Roberto Sadovski

Roberto Sadovski

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Como a Marvel passou de exemplo de sucesso a marca em crise

Existe uma fissura na armadura da Marvel. O estúdio hollywoodiano mais bem-sucedido da última década, que teve seu ápice como fenômeno pop em 2019 com o lançamento de "Vingadores: Ultimato", atingiu uma barreira criativa aparentemente intransponível. É o momento em que os caminhos a seguir ficam claros: evolua ou desapareça.

A segunda opção, ao menos agora, é improvável. A marca continua a ser uma das mais sólidas do entretenimento. Tirando exceções ("Viúva Negra", "Shang-Chi", "Eternos"), os filmes produzidos pelo estúdio geram bilheterias milionárias. O mais recente, "Guardiões da Galáxia Vol. 3", arrecadou US$ 845 milhões nos cinemas globais. Ainda assim, o nome do jogo é "percepção". Nesse jogo, a Marvel está perdendo.

O sintoma mais evidente foi uma reportagem publicada há alguns dias na Variety, que cobre o mercado de cinema americano. O texto aponta uma crise criativa disparada com a pandemia de covid em 2020, quando executivos da Disney, dona da Marvel desde 2009, demandaram um aumento na produção de filmes e, principalmente, séries para o serviço de streaming Disney+. Logo, não passava um mês sem produto novo da Marvel. Com o volume, porém, a qualidade sofreu.

Siga o Splash no

A quantidade de produções passou a atropelar a capacidade do produtor Kevin Feige em fazer seu gerenciamento de qualidade, um olhar agudo que garantiu a homogenia do universo cinematográfico Marvel e resultou em seu sucesso. Mas existe uma diferença gritante em supervisionar a finalização de dois ou três filmes e se dedicar ao trabalho triplicado. O resultado, em especial na Disney+, foram séries apressadas, muitas vezes com efeitos especiais mal-acabados, que aos poucos fizeram o público torcer o nariz.

A iniciativa da Marvel, claro, foi a mais ambiciosa que o mundo do entretenimento já testemunhou: a criação de um universo conectado, com filmes e séries obedecendo à mesma cronologia, em um dominó de eventos que impactam no produto seguinte. Nos quadrinhos a fórmula funciona. No mundo audiovisual, a régua provou-se mais rígida. A maior evidência é o total descompasso de texto e produção evidenciado na série "Invasão Secreta".

Outro elemento que aflorou com a avalanche de produtos Marvel foi a fadiga com seu universo. Acompanhar um novo filme ou uma nova série tornou-se tarefa ingrata para novos fãs, que percebiam a necessidade de uma imersão nas produções à disposição para simplesmente entender exatamente o que estava acontecendo. Mesmo que o conceito de obras conectadas seja fascinante, ele também se provou estafante ante a imensa variedade de produtos de concorrentes ao longo de outras plataformas.

Samuel L. Jackson como Nick Fury em 'Invasão Secreta'
Samuel L. Jackson como Nick Fury em 'Invasão Secreta' Imagem: Marvel
Continua após a publicidade

Abrir mão de seus jogadores mais valiosos também teve seu custo. Com a morte de Tony Stark em "Ultimato", e a partida de Robert Downey Jr., a Marvel se viu privada de seu maior astro. O destino do Capitão América, personagem de Chris Evans, foi colocado na gaveta do mistério e lá permanece. O histérico "Thor: Amor e Trovão" não fez favores para o deus nórdico de Chris Hemsworth, que saltou de um tom sério no último "Vingadores" para o pastelão no filme que Taika Waititi fez em 2022.

Sem uma âncora, a Marvel passou a experimentar outros atores e personagens, ainda sem sucesso. Oscar Isaac encabeçou a série "Cavaleiro da Lua" em uma trama que funcionaria bem melhor com a metragem de um longa. "Mulher-Hulk", que acertou em cheio como comédia em metalinguagem, mostrou-se desconexa desse universo, funcionando com regras próprias. Chadwick Boseman, o Pantera Negra, que parecia o herdeiro natural para a liderança, morreu tragicamente em 2020.

