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Livro aponta Jair Bolsonaro como capitão da "República das Milícias"

VAN CAMPOS/O FOTOGRÁFICO/ESTADÃO CONTEÚDO
Imagem: VAN CAMPOS/O FOTOGRÁFICO/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

21/10/2020 09h58

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De acordo com a pesquisa Mapa dos Grupos Armados do Rio de Janeiro, divulgada no começo desta semana, na capital fluminense as milícias controlam 41 bairros, onde moram mais de 2 milhões de pessoas. Feito em 2019, o levantamento também indica que o poder dos milicianos já é maior do que o de todas as outras facções criminosas juntas - ainda disputam territórios e buscam se estabelecer como poder paralelo a Amigos dos Amigos, o Terceiro Comando e o Comando Vermelho.

A origem das milícias é velha conhecida dos brasileiros e está na base de muitos problemas graves que temos no país: nas regiões em que o Estado não atua ou não atua de forma minimamente satisfatória, algum outro tipo de força acaba se impondo. Ouvem uns moradores aqui, dão tabefes num moleque ali, matam o outro acolá. Assim dominam o território mantido por meio de ameaças, coações, extorsões, assassinatos?. Nos lugares onde o Estado não apita nada, a lei que vigora não é a mesma escrita da Constituição.

Mostrar como grupos criminosos nasceram dentro das corporações policiais, tornaram-se a principal força bandida do Rio de Janeiro e hoje têm ramificações políticas que chegam até Brasília. Ao mesmo tempo, decifrar como essas máfias se articulam, quais discursos utilizam para defender conflitos e homicídios, "compreender por que e como a sociedade vem produzindo esses comportamentos violentos e induzindo seus participantes a seguir esses caminhos". Esses foram alguns dos objetivos que levaram o jornalista Bruno Paes Manso a investigar os milicianos e a escrever "A República das Milícias: Dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro", livro-reportagem que acaba de sair pela Todavia.

Entre levantamentos históricos e papos com bandidos em salas cheia de passarinhos que, ao piar, impedem qualquer tentativa de se gravar a conversa, Bruno mostra ao leitor a luta pelo poder no Rio de Janeiro. A dimensão simbólica do assassinato de Marielle Franco, conflitos, associações estratégicas entre milícias e facções do tráfico, narcomilícias e traficantes de Cristo (esta simbólica aberração do Brasil contemporâneo) aparecem numa narrativa que retrata de que forma a promiscuidade, o descaso, a truculência, a raiva e o ressentimento se estabeleceram como forças balizadores dos rumos do país.

Policiais e militares que contrariam a natureza de seus cargos e desprezam as leis e a democracia são parte essencial do trágico pacote. "As leis até podem ser defendidas em público ou usadas de forma tática para atingir adversários ou punir inimigos, entretanto não são levadas tão a sério. O policial quadradinho, que age de acordo com o livro, vai rapidamente sucumbir. Para exercer poder, só com vivência e malandragem", escreve Bruno, que indica como o rescaldo da ditadura segue causando derramamento de sangue. Agora, "em vez de lutar pela defesa da pátria, a polícia passou a matar além do limite em nome do 'cidadão de bem'".

Pela maneira como investiga e retrata as disputas pelo poder paralelo no Rio de Janeiro, "A República das Milícias" já merece um lugar na estante de obras importantes sobre o assunto, ao lado de títulos como "O Dono do Morro", de Misha Glenny (Companhia das Letras), e "Abusado", de Caco Barcellos (Record). A camada mais importante do livro-reportagem de Bruno, no entanto, o transforma também num livro que precisa ser lido com urgência. Outra pergunta impeliu o jornalista em seu trabalho: até que ponto a realidade do crime no Rio de Janeiro ajudaria a entender a escolha dos eleitores por Jair Bolsonaro para presidente do país em 2018?

Milicias - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

"Em 2018, a eleição de um governador e de um presidente que representam em muito aqueles que veem o mundo de dentro desse subterrâneo ruinoso mostrou aos paramilitares que eles tinham chegado mais longe do que imaginavam. Os controles formais, a Constituição, a democracia, não passavam de entraves para o poder dos mais fortes", escreve o autor. Ao longo da narrativa, em momentos cruciais o leitor se depara com nomes bastante conhecidos: Fabrício Queiroz, Adriano da Nóbrega, Ronnie Lessa, a comunidade de Rio das Pedras. Todos tão essenciais para a expansão da milícia no território carioca quanto próximos da família Bolsonaro (e defendidos pela família Bolsonaro, e condecorados pela família Bolsonaro).

"Bolsonaro e sua família são representantes ideológicos de uma cultura miliciana que se fortaleceu no Rio e chegou à presidência do Brasil. Defender extermínios, seu pensamento dizia, era lutar como um patriota pela missão de livrar o Brasil do mal. Desde que enxergou essa sua verdade muitos anos atrás, libertou-se de freios morais e passou a pregar a violência abertamente. Coube a Bolsonaro e a seus comensais da morte agir em defesa dessas crenças, levantando a bandeira de ideologia paramilitar contra as instituições da Nova República, que simbolizavam aquilo que deveria ser destruído", explica Bruno.

Além de jornalista, o autor também é pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. Em 2018, em coautoria com Camila Nunes Dias, lançou "A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime No Brasil" (também da Todavia), finalista do Prêmio Jabuti do ano passado e outro título importante para compreendermos o poder e a influência das facções criminosas no país nestes anos 10. Agora, ao se debruçar sobre forças que nascem graças à estrutura (e a certo apoio) do próprio Estado, dominam áreas desprezadas por esse Estado e voltam ao Estado para ocupar cargos importantes da nação, Bruno indica que estamos numa enrascada miliciana:

"A confiança nos políticos dos diversos partidos forjados na Nova República havia ido à lona. A fúria contra os políticos, despertada depois de junho de 2013, cresceria com popularidade de agentes da lei e autoridades prontas a travar guerra contra os criminosos de colarinho-branco. Perdiam pontos os políticos, ganhavam pontos os militares, os juízes e os policiais que se diziam dispostos a impor a ordem perdida. E se prometessem tudo isso com discursos autoritários e truculentos, ainda melhor. As redes sociais e inúmeros comunicadores, guiados por teóricos da conspiração, ajudaram a construir uma narrativa capaz de fazer ferver e depois direcionar esse caldeirão de emoções contra as minorias, os políticos e as instituições democráticas. Foram tempos loucos, violentos e doentios. Tempos de Jair Bolsonaro, o capitão da República das Milícias".

Surpreende? Não. Assusta? Sim. Mas só o susto não adianta. É preciso pensar em formas e construir caminhos para sairmos dessa.

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