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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Em 'O Beco do Pesadelo', Del Toro revela seu pior monstro: nós mesmos!

Colunista do UOL

26/01/2022 06h28

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A criatura esgueira-se em um poço imundo, seus movimentos são limitados pela corrente presa em seu tornozelo. No alto, uma multidão espreme-se para ver o espetáculo dantesco quando o ser alcança uma galinha e rasga seu pescoço com os próprios dentes. Sujeira e sangue completam o ato, testemunhado por curiosos em busca de uma fuga de suas vidas mundanas.

Existe um monstro neste cenário. Mas não é a criatura, que se revela um homem embaixo dos trapos que mal lhe cobrem o corpo e o cabelo longo e desgrenhado que lhe cobre a face. O monstro é a pessoa que, por uns trocados, colocou-lhe em uma jaula. É ele, um dos habitantes de "O Beco do Pesadelo", a representação do horror que muitos se recusam a enxergar.

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Guillermo Del Toro respira entre Richard Jenkins e Bradley Cooper
Imagem: Searchlight

Ao longo de sua carreira, o diretor Guillermo Del Toro mostrou uma franca afinidade com monstros. Vampiros em "Cronos" e em "Blade II", insetos gigantes em "Mutação", fantasmas em "A Espinha do Diabo" e "Colina Escarlate". O fauno em seu labirinto. Kaijus em "Círculo de Fogo". Dois "Hellboy".

Sem esquecer, claro, de "A Forma da Água". A história de amor bizarra e inusitada entre uma mulher solitária e uma criatura anfíbia humanoide, não por acaso parente distante do clássico "Monstro da Lagoa Negra", tornou-se seu maior triunfo. Neste vencedor do Oscar de melhor filme e direção, Del Toro já mostrava que, apesar da criatura fantástica, era um homem, interpretado por Michael Shannon, o personagem mais vil em cena.

"A Forma da Água", entretanto, ainda existia em um ambiente lúdico, um conto de fadas sombrio da Era Atômica. "O Beco do Pesadelo" despe-se da atmosfera de fantasia que permeia a obra do diretor. Não é uma história que lida com o sobrenatural, não busca uma explicação do além para o mal que habita o coração do homem. O único culpado de nossa queda somos nós mesmos.

A história, por sinal, não é nova. Antes mesmo de lançar "Cronos", Del Toro fora apresentado ao filme "O Beco das Almas Perdidas", de 1947, e também ao livro que lhe deu origem, "O Beco das Ilusões Perdidas", escrito por William Lindsay Gresham um ano antes. A trama, da literatura pulp existencialista transformada em cinema noir, ressoou com a sensibilidade do diretor.

"O Beco das Almas Perdidas" foi um fracasso em seu lançamento, muito em parte porque seu protagonista, Tyrone Power, era um ídolo das matinês, um galã disposto a mudar sua imagem. O público, por sua vez, não se empolgou em enxergá-lo como alguém em queda livre por seus próprios malfeitos.

Del Toro também fracassou quando quis tirar sua refilmagem/reimaginação do papel nos anos 1990. Mas um diretor estreante e desconhecido obviamente não tem o mesmo poder de um cineasta oscarizado, e os estúdios enxergavam o mexicano com outros olhos depois de "A Forma da Água".

Com um elenco de ponta, liderado por Bradley Cooper e Cate Blanchett, ele manteve o cuidado visual desenhado ao longo de sua carreira. A trama com os pés no chão, porém, faz de "O Beco do Pesadelo" seu trabalho mais surpreendente e original.

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Bradley Cooper chega ao circo de variedades em 'O Beco do Pesadelo'
Imagem: Searchlight

O filme acompanha Stanton Carlisle (Bradley Cooper), um sujeito de passado misterioso que, como muitos homens na América pós Depressão, busca se reinventar sem olhar para seus pecados pregressos. Ele termina em um circo de variedades itinerante, encabeçado por Clem Hoatley (Willem Dafoe), e enxerga ali a oportunidade de recomeçar.

