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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como William Friedkin quebrou padrões e ajudou a criar a Nova Hollywood

O cineasta William Friedkin no set de "O Exorcista" - Reprodução
O cineasta William Friedkin no set de 'O Exorcista' Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

08/08/2023 03h20

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Poucos diretores foram tão influentes para o cinema moderno como William Friedkin. No começo dos anos 1970, quando uma nova geração de cineastas virava Hollywood ao avesso, o cineasta revolucionou o cinema policial com "Operação França", de 1971. Dois anos depois, ele reescreveu as regras do terror com "O Exorcista".

Foi provavelmente o momento mais efervescente da indústria de cinema americana, reflexo das mudanças profundas que o mundo experimentava. Não havia cabimento, por exemplo, que filmes continuassem a ser espetáculos seguros e conservadores, habitando a bolha homogênea entre os grandes estúdios, enquanto o país era arrebentado do outro lado do mundo durante a Guerra do Vietnã.

Se a cultura pop ianque era limitada, novos diretores expandiam sua visão de mundo - e os limites de sua própria arte - estudando e se influenciando pelo cinema europeu e asiático. As fórmulas narrativas pareciam gastas, e havia uma vontade imensa de retomar a ousadia da Hollywood da primeira metade do século, combinando esse legado com o estilo revolucionário de um cinema global e empolgante.

William Freidkin, ao lado de cineastas como Arthur Penn, Peter Bogdanovich, Hal Ashby e Francis Ford Coppola, aos poucos descobria como a máquina funcionava para, depois, torcê-la. Longe da fantasia e do glamour associados a seu ofício, Friedkin lapidou suas habilidades dirigindo programas de TV e documentários ainda nos anos 1960. "É meu único colega cujo trabalho de fato salvou a vida de um homem", disse Coppola sobre o documentário "O Povo vs. Paul Crump", de 1962, que ajudou a livrar um condenado do corredor da morte.

O primeiro fruto da transição para a ficção foi a comédia musical "Good Times", com a dupla Cher e Sonny Bono, que interpretavam versões deles mesmos. A experiência foi um desastre para Friedkin, que não encontrou o tom para amarrar uma série de quadros cômicos, e nunca escondeu que seria o único trabalho de sua filmografia que ele esconderia. "Ao menos as filmagens foram divertidas", ressaltou.

O fracasso criativo e também nas bilheterias o fez voltar suas lentes para histórias mais experimentais, como "Feliz Aniversário" e "Quando o Strip-Tease Começou", além da adaptação da peça off-Broadway "Os Rapazes da Banda", um dos primeiros filmes de um grande estúdio protagonizado por personagens LGBT+. A cada novo trabalho, Friedkin parecia mais seguro como contador de histórias. Então, veio "Operação França".

Em 1971, o cinema americano experimentava uma revolução. Não só criativa, mas também conceitual. "Bonnie & Clyde - Uma Rajada de Balas", que Arthur Penn fez em 1967, abriu espaço para histórias em que o diretor, e não o estúdio, estavam no controle. Não só do filme, mas também a forma em que eles eram produzidos e vendidos. Obras com propostas diversas como "A Primeira Noite de Um Homem", "O Bebê de Rosemary", "A Noite dos Mortos Vivos" e "Sem Destino" também moldavam um novo público.

Nada, no entanto, alcançou o impacto de "Operação França". Baseado no livro de Robin Moore, o filme mostra uma dupla de policiais, interpretados por Gene Hackman e Roy Scheider, desbaratando um cartel de drogas que operava uma conexão entre Marselha, no Sul da França, até as ruas de Nova York. O texto era inspirado no trabalho de dois policiais da divisão de narcóticos que investigou o fluxo de heroína traficada para os Estados Unidos nos anos 1960.

Em vez de se conformar com o formato de tramas com duplas policiais que povoaram a ficção americana desde sempre, Friedkin buscou um realismo até então ousado - e absolutamente chocante. Usando sua experiência como documentarista, ele conduziu "Operação França" em um estilo moralmente ambíguo que deixou o público fascinado. Popeye, personagem de Hackman, não se furtava em dobrar a lei até o limite - ultrapassando-o se fosse preciso.

