Roberto Sadovski

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Opinião

'Zona de Interesse' mostra com precisão o preço da banalização do mal

"Zona de Interesse" é um filme de terror. Não há outra forma de descrever uma história que ousa emparelhar o idílio de uma vida absolutamente corriqueira com o horror de uma das maiores barbáries da história. Ao nublar a linha entre os extremos, o diretor britânico Jonathan Glazer mostra de forma precisa nossa capacidade em banalizar o mal.

Esse traço dantesco da humanidade é representado na rotina do casal Hedwig e Rudolf Höss. Ela é uma dona de casa preocupada em podar seu jardim e levar seus filhos para nadar no lago adjacente à sua casa. Ele, por sua vez, é o comandante de Auschwitz, campo de concentração onde milhares de judeus foram exterminados ao longo da Segunda Guerra Mundial.

O fato de a residência Höss estar emparedada com os muros de Auschwitz amplifica o sentimento sombrio traçado pela lente de Glazer. Nada abala a rotina da família, nem a espessa fumaça que sobe das chaminés dos fornos crematórios, nem os gritos de desespero e o som de tiros que sublinham o horror nazista. A indiferença de todos ante a brutalidade faz da experiência ainda mais desoladora.

Ao adaptar o livro lançado em 2014 por Martin Amis, Jonathan Glazer removeu personagens e linhas narrativas para se concentrar na ambientação macabra. O diretor nunca é explícito ao retratar os horrores do holocausto — nunca somos colocados dentro do campo, nunca testemunhamos o horror sugerido.

Como resultado, cada movimento de seus protagonistas amplifica sua amoralidade. Em um trabalho brilhante, Christian Friedel faz de Rudolf Höss um homem ambicioso, preocupado em desenvolver maneiras mais eficazes em conduzir seu trabalho — em um momento celebratório em Berlim, ele imagina como seria a melhor maneira de sufocar com gás uma sala cheia de seus compatriotas.

A insensibilidade é ainda mais aguda em Hedwig — mais uma interpretação monumental de Sandra Hüller, ainda em cartaz com "Anatomia de Uma Queda". Seu grande dilema é convencer o marido a permanecer com a família em seu paraíso particular, mesmo quando ele ganha novas funções dentro do partido em outra cidade. Sentimos as fissuras no relacionamento. É o máximo de humanidade oferecido pelas pessoas que habitam "Zona de Interesse".

Sandra Hüller em 'Zona de Interesse'
Sandra Hüller em 'Zona de Interesse' Imagem: Diamond
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A insistência na rotina de um casal em busca de manter seus privilégios, sem nem por um segundo reconhecer o horror absoluto do outro lado do muro, alimenta nossa própria apatia. Somos tragados para seus dilemas mundanos, esquecendo momentaneamente o cerne histórico. E foi aí que o filme me perdeu. Despertar essa indiferença é certamente parte da visão artística de Glazer, o desconforto é intencional. Mas a certa altura eu só queria que aquela página fosse virada.

O que é testamento do poder de "Zona de Interesse" como obra artística. Não existe catarse — ela viria, imagino, com o próprio fim da guerra e o desmantelamento dos campos de extermínio. O que Glazer consegue com seu feito cinematográfico — diga-se, tecnicamente perfeito — é transmitir o enfado intrínseco à rotina de pessoas completamente indiferentes ao horror.

Não é exatamente uma prerrogativa da ficção. "Zona de Interesse" é, especialmente em nosso momento histórico, a lembrança incômoda de nossa capacidade em banalizar o mal. É o que acontece quando um país soberano extermina um povo vizinho, e o termo "genocídio" é substituído por "crise humanitária severa". O mal se torna questão de semântica. Mesmo que ele ocorra, brutalmente e com a certeza de impunidade, do outro lado do muro.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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