Roberto Sadovski

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Opinião

Nem o gato salva 'Argylle - O Superespião' do completo desastre

Sempre que possível é bom fugir dos clichês, mas às vezes é inevitável. Então, vamos lá: "Argylle - O Superespião" parece ter sido escrito por algum programa de inteligência artificial. Com todo respeito ao roteirista Jason Fuchs, mas somente uma máquina seria capaz de amarrar tantas ideias surrupiadas de outros filmes e, no processo, entregar um produto desprovido de charme, personalidade e — o principal! — humanidade.

"Argylle" é uma comédia de ação travestida de filme de espionagem. Ao mesmo tempo, flerta com a metalinguagem ao colocar realidade e ficção em rota de colisão. Ah, também é uma história de amor interrompido, um thriller sobre perda de identidade e, para coroar a lista do "manual do blockbuster moderno", se posiciona como parte de (mais um) universo compartilhado. "Argylle" quer fazer o bolo, sentar à mesa e comer, tudo ao mesmo tempo.

E pensar que o diretor Matthew Vaughn já foi, em sua relativamente curta carreira cinematográfica, sinônimo de ideias espertas e execução dinâmica. Hoje, o responsável por pérolas pop como "Kick-Ass", "X-Men: Primeira Classe" e "Kingsman: Serviço Secreto" vive em repetir seus próprios cacoetes. Seu último trabalho, "King's Man - A Origem" parecia assinado por um imitador, uma sombra pálida de um artista promissor.

"Argylle", uma maçaroca de ideias que nunca se encaixam, não contribui para melhorar essa imagem. O conceito que dispara a aventura logo se esvazia, e mesmo assim ele é esticado e remendado ao longo de intermináveis 139 minutos. Quando o filme finalmente revelou sua cena pós-créditos, a sensação era de estar na sala de cinema há meses.

Henry Cavill (e seu corte de cabelo medonho) interpreta o personagem-título, um superespião que parece uma mistura de James Bond e Austin Powers. Logo na primeira cena, ele tem seu disfarce revelado durante uma missão e se apressa para capturar uma traficante (papel de Dua Lipa), único elo para desmascarar uma organização criminosa global. A descoberta de um agente duplo força ele e seu parceiro (John Cena) a agir por conta própria.

A surpresa maior é que toda a cena de abertura é, na verdade, parte de um livro da autora Elly Conway (Bryce Dallas Howard). Argylle é sua criação, protagonista de uma série de romances de sucesso que fizeram de Elly uma celebridade no meio literário — algo como J.K. Rowling sem magia ou transfobia.

Em um evento com fãs, ela revela que já está prestes a terminar a aventura seguinte, tarefa que realiza em completo isolamento, tendo como única companhia seu gato, Alfie.

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O problema é que Elly não consegue encerrar o novo texto, e deixa seu exílio para desanuviar os pensamentos na companhia de sua mãe (Catherine O'Hara). A viagem de trem é interrompida por um tal Aidan White (Sam Rockwell), que se apresenta como um espião de verdade e que está ali para proteger a escritora, que corre perigo mortal.

O que pareciam as palavras de um maluco logo se mostram reais, quando Elly é atacada e se vê no centro de uma conspiração criminosa internacional.

Dua Lipa e Henry Cavill em 'Argylle - O Superespião'
Dua Lipa e Henry Cavill em 'Argylle - O Superespião' Imagem: Universal

O gancho inicial em "Argylle" é trazer o choque da descoberta que os livros de Elly de alguma forma espelham eventos reais desde a obra inicial, lançada cinco anos antes. Para salvar sua própria vida, e quem sabe também o mundo, ela agora precisa confiar no novo parceiro (que não se mostra lá muito confiável) e, sabe-se lá o motivo, terminar de escrever seu livro, única forma de descobrir o paradeiro de arquivos secretos que podem expor os bandidões.

A premissa, entretanto, é rasa, e Matthew Vaughn se desdobra para espremer até o caroço, mesmo que ela tenha deixado de fazer sentido há muito tempo. Como resultado, "Argylle" é um filme que teima em não terminar, com reviravoltas atropelando plot twists que escancaram outras revelações. A essa altura ninguém mais dá a mínima para Elly, sua mãe, seu parceiro ou seu gato. É tão exaustivo que a gente só quer que a tortura termine.

A ideia de misturar ficção e realidade não é nova, sendo usada em filmes com temáticas semelhantes desde "O Magnífico", filme de 1973 em que o escritor introvertido interpretado por Jean-Paul Belmondo se coloca na pele de sua criação, o agente secreto Bob Saint-Clar. O cinema contemporâneo já extrapolou essa ideia ao introduzir o subtexto da busca pela própria identidade, tema abordado em "Despertar de Um Pesadelo" e em "A Identidade Bourne".

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Alfie, o gato, verdadeiro astro de 'Argylle'
Alfie, o gato, verdadeiro astro de 'Argylle' Imagem: Universal

"Argylle" podia tranquilamente se posicionar como diversão sem compromisso. Mas essa chance se perdeu quando Vaughn privilegiou cenas avulsas - que estão longe de seu melhor — em detrimento do principal: o desenvolvimento de seus personagens.

São eles que ancoram aventuras fantásticas em um simulacro realista, e sem uma conexão humana para atiçar nosso interesse, o pensamento logo vai para o feed do Instagram. Ver vídeos de gatinhos, a essa altura, é mais legal.

Quem sai perdendo nessa bagunça toda é Henry Cavill. Sem emplacar nenhum papel memorável desde que se despediu do Superman, o ator britânico parece em um limbo, sustentado por fãs que ainda esperam revê-lo como o Homem de Aço — o que não vai acontecer. Em "Argylle" ele sequer é o protagonista, e sim um coadjuvante de luxo, um "grilo falante" na cabeça de Elly que a ajuda a sair da enrascada.

Ao menos é este o cenário até a reviravolta seguinte, que nubla mais uma vez os limites entre o que é real, o que surgiu da imaginação de Elly e em que ponto essa linha é borrada. Em meio à bagunça, "Argylle" ao menos tenta fazer de Alfie, o gatinho na mochila com janela, um candidato a brinquedo de pelúcia fofinho. Infelizmente ele é tão artificial quanto o resto do filme. Se cinema agora for só isso... Brrrr!

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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