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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Instinto Selvagem: 30 anos do filme que explodiu a carreira de Sharon Stone

Sharon Stone em "Instinto Selvagem", de Paul Verhoeven - Columbia
Sharon Stone em 'Instinto Selvagem', de Paul Verhoeven Imagem: Columbia

Colunista do UOL

19/03/2022 07h28

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Era março de 1992 quando "Instinto Selvagem" chegou aos cinemas. O thriller, dirigido por Paul Verhoeven e com Michael Douglas à frente do elenco, era um filme B de produção esmerada, um neo noir mergulhado em violência e sexo que faria algum barulho nos cinemas para depois desaparecer entre dúzias de produtos similares que a década cuspiu.

Sharon Stone, que dividia o protagonismo com Douglas, tinha outros planos. Aos 34 anos quando o filme foi lançado, ela atingira a barreira etária em que Hollywood começa a olhar para suas atrizes com um certo desdém. Sua carreira, que então contava com dezessete longas para o cinema e um punhado de pontas em telefilmes e séries para a TV, parecia ter chegado no limite.

"Instinto Selvagem" foi seu momento de ruptura. O papel da escritora Catherine Trammell, acusada de matar seus amantes da forma em que seus personagens faziam em seus livros, havia sido recusado por treze atrizes antes dela. Ninguém enxergava ali uma personagem com muitas camadas, alguém que fosse além da femme fatale que o cinema produzia em série desde sua concepção.

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Michael Douglas e Sharon Stone em 'Instinto Selvagem'
Imagem: Columbia

Sharon, por sua vez, arriscou um ponto de vista diferente. Seu maior trabalho no cinema até então fora na ficção científica "O Vingador do Futuro", no papel da esposa de mentirinha do brutamontes Arnold Schwarzenegger. Antes disso, ela parecia despontar para o estrelato dos filmes lançados direto em VHS depois da tolice "As Minas do Rei Salomão" e do quarto "Loucademia de Polícia".

Dois anos antes de "Instinto Selvagem", a atriz decidiu abraçar uma persona sexy ao posar para a "Playboy", reinventando sua imagem com o que ela acreditava que Hollywood procurava em suas jovens atrizes. O talento estava lá, mas faltava a embalagem para que produtores e diretores lhe dessem uma chance. Verhoeven, talvez por não ter mais alternativas, capitulou.

Então, "Instinto Selvagem" aconteceu. Depois da estreia do filme em Cannes, a altíssima voltagem de Douglas e Sharon, em cenas que chegavam ao limite da classificação indicativa que esbarrava na pornografia, passou a ser o cartão de visitas do filme. Mais ainda: ao fim de cada sessão, o público tinha apenas uma pergunta em mente: "Quem diabos é Sharon Stone?"

Catherine Trammell é uma personagem que surge raramente na atmosfera hollywoodiana. Uma femme fatale que, com a direção certa e a atriz perfeita, transcende as barreiras do filme ao qual pertence para tornar-se um ícone.

Emprestando muito da personalidade de sua intérprete, ela atravessou as convenções que regem os filmes do gênero. Assim como Sharon, Catherine era uma mulher segura em ser mulher, dona de sua sexualidade, vocal em suas opiniões e que não se curvava a homem nenhum. Justamente os predicados que Hollywood não queria encontrar de forma alguma em suas atrizes.

A indústria do cinema, contudo, vive do momento. Com o sucesso de "Instinto Selvagem", Sharon Stone deixou de ser a anônima cujo nome não enfeitava o poster do filme: ela passou a ser uma estrela de cinema, e o título lhe dava um certo poder. O status também trazia a fama. E com ela, uma avalanche de problemas.

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Mais solitária do que nunca em 'Invasão de Privacidade'
Imagem: Paramount

Na prática, Sharon Stone seguiu presa à sombra de Catherine Trammell - era, afinal, o que o público queria. A mulher fatal, a loira de olhar intenso, a atriz que garante bilheterias com seu corpo, não com seu talento. O problema é que os papéis que lhe eram oferecidos não eram Catherine Trammell, e o diretor não era Paul Verhoeven.

Em seu filme seguinte, "Invasão de Privacidade", não havia o menor interesse em fazer de sua personagem, uma mulher perseguida por um assassino em um edifício ultramoderno, qualqyer densidade dramática. Sobrava, então, a figura sedutora que se envolvia com o boy lixo interpretado por William Baldwin.

Sharon acreditou que sua aura lhe permitia algum poder no set, mas terminou brigando com o diretor Phillip Noyce e, principalmente, com Baldwin - esse último, por sinal, fez questão de ser extremamente desagradável, ressaltando que ela devia se recolher a seu papel como pedaço de carne a ser admirado e guardar suas opiniões para si (ah, e quem é hoje William Baldwin na fila do pão?).

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Sharon Stone teve sua melhor atuação em 'Cassino', de Martin Scorsese
Imagem: Universal

Na bobagem "Intersection: Uma Escolha, Uma Renúncia" Sharon ainda tentou mostrar uma boa performance, mas o filme não ajudou. Pior ainda foi "O Especialista", thriller com Sylvester Stallone que traz provavelmente a cena de sexo mais desconfortável e constrangedora da história, com Stone claramente de saco cheio de todo aquele circo.

A atriz teve um respiro em "Rápida e Mortal", de Sam Raimi, principalmente por assinar também a produção (e pagar do próprio bolso o salário de Leonardo DiCaprio). A chance de mirar no topo ressurgiu quando Martin Scorsese a escolheu para contracenar com Robert De Niro e Joe Pesci em "Cassino".

O papel de Ginger McKeena, que busca seu lugar em um mundo dominado por mafiosos e cafetões, mostrou um lado fragmentado da atriz, uma performance brilhante em seu desespero, uma faceta que Hollywood não queria enxergar mas que era obrigada a se render.