Esse senso de urgência e sensação de perigo, amplificada pelo terreno narrativo nunca explorado em um filme para o grande público, fez de "Operação França" um sucesso - isso sem falar da cena de perseguição mais sensacional já criada na história. A consagração veio na cerimônia do Oscar do ano seguinte, quando o thriller fechou a noite com as estatuetas de melhor filme, direção, ator (para Gene Hackman), roteiro adaptado e montagem. A "Nova Hollywood" sepultava, então, a era dos grandes estúdios.

"O Exorcista", por sua vez, trouxe Friedkin mais uma vez rompendo barreiras. Até então, o cinema de terror era amplamente relegado ao circuito alternativo, buscando o público de drive-ins e grind houses. Na esteira de "Operação França", contudo, o estúdio se mostrou confiante com a adaptação do livro de William Peter Blatty.

Os problemas durante a produção, porém, empilhavam a cada dia. Friedkin escalou um trio de protagonistas relativamente desconhecidos - Ellen Burstyn, Jason Miller e a jovem Linda Blair - para contracenar com o sueco Max von Sydow. As filmagens atrasaram, o orçamento estourou e vários membros da equipe sofreram ferimentos ao longo das filmagens. Alguns morreram. Tudo contribuiu para a mítica do filme.

O lançamento modesto, causado pelo recuo do estúdio ao estrear um filme de terror tão intenso, logo foi repensado. As filas eram intermináveis, assim como os relatos de pessoas vomitando e desmaiando durante as sessões. "O Exorcista" foi muito além de suas pretensões como produto e tornou-se um fenômeno. Ao lado de "O Poderoso Chefão", inaugurou a era dos blockbusters no cinema americano, que seria consolidada dois anos depois com a chegada de "Tubarão".

O entusiasmo e estouro criativo que marcaram o surgimento da Nova Hollywood foram atropelados por um rolo compressor quando essa era chegou ao fim. Friedkin levou quatro anos para dirigir outro filme depois de "O Exorcista", com a tranquilidade de quem sabia que havia mudado a indústria. Ele escolheu "O Comboio do Medo", uma releitura do thriller franco-italiano "O Salário do Medo", baseado no livro de Georges Arnaud.

O estúdio apostou alto no novo trabalho de seu diretor-astro, que por sua vez estourou o orçamento, entrou em conflito com sua equipe e enfrentou problemas em cada locação, em especial a parte rodada na República Dominicana. Wspelhando a lição de "Tubarão", o lançamento foi agendado para a temporada do verão americano de 1977. "O Comboio do Medo" parecia mais um tiro no alvo para Friedkin.

Ele não contava, entretanto, com uma fantasia espacial deixada de lado por seu próprio estúdio, mas que se tornaria não só o maior fenômeno da história da cultura pop, como também uma máquina de devorar a concorrência nos cinemas. O programador do Chinese Theater, o imponente cinema no coração da Hollywood Boulevard, assistiu a uma prévia de "Guerra nas Estrelas", pegou o telefone e passou as más novas para o amigo: "Bill, você está ferrado".

"O Comboio do Medo" naufragou, e com ele não só a aura de invencibilidade de William Friedkin, como também a liberdade irrestrita dos autores mais quentes de Hollywood. "New York, New York", "Muito Riso, Muita Alegria" e, principalmente, "O Portal do Paraíso", naufragaram com o público e foram o canto do cisne do que talvez tenha sido a melhor época do cinema ianque. Curiosamente, os anos foram generosos com "O Comboio do Medo", um filmaço que ganhou status cult e uma nova geração de admiradores.

William Friedkin seguiu trabalhando nas décadas seguintes, sem nunca reencontrar o mesmo brilho do golpe duplo que o colocou no panteão dos gênios do cinema. Ele ainda realizou grandes filmes, como "Parceiros da Noite" (1980) e "Viver e Morrer em Los Angeles", além de um punhado de trabalhos decentes, mesmo que nada memoráveis, e de voltar a produzir para a TV. Foi apenas em 2011 que o diretor repetiu o vigor de seus melhores trabalhos no excepcional "Killer Joe - Matador de Aluguel".

Bastaram duas obras para que William Friedkin contribuísse com a maior revolução que o cinema já experimentou. "Operação França" e "O Exorcista" serão lembrados no curso do tempo como filmes fundamentais para entender um momento cultural e social, e também pelas obras excepcionais que são. Ele ainda tem um trabalho na fila, o drama de ação "The Caine Mutimy Court-Martial", com Kiefer Sutherland e Jason Clarke. Infelizmente o cineasta jamais verá sua obra pronta: William Friedkin morreu em 7 de agosto, aos 87 anos.