Seu fascínio pelos tipos exóticos que se tornam sua "família" o aproxima do casal de videntes interpretado por Toni Collette e David Stratheirn, com quem ele aprende e desenvolve os segredos do negócio. Seu relacionamento com a jovem Molly Cahill (Rooney Mara) aponta que existe, afinal, um caminho para a redenção.

A tradição do cinema noir, porém, não abraça finais felizes. Stan é o protagonista perfeito para um exercício do gênero justamente por ser imperfeito, e Bradley Cooper traduz à perfeição o sujeito que precisa encarar a vida como um desafio constante, porque ele sabe que pode perder tudo que conquistou num piscar de olhos.

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Ronney Mara é o farol de esperança nas trevas de Bradley Cooper
Imagem: Searchlight

A virada de "O Beco do Pesadelo" segue uma tragédia com a trupe e a reinvenção de Stan, agora apresentando-se como paranormal para a elite de Buffalo, no estado de Nova York. A mudança do ambiente rural para o confinamento da cidade emoldura o filme ainda mais nas raízes noir, especialmente depois de Cate Blanchett entrar em cena.

Ela é a femme fatale que conecta a trama do filme noir, mesmo que sua personagem, a psicóloga Lilith Ritter, não compreenda sua própria dualidade. Em sua profissão ela termina por saber os segredos dos ricos e poderosos de uma América em reconstrução.

A parceria com Stan é inevitável, e o golpe que eles elaboram para garfar a fortuna de um empresário fascinado com o oculto (Richard Jenkins), traz à tona as verdades de homens que encaram seus próprios fracassos, o que nem o verniz de uma nova vida pode camuflar.

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Cate Blanchett pode esfarelar o mundo frágil erguido por Bradley Cooper
Imagem: Searchlight

Guillermo é meticuloso em sua reconstrução de época, e mais ainda ao desenhar cada um de seus personagens. Esse cuidado reflete-se na condução da história, em que a tragédia de cada uma das suas almas perdidas adiciona mais um bloco narrativo que conduz a trama ao final catártico. A violência, psicológica e física, torna-se mais explícita e recoloca o filme, com um solavanco, no mundo real.

Existe um limite com o deslumbre, em especial na construção plástica tanto do circo de variedades, quanto os salões e hotéis nababescos em Buffalo, que quase atropelam a condução da história. O diretor ultrapassou esse limite no frustrante "Colina Escarlate", mas aqui essa linha não é cruzada. Del toro aprendeu com seus erros.

O que perdura é seu fascínio com os monstros. Em "O Beco do Pesadelo" eles se manifestam das formas mais terríveis. Uma garrafa de bebida. O poder de manipular ultrapassando a função do entretenimento. A promessa do dinheiro fácil. A degradação completa de homens que chegaram ao fim da linha. O descaso com a vida de pessoas que, em um mundo incerto, deixam de lado decência e civilidade para reescrever sua história.

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Guillermo Del Toro orienta seu elenco em 'O Beco do Pesadelo'
Imagem: Searchlight

O passado, porém, é uma sombra da qual ninguém escapa. A criatura presa como aberração, que contenta-se em rasgar uma galinha com os dentes para diversão barata de terceiros, é lembrança constante de que todos estão a um passo em falso para a danação.

Era o recado que "O Beco das Almas Perdidas" passava em 1947, com o mundo ainda se recuperando dos horrores da Segunda Guerra Mundial. Esse mesmo espelho funciona hoje, com uma trama sobre desesperança recontada em meio à pandemia e com as chagas deixadas na sociedade americana depois do desastroso governo Trump.

No reflexo de "O Beco do Pesadelo", em sua ansiedade e inquietude que seguem assustadoramente contemporâneas, estão as fraquezas de cada um de nós. A vitória dos charlatões e dos enganadores pode não durar muito. Mas basta um escorregão para despencarmos no abismo.