A indústria do cinema, porém, não trata bem suas mulheres que pensam - especialmente uma mulher inteligente e determinada como Sharon Stone. Mesmo com os louros de "Cassino", que lhe rendeu uma indicação ao Oscar, ela seguia em papéis e projetos que não sabiam exatamente o que fazer com ela.

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'Instinto Selvagem 2', honestamente, não faz o menor sentido
Imagem: Columbia

Foi assim na refilmagem equivocada do suspense "Diabolique", em que sua personalidade glacial aumentava o tom de paródia. A tentativa de se mostrar a atriz série que era com o drama "A Última Chance" não caminhou, muito menos outro remake, dessa vez de "Gloria", em que Sidney Lumet tentou sem sucesso recapturar a fúria e o naturalismo do original de John Cassavetes.

Uma sequência de filmes cada vez mais esquecíveis acompanhou a atriz até a virada do século, até que veio uma tragédia. Em 2001 Sharon sofreu um derrame, seu cérebro sangrou por minutos até ela ser levada ao hospital. Na ocasião, Hollywood já lhe virara as costas. Sozinha ela teve de reaprender coisas básicas, como caminhar e ler. Seu casamento com o jornalista Phil Bronstein esfarelou-se.

"Instinto Selvagem" sequer completara uma década e sua estrela, indiscutivelmente único motivo de seu sucesso, encontrou-se sozinha. O retorno foi lento, em bobagens como "Garganta do Diabo" e "Questão de Liberdade". Hollywood ainda fazia vista grossa para diretores muitas vezes tão chapados de cocaína que não conseguiam conduzir uma história de forma coesa. Foi nesse clima que ela retomou Catherine Trammell em 2006, mas "Instinto Selvagem 2" foi um desastre do tamanho do caos de sua produção.

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Sharon e Halle Berry no fiasco 'Mulher-Gato'
Imagem: Warner

Foi minha única entrevista com Sharon Stone foi um pouco antes do retorno a seu papel mais famoso. Ela aceitara ser a vilã de "Mulher-Gato", em que Halle Berry tentava, sem nenhum sucesso, fazer com que a personagem do universo do Batman fizesse algum sentido com origem e poderes novos. Não colou.

Sharon, por sua vez, interpretava uma executiva que ganhava pele indestrutível por conta de um cosmético especial. É sério! Eu não conseguiria inventar uma história assim nem que tentasse! Mesmo sabendo que o filme era uma hecatombe, Sharon foi atenciosa e bem-humorada, demonstrando interesse genuíno em promover seu trabalho.

O reflexo da experiência quase fatal resultou em uma Sharon mais focada em suas prioridades, o ativismo e seus filhos - os três adotados, que justificam seu ofício em tempo integral de mãe solteira. A essa altura, Sharon Stone já fizera as pazes com a fama e com a futilidade da indústria. encontrando seu caminho como uma sobrevivente.

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Sharon Stone ano passado, quando lançou seu livro de memórias 'The Beauty of Living Twice'
Imagem: Reprodução

Ah, o ativismo! Longe de ser a celebridade que grita em redes sociais, ela abraçou causas humanitárias e ergueu sua voz na defesa dos direitos das mulheres. Trabalhou com diversos órgãos públicos e privados para pedir melhores condições a pacientes com HIV/AIDS.

Conseguiu, de improviso em uma convenção com CEOs da construção civil, contribuições para erguer 28 escolas na África. Ano passado ela lançou um livro de memórias, "The Beauty of Living Twice", uma pérola de honestidade e bom humor na selva hollywoodiana.

Ah, e Sharon Stone nunca parou de trabalhar. Ao longo das últimas três décadas, ela lidou com uma avalanche de profissionais machistas e chegou de cabeça erguida em uma época de mudanças, em que o movimento #MeToo viu as mulheres denunciarem a verdade de uma indústria abusiva. Ela segue fazendo a sua maior paixão, que é fazer filmes, sem a pressão da fama. Quando entra em cena, Sharon Stone domina o ambiente, uma presença magnética e irresistível que faz dela, sem a menor dúvida, a última grande estrela que Hollywood criou.

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Sharon Stone e o fuzuê de 'Instinto Selvagem' em Cannes
Imagem: Reprodução

"Instinto Selvagem" fez dela essa estrela, mesmo que Hollywood nunca soubesse o que fazer com uma mulher absolutamente estonteante, desconcertantemente inteligente e determinada a não se encaixar nos espaços fáceis reservados para artistas, especialmente nos anos 1990 - era das comédias românticas com Julia Roberts e Meg Ryan.

E tudo bem que, 30 anos depois, muita gente ainda associe Sharon Stone àquela cena - sim, você sabe muito bem qual! Ela conta em seu livro que não sabia que sua nudez mais íntima seria exposta ao mundo daquela forma. Quando lhe pediram para tirar a calcinha, a justificativa foi a cor branca que atrapalhava a luz, e que o ângulo não permitiria ver nada.

O "reencontro" com a mesma cena foi somente quando o filme já estava pronto, em uma exibição para advogados e marketeiros do estúdio. Chocada, ela estapeou o diretor Paul Verhoeven e verbalizou sua indignação. Isso vindo de uma atriz que, até ali, era um rodapé a ser descartado com um único gesto.

Em seu carro, ainda no estacionamento, ela falou com seu advogado, que lhe garantiu que, mesmo com o poder dos homens do estúdio, "Instinto Selvagem" não poderia ser lançado com aquela cruzada de pernas reveladora se ela assim o decidisse. Shaon respirou fundo e pensou como Paul Verhoeven pensaria. Depois, como Catherine Trammell agiria.

"Instinto Selvagem" chegou aos cinemas intacto. E o resto é história.