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Roberto Sadovski

Como Chadwick Boseman fez do Pantera Negra símbolo de transformação social

Chadwick Boseman, imortalizado como o Pantera Negra - Reprodução
Chadwick Boseman, imortalizado como o Pantera Negra Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

31/08/2020 07h08

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Foi um fim de semana triste. Muito triste. O ator Chadwick Boseman, imortalizado no papel do rei T'Challa em "Pantera Negra", morreu na última sexta-feira, 28 de agosto, após quatro anos combatendo um câncer no cólon. Ele tinha 43 anos.

Estes são os fatos. Não planejava escrever sobre Boseman, não queria fazer mais um obituário. Lamentei pelo ator jovem, que aos poucos construía uma carreira ancorada não só em seu talento, mas também em sua responsabilidade como artista negro, disposto a representar seus pares. Seus amigos próximos e colegas de profissão inundaram as redes sociais com palavras, recordações, momentos. Com amor e celebração.

Decidi, então, rever seus filmes, em especial os que o tornaram um ícone mundial. Em sua breve carreira, Chadwick escolheu seus trabalhos a dedo. Nunca com personagens aleatórios, sempre respeitando uma visão de que havia ali uma responsabilidade maior. Ele foi gigante em "42 - A História de Uma Lenda", no papel do jogador Jackie Robinson. Eletrizante como James Brown em "Get On Up".

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Chadwick Boseman estreia como o Pantera Negra em 'Capitão América: Guerra Civil'
Imagem: Disney/Marvel

Então veio "Capitão América: Guerra Civil". E a coisa toda bateu. O Pantera Negra era coadjuvante na aventura que colocava o Sentinela da Liberdade em choque com o Homem de Ferro. Chadwick Boseman, porém, não pisou no freio. Assim que o conhecemos, na sequência em que um ataque terrorista mata seu pai, o rei T'Chaka da nação africana de Wakanda, ele mostra o cuidado ao construir seu personagem, o agora regente T'Challa.

De cara, Boseman trouxe nobreza, aliada com uma fúria vingativa contida nas restrições sociais trazidas pela posição de poder e responsabilidade de T'Challa. Mesmo ao lado de heróis gigantes como o Capitão América e o Homem de Ferro, ele conseguia se sobressair, especialmente quando surge em ação como o Pantera Negra. Não era apenas uma peça na engrenagem: era uma máquina capaz de mudanças profundas, responsável pelos melhores momentos em um filme recheado de superlativos.

Era um ponto de partida, consolidado dois anos depois quando "Pantera Negra" chegou aos cinemas. A essa altura, o Universo Cinematográfico Marvel já era uma máquina, um colosso cinematográfico que usava os heróis coloridos dos quadrinhos em filmes que buscavam temas contundentes no verniz do entretenimento.

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Rei T'Challa em seu trono em 'Pantera Negra'
Imagem: Disney/Marvel

Nada, entretanto, preparou o mundo para o furacão que foi "Pantera Negra". Embora fosse, obviamente, mais um recorte na tapeçaria da Marvel, assim que ele chegou aos cinemas ficou claro que se tratava de um fenômeno cultural que tomaria a indústria com força, transbordando sua influência para muito além dos cinemas.

A palavra-chave aqui é representatividade. Com "Pantera Negra", uma fatia do público muitas vezes subestimada de repente se enxergou na tela grande. E não como coadjuvantes, como acessórios para o herói da vez: T'Challa era um rei, um guerreiro, um homem de propósitos nobres disposto a defender sua terra e espalhar sua mensagem ao mundo.

Chadwick Boseman segurou o peso de "Pantera Negra" com elegância. Desde o começo, ele exigiu que a equipe do filme refletisse a mesma representatividade do mundo fictício exibido nas telas. Conseguiu. Além disso, trabalhou com o diretor Ryan Coogler para garantir que Wakanda tivesse a credibilidade de um país real, que isso pudesse ser percebido nos costumes de seu povo, em seu figurino e até no sotaque, uma variação do xhosa, idioma do Zimbábue e da África do Sul: não era o sotaque de um povo colonizado, era a expressão de uma nação livre e soberana.

Mesmo sem precisar definir sua carreira com um único personagem, Chadwick Boseman ficou irremediavelmente conectado ao Pantera Negra, repetindo o papel em mais dois filmes na saga dos Vingadores, "Guerra Infinita" e "Ultimato". O que descobrimos após sua morte trágica é que ele já sofria com o câncer durante todos esses filmes.

Os últimos anos de seu trabalho, portanto, ganham uma luz totalmente diferente. Trabalhar em um filme desse porte requer não só um compromisso físico de extrema disciplina, como também a responsabilidade com a máquina de marketing que um candidato a arrasa-quarteirão exige. Chadwick cumpriu cada passo, ao mesmo tempo em que realizada pequenas cirurgia e um tratamento quimioterápico para frear o avanço da doença.

