Topo

Página Cinco

Tortura na 'Casa de Deus': a mais atual das canções da Legião Urbana

O Grito, quadro do equatoriano Oswaldo Guayasamín. - Reprodução
O Grito, quadro do equatoriano Oswaldo Guayasamín. Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

13/10/2020 09h52

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Direta, de fácil assimilação e com um refrão que transborda indignação, "Que País é Este" é a música de protesto que acompanha diversas gerações de brasileiros. Não questiono seu valor, mas encontramos críticas políticas e sociais melhores na discografia da Legião Urbana. "Perfeição", por exemplo, vai além do grito de revolta contra o povo de Brasília para enumerar uma lista de podridões que emanam de diversos cantos. O colega Matheus Pichonelli foi muito bem ao apontar a atualidade da canção.

Legião faz parte da minha vida. Com frequência que saco novas interpretações para estrofes batidas, descubro a beleza de versos que até então pouco valorizava ou me pego ressignificando alguma das letras de Renato. Muito do que o cara escreveu e cantou ao lado de Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos serve ao Brasil de hoje. A tortura retratada em "1965: Duas Tribos" virou assunto recorrente nestes anos 20. "Cortaram meus braços/ Cortaram minhas mãos/ Cortaram minhas pernas/ Num dia de verão/ Num dia de verão/ Num dia de verão/ Podia ser meu pai/ Podia ser meu irmão". Poderia ser a tia do Zap também, por mais que ela duvide disso.

Essas já são bem conhecidas. Há muito a se explorar nas canções menos óbvias da Legião. É uma dessas quase obscuras que mais tem mexido comigo nesses últimos meses, talvez anos. Falo de "La Maison Dieu", quarta faixa de "Uma Outra Estação", álbum lançado em 1997, pouco tempo depois da morte de Renato Russo (que completou 24 anos no último domingo), e feito com boa parte do material deixado de fora da edição final de "A Tempestade".

A letra de "La Maison Dieu" vai do "microcosmo (conflitos internos do eu) ao macrocosmo (aspectos sociais do país)", apontam Angélica Castilho e Erica Schlude no ensaio "Depois do Fim - Vida, Amor e Morte nas Canções da Legião Urbana" (Hama). É o caminho que Carlos Marcelo também indica na biografia "Renato Russo - O Filho da Revolução" (Planeta): "Em meio a arranjo afiado e narrativa que aproxima sexo e morte, [Renato] volta ao tema da opressão e da tortura durante a ditadura militar". Numa letra que ainda passará por temas como lealdade e cumplicidade, é a camada pública que destaco.

Os trechos mais pungentes de "La Maison Dieu" são aqueles que versam sobre o assassinato político e a tortura, prática corriquei ao longo da ditadura e exaltada por nomes como Jair Bolsonaro, atual presidente. "Eu sou a pátria que lhe esqueceu/ O carrasco que lhe torturou/ O general que lhe arrancou os olhos/ O sangue inocente de todos os desaparecidos/ O choque elétrico e os gritos/ Parem por favor, isto dói".

Os porões onde alguns dos episódios mais vergonhosos da história do Brasil aconteceram (e olha que falamos de um passado repleto de vergonhas) não estão apenas nos livros ou nas canções. Os gritos provocados pelos choques elétricos voltam a ecoar e o sangue inocente dos desaparecidos escorre novamente ao termos um país sendo comandado por fãs de Brilhante Ustra, um dos principais carniceiros do regime militar. Quando o vice-presidente Hamilton Mourão aponta que o abjeto colega de farda foi um "homem de honra", condensa não apenas o que pensam os atuais membros do governo sobre a prática, mas expõe o que parece ser a visão única do Exército sobre o período em que tomaram o país e espalharam a barbárie.

Em "La Maison Dieu" também encontramos referência à sociedade constantemente assombrada por esses militares, mesmo após a redemocratização: "Eu sou a lembrança do terror/ De uma revolução de merda/ De generais e de um exército de merda/ Não, nunca poderemos esquecer/ Nem devemos perdoar/ Eu não anistiei ninguém// Abra os olhos e o coração/ Estejamos alertas/ Porque o terror continua/ Só mudou de cheiro/ E de uniforme".

Renato usa o olhar dos militares ("revolução") para escrachar o golpe de 1964. Na sequência, o que talvez seja o trecho mais importante da canção: "Não, nunca poderemos esquecer/ Nem devemos perdoar/ Eu não anistiei ninguém". O aviso estava dado: sem dispensar o tratamento que mereciam aqueles que utilizaram a aparelhagem do Estado para contrariar as leis do próprio Estado, o risco seguiria pairando sobre todos. Pagamos pela leniência.

O terror nunca nos deixou. O estado de exceção permaneceu como realidade de boa parte dos brasileiros mesmo após a redemocratização. Quando a PM arrebenta portas de casas e esculacha famílias, é a repressão que continua presente. São soldados e batalhões que trucidam o cidadão sem se importar com o que diz a lei. É o terror com outro cheiro e uniforme que dá tabefes, pontapés e espanca os mais pobres nas periferias.

E o terror seguiu. Mudou de cheiro e de uniforme de novo. Ganhou nova roupagem graças às urnas. Agora é terno, gravata, faixa e broche das Forças Armadas na lapela. Hoje debocha e diminui uma pandemia que já matou mais de 150 mil brasileiros. Também parece regozijar ao ver o país queimar, o Pantanal virar cinzas, a Amazônia virar cinzas, tudo virar pasto. Enquanto isso, picas do tamanho de cometas, rachadinhas e cheques injustificáveis se acumulam ao mesmo tempo em que o fim da corrupção é anunciado. É o Brasil verde-oliva acima de tudo.

É representativo e em consonância com o slogan do governo Bolsonaro: a tradução do francês para o português de "La Maison Dieu" é "A Casa de Deus".

Você pode me acompanhar também pelas redes sociais: Twitter, Facebook, Instagram, YouTube e Spotify.