Arte Fora do Museu

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Opinião

Kobra e a superação por meio da arte

Hoje comemora-se no Brasil o dia do Graffiti. A data é uma homenagem a um dos precursores do estilo no país, o artista plástico etíope, naturalizado brasileiro, Alex Vallauri, que faleceu exatamente há 37 anos. E foi há 37 anos também que começou a trajetória arstítica de Eduardo Kobra, um dos nomes mais reconhecidos internacionalmente da arte urbana brasileira. Nesta data para celebrar a arte urbana brasileira, falamos com ele sobre sua trajetória, a cena atual no Brasil, a importância da primeira geração nos anos 80 e como as dores enfrentadas durante a pandemia impactaram seu trabalho.

Última vez que nos falamos foi durante a pandemia. Seu trabalho serviu de inspiração para muita gente nesse período, como a obra A Mão de Deus. O que a pandemia significou no seu trabalho e como suas obras tocaram as pessoas? Imagino que ouviu muitos relatos sobre esse impacto.

A pandemia foi um período em que todas as minhas bases de sustentação foram afetadas. Eu fiquei com problemas sérios de saúde e não podia mais sair para trabalhar. Também tive o falecimento da minha filha. Foi um período realmente muito difícil, no sentido de que tudo que havia construído até aquele momento desmoronou e percebi que muitos valores que estavam alicerçados na minha vida não serviram para nada. Eu realmente me alicercei na fé em Deus e esse mural foi um marco durante esse período. O que me surpreendeu foi a quantidade de relatos na internet de pessoas que interagiram com essas obras. Fiz algumas outras produções na pandemia, justamente com o intuito de trazer, de alguma forma, contentamento, alívio, esperança, perseverança e fé para as pessoas que estavam passando por todo tipo de desafio, mas, especialmente, para pessoas em situação de rua. Pude fazer algumas ações, leiloando peças de serigrafia e pude beneficiar cerca de 25 mil pessoas em situação de rua com alimento nesse período, com uma parceria com refugiados. Fiz um leilão de um cilindro de oxigênio, arrecadando cerca de R$