As redes sociais fizeram o papel de guardiãs da memória. Ao longo do fim de semana, fãs recuperaram diversas entrevistas que Chadwick concedeu nos últimos anos. Com o apresentador Jimmy Fallon ele ouviu de entusiastas de "Pantera Negra" o que o filme significava para a população negra - quando se revelava, a emoção era genuína. Emocionado, ele lembrou do entusiasmo de crianças diagnosticadas com câncer que tiveram suas vidas abreviadas antes de assistir ao filme.

Em uma entrevista, hoje dilacerante, ele fala sobre a dor do processo físico, de perder massa muscular depois de "Guerra Civil" para o drama "Marshall - Igualdade e Justiça", para em seguida recuperar a forma em "Pantera Negra". "Você não faz ideia do que eu passei", comentou. "Um dia eu vou viver para falar sobre isso."

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Chadwick Boseman faz a saudação de Wakanda na pré estreia de 'Pantera Negra'
Imagem: Alberto E. Rodriguez/Getty Images for Disney

"Pantera Negra" lhe deu oportunidade para inspirar jovens negros em todo o mundo. "Em todo o mundo existem bilhões de meninos e meninas jovens, talentosos e negros", disse ao receber o prêmio do Sindicato dos Atores, concedido ao elenco de "Pantera Negra". "Há horas em que olho para trás e sou assombrado pela minha juventude. Mas minha alegria hoje é poder dizer que sou jovem, talentoso e negro."

Representatividade é essencial para triunfar na indústria cultural do novo século. Não pelo mantra politicamente correto, desonestamente vilanizado por uma confraria de tolos que insiste em espalhar sua estupidez. Essas vozes ignorantes, que repetidamente tentam diminuir a importância de movimentos como o #VidasNegrasImportam, serão lembrados como um rodapé patético na marcha da história.

A comoção em torno da morte de Chadwick Boseman mostra que sua voz foi ouvida, e que seu trabalho é agora um legado de inspiração para incontáveis gerações. Entretenimento e cultura pop são vitais para que o mundo possa se reunir em torno de valores que nos elevem, não que sejam ditados pelo ódio.

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O piloto Lewis Hamilton dedica sua vitória na Bélgica a Chadwick Boseman
Imagem: Francois Lenoir/ Reuters

As palavras de seus amigos, espalhadas pelo mundo virtual com força (o tweet com a noticia de seu passamento foi a mensagem mais compartilhada na história da rede social). Em todo canto o gesto de saudação de Wakanda, com os braços cruzados sobre o peito, foi repetido como reverência.

Por crianças com lágrimas nos olhos segurando bonecos do Pantera Negra. Pelo piloto de fórmula 1 Lewis Hamilton. Na TV Globo pela apresentadora Maju Coutinho. Pelo astro do basquete LeBron James. O que já havia se tornado um símbolo na excelência negra agora celebra a vida de um ídolo. Wakanda Forever!

Nas últimas cenas de "Pantera Negra", o rei T'Challa fala na ONU sobre a posição de seu país para revelar-se ao mundo como potência tecnológica e social. "Um verdadeiro líder não busca erguer muros, e sim construir pontes", disse. Uma clara lição para o atual governo americano, em que Donald Trump alimenta o ódio para se manter no poder, e também um recado para o nosso quintal, com um arremedo de líder que, em quase dois anos, fez com que o Brasil regredisse décadas em todas as áreas.

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O Pantera Negra prepara-se para o clímax de 'Vingadores: Ultimato': Yibambe!
Imagem: Disney/Marvel

"Pantera Negra" não é o melhor filme da Marvel, mas certamente é o mais importante. Por que encontrou em Chadwick Boseman a voz de um povo que vai eternamente combater a opressão com inteligência, com dignidade, com amor. O rei agora é eterno. É dever de todos se lembrar de sua resiliência de cabeça erguida e perpetuar sua missão com as ferramentas em mãos. A sua era a arte. Era o carisma e o talento para fazer com que um personagem de ficção ganhasse tanta relevância em todo o mundo.

No clímax de "Vingadores: Ultimato", T'Challa, na voz de Chadwick Boseman, inspira as fileiras de seus aliados prestes a entrar na batalha pelo destino do mundo. Ele entoa uma palavra: Yibambe, que em xhosa significa "se manter firme". Chadwick abraçou não um super-herói, mas a representação de um ideal. A nobreza de caráter caminha de mãos dadas com a responsabilidade de um guerreiro. O ódio jamais vai triunfar. Yibambe!