Roberto Sadovski

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Opinião

Elenco impecável impede que 'Mussum - O Filmis' estacione no lugar-comum

É muito fácil gostar de "Mussum - O Filmis". A biografia de uma das figuras mais emblemáticas da cultura pop brasileira traz a mistura de humor e emoção que acerta em cheio no gosto popular - os prêmios levantados no último Festival de Gramado dão a dimensão do alcance e da conexão da plateia com a história.

A cereja no bolo é o elenco, que abraçou o projeto e capricha com o material em mãos. O MVP é, claro, o genial Ailton Graça, em uma interpretação bem equilibrada, que casa o factual com o lúdico em uma composição emocional e técnica para ficar na história. Quando ele eleva o nível do jogo, seus parceiros em cena têm de pular alto para cortar a bola.

Com esse baralho vencedor, é frustrante ver que os realizadores de "Mussum" optaram por seguir o "manual da cinebiografia segura" que assola as produções do gênero no Brasil. De "Tim Maia" e "Elis" ao recente "Ângela", dramas que retratam personagens fundamentais do tecido artístico nacional são reduzidos a uma coletânea filmada de um tópico da Wikipedia. O resultado é uma limpeza histórica que abafa polêmicas e remove o que deixa o protagonista mais humano.

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Condensar a vida de alguém tão rico como Mussum em duas horas de filme não é tarefa fácil, e escolher um recorte específico levantaria a voz dos críticos de sempre, a turma estridente que reclama quando percebe que "faltou aquele momento lá". No jogo das opções, por fim, prevaleceu o respiro breve em cada momento da vida do artista, sem o aprofundamento que lhe daria mais dimensão.

Depois de um breve prólogo com Mussum adulto, o filme salta para sua infância, quando o pequeno Antônio Carlos Bernardes Gomes (Thawan Lucas) traça seu caminho guiado pela mãe (Cacau Protásio nessa primeira fase), doméstica e analfabeta, que escolhe a rigidez na educação dos filhos para vislumbrar um futuro longe das ruas. Logo essa fase salta para Carlinhos mais jovem (Yuri Marçal), servindo a aeronáutica, mas sempre de olho na vida de artista que sua mãe tanto rejeita.

Existe uma linha narrativa clara nesse conflito familiar, e na dúvida experimentada pelo protagonista entre o respeito por sua mãe e o chamado do samba, que poderia dar o tom de todo o texto de "Mussum". Qualquer dilema, entretanto, é resolvido velozmente, sem fôlego dramático e com saltos temporais que logo alcançam a versão do protagonista já com a interpretação de Graça.

Mussum (Ailton Graça) e Os Originais do Samba na TV Globo
Mussum (Ailton Graça) e Os Originais do Samba na TV Globo Imagem: Desirée do Valle/DownTown
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Quando o ator entra em cena, "Mussum" ganha vulto, como se recebesse uma injeção de vitalidade. Agora Antonio Carlos é artista, parte do grupo Os Originais do Samba, e divide os shows com participações na televisão. Esse olhar nos bastidores da aurora da TV no Brasil é fascinante, assim como a série de encontros fortuitos (com Grande Otelo, com Chico Anysio) que fizeram Mussum se popularizar como comediante.

O filme aqui cria um segundo conflito, quando Mussum precisa mais uma vez escolher, agora entre a carreira de sambista e a de personalidade da TV, uma balança desequilibrada quando ele é convidado para integrar o quarteto Os Trapalhões, um dos maiores fenômenos da história do entretenimento no Brasil. Mais uma vez, o dilema é resolvido em uma única cena e não busca nenhuma profundidade, apenas o registro.

Dos artistas que dominaram o cenário nacional nos anos 1980, Mussum talvez seja um dos mais presentes. Reinserido no zeitgeist por conta de seu padrão fonético peculiar - que batizou até uma marca de cerveja artesanal -, o humorista foi objeto do belo documentário "Mussum, um Filme do Cacildis", de 2019, que retratou sua trajetória com a preocupação em abordar diferentes ângulos de sua personalidade pública.

Ailton Graça e Neusa Borges em 'Mussum - O Filmis'
Ailton Graça e Neusa Borges em 'Mussum - O Filmis' Imagem: Desirée do Valle/DownTown

"Mussum - O Filmis", por sua vez, segue um caminho reto. Sua relação com várias mulheres é quase um adendo (a separação de sua primeira esposa se resume à atriz Késia Estácio saindo por uma porta), o rompimento dos Trapalhões com Renato Aragão (Gero Camilo) é resolvido em duas cenas no camarim com Dedé (Felipe Rocha) e Zacarias (Gustavo Nader), sua ausência da quadra da Mangueira é amarrada por um monólogo final que rouba o filme de seu elemento mais catártico.

É um epílogo que vem depois dos momentos finais de Mussum com sua mãe, Dona Malvina, interpretada aqui por Neusa Borges. Embora as escolhas do diretor Silvio Guindane troquem boa parte do fôlego criativo pelo lugar-comum, existe emoção genuína na relação de mãe e filho, conexão ancorada pelas interpretações brilhantes de Ailton Graça e Neusa Borges.

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O Brasil gosta de ver sua história recente pelo filtro do cinema, especialmente quando o recorte ainda reverbera, como foi o caso de "Nosso Sonho", biografia da dupla Claudinho e Buchecha. No mesmo passo, a nostalgia segue como motor da cultura pop, e não seria diferente com a lembrança de nossos ícones. Ailton Graça carrega o projeto nas costas, e o filme certamente tem um caminhão de defeitos. Ainda assim, com o equilíbrio acertado de humor e emoção, é muito fácil gostar de "Mussum - O Filmis".

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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