"As Marvels", que estreia mundialmente no cinema nesta semana, carrega nos ombros o peso de determinar uma direção para o futuro do estúdio. Não que este não esteja traçado, mas a resposta do público pode acelerar planos, pode enterrar outros. É uma responsabilidade injusta, já que a única coisa que importa para a plateia é se o filme trará duas horas de entretenimento pop. A diretora Nia DaCosta, que fez o ótimo terror "A Lenda de Candyman", traz as credenciais que podem conduzir essa mudança. Amanhã, nesta coluna, escrevo minhas impressões.

Ryan Reynolds (ou um dublê, vai saber...) enfrenta Hugh Jackman nas filmagens de 'Deadpool 3'
Ryan Reynolds (ou um dublê, vai saber...) enfrenta Hugh Jackman nas filmagens de 'Deadpool 3' Imagem: Reprodução

É muito cedo, por óbvio, alardear a "morte" da Marvel, ou mesmo o fim da era dos super-heróis na cultura pop. O conceito dos personagens poderosos dos gibis encontra-se emaranhado no zeitgeist, com os jovens problemáticos da série "Gen V" testando os limites do gênero, e animações como "Invencível" explorando novas possibilidades. Isso sem falar da revolução consolidada por "Homem-Aranha Através do Aranhaverso", outro dos grandes sucessos do ano, traduzido em um espetáculo sensorial inesquecível.

A própria Marvel está em alerta vermelho e anda promovendo mudanças em sua mentalidade de produção. A principal é uma repaginada nas séries da Disney+, que serão encaradas não como filmes esticados, e, sim, como — veja só — produções para a TV. O que significa a confecção de episódios piloto (que podem testar o tom dos produtos), roteiros fechados antes de as câmeras rodarem e a condução de um showrunner, figura essencial nos bastidores televisivos que a Marvel achou por bem abdicar.

Continua após a publicidade

Essa mudança ficou evidente quando a produção de "Daredevil: Born Again", que recupera o herói cego Demolidor, protagonista de três temporadas na Netflix, foi pausada e reiniciada do zero. A manutenção de Ryan Reynolds como Deadpool também mostrou a disposição do estúdio em explorar personagens mais intensos, que possam protagonizar projetos não recomendados para a criançada.

Siga o Splash no

"Deadpool 3", com Hugh Jackman como Wolverine, terá essa pegada. Assim como "Eco", que chega ao streaming em 10 de janeiro, personagem do universo do Demolidor que não economiza em sangue e violência. O problemático reboot de Blade, trazendo Mahershala Ali como o caçador de vampiros, aos poucos sai do emaranhado de roteiristas que não conseguem fechar uma história e deve finalmente entrar em produção para lançamento em 2025. O roteiro é de Michael Green ("Logan"), mirando o público adulto.

Os super-heróis dos gibis, ao longo de mais de 80 anos de existência, já experimentaram um oceano de mudanças e adaptações, adequando-se à marcha do tempo. No cinema em grande estilo desde "Superman - O Filme", de 1978, as variáveis foram mais lentas, obedecendo à evolução dos efeitos especiais capazes de criar seu mundo de fantasia e da disposição de estúdios em apostar no formato.

Desde "Homem-Aranha" (2002), "Batman - O Cavaleiro das Trevas" (2008) e "Os Vingadores" (2012), esse caminho não tem mais volta. A era dos super-heróis não chegará ao fim nem tão cedo — esse dia dificilmente chegará! O que não impede os altos e baixos, ciclos experimentados pelo cinemão desde sempre, e que nos preparam invariavelmente para o momento em que estes personagens vão capturar mais uma vez nossa imaginação.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Deixe seu comentário

Só para assinantes