forma inexorável. Elas até nos ensinam a fazer isso com nós mesmos: quer brincar? Escolha seu personagem.

A segunda propriedade fundamental da obra de arte é a sua originalidade.

Geralmente associamos esta noção com a ideia de primeiridade, de nascimento ou de invenção. Na verdade, a originalidade não tem que ver com isso, mas com o enquadre e as circunstâncias nas quais o objeto é produzido ou percebido.

Pensemos na origem de uma pessoa, em geral, elas são todas iguais dentro de um recipiente envoltos em líquido amniótico, sujeito a sons estranhos. Mas não é isso que nos confere originalidade, mas o nome que recebemos, a família e a cultura onde nosso nascimento "aconteceu" e foi interpretado. É o que Benjamin chama de aura da obra de arte:

É uma figura singular, composta por elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja." [5]

Na arte moderna são as estratégias de decomposição do objeto aos seus traços fundamentais, como no geometrismo, no abstracionismo e no concretismo. Na arte contemporânea, esse sentimento de distância incide preferencialmente sobre momentos que não serão resgatados novamente: os ursinhos ou gatinhos de nossa infância, que por meio da NFT tornam-se nossos ursinhos, bonecas ou gatinhos, únicos.

Aliás, nossa infância cuja aura é o que queremos preservar, assim como aquele momento emocionante de uma grande defesa no futebol ou aquele instante, que jamais voltará em que alguém se torna bem sucedido, um herói ou uma pessoa famosa, tal como Kurt Cobain descreveu em sua carta de suicídio.

Há uma versão subjetiva deste traço da arte, que ampara-se na mesma condição que os latinos chamavam de ipsos, ou seja, o fato de que não é só a sua identidade que te define, ou seja, sua permanência no tempo, com ou contra a sua vontade, mas também seu traço ignorado por você mesmo, que te dá uma espécie de estilo não como um atributo, uma posse ou uma propriedade, mas como um modo específico de perda, de desfazimento de si ou de dissolução de si.

É aquele momento no qual intuímos quem é aquela pessoa pela forma como ela lida com sua própria loucura, com os seus erros, ou seja, com o que lhe falta, não com o que ela tem.

Finalmente, o caráter insubstituível, ou também chamado de infungível na NFT, nos remete ao que pode ser trocado, por algo ou alguém, da mesma espécie, qualidade, quantidade e valor.

Por exemplo, posso trocar a visita ao Rijksmuseum de Amsterdã por uma visita on-line guiada, onde provavelmente eu aprenderei muito mais do que arfando pelos seus infinitos corredores, cheios de diferenças que eu não consigo perceber como diferenças significativas.

Posso troca trocar uma visita ao MoMA, por uma visita à lojinha do MoMA onde se poderá levar para casa cópias das principais obras.

Posso ver as principais obras reproduzidas em uma imagem de papel, naquele livro da exposição que eu adquiro para determinada experiência. Aliás minha experiência que já está dividida entre ler a pequena legenda que data e me dá a autoria da obra, ou olhar para ela valorizando meu próprio olhar e a minha própria atribuição de sentido para aquela imagem.

Ou seja, aqui estamos às voltas com outra propriedade subjetiva das coisas: a mesmidade (sameness).

Ora, só se pode ser o mesmo dentro de uma série. Talvez a mesmidade seja a extração do padrão mínimo de repetição dentro desta série, como queria uma tendência de arte, representada por Donald Jud (nas artes plásticas) ou John Cage (na música) depois reformatada em estilo de vida chamado minimalismo.

Contudo, o elemento mínimo de qualquer série é o espaço vazio, por exemplo, o silêncio entre notas musicais ou a distância entre palavras e linhas na literatura.

Os certificados da NFT parecem ter absorvido e reformulado esta problemática quando se dirige preferencialmente não a arte dita de primeira linha, mas os chamados itens colecionáveis.

Antigamente era possível colecionar picassos ou braques, mas lentamente as coleções de famílias foram sendo assimiladas por museus ou instituições culturais, onde hoje nós praticamos nossos rituais, de forma mais ou menos periódica, mas:

Á medida que as obras de arte se emancipam de seu uso ritual, aumentam as ocasiões para que elas sejam expostas." [6]

Aqui entra em jogo o fato de que o valor de troca tem um inimigo natural que é o vazio e a ausência. Talvez isso explique por que muitos dizem que a NFT tem uma estrutura de pirâmide onde o valor dos objetos se multiplica apenas e tão somente porque ele está sendo consumido por determinado tipo de gente.

Gente, cuja característica maior é que podem perder milhões em dinheiro, sem que isso destrua suas vidas, ao contrário de nós outros mortais.

Arte efêmera, arte que não pode ser reproduzida, nem exibida, sem a autêntica e declarada vontade de seu possuidor. Arte que pode ser destruída como determinante de seu valor intrínseco, assim como seu valor de mercado pode se desintegrar caso descubramos algum motivo para cancelá-la, ou caso um de seus possuidores decida que é hora de mudar.

Há um paralelo deste problema na história da arte. Trata-se da hoje conhecida obra de Leonardo da Vinci "La Gioconda" ou "Mona Lisa", que era uma obra menor (no duplo sentido), depositada num canto do Louvre até ser roubada em 1911 e recuperada em 1913. Durante este intervalo pudemos contemplar seu lugar "vazio", numa das paredes do museu.

Sua história emocionante, de como ela fora trazida pelo mestre florentino para Paris durante seus últimos dias de vida, como ela representava tudo o que de melhor havia sido feito por este grande gênio do renascimento. Tudo isso só veio a público quando ela foi sequestrada e tivemos que fazer o luto por sua perda.

Ou seja, somos insubstituíveis, como obras de arte, mas só depois que morremos, aspecto do qual a NFT ainda não conseguiu precificar exatamente e para o qual nem todo artista ou consumidor de arte está realmente preparado.

REFERÊNCIAS

[1] Dash, Anil (2 de abril de 2021). "NFTs Weren't Supposed to End Like This". The Atlantic (em inglês). Consultado em 29 de agosto de 2021

[2] "CryptoKitties raises $12M from Andreessen Horowitz and Union Square Ventures". TechCrunch (em inglês). Consultado em 29 de agosto de 2021

[3] Benjamin, W. (1936) A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In Walter Benjamin Obras Selecionadas. São Paulo: Brasiliense, 1988

[4] Idem: 168.

[5] Idem: 170.

[6] Idem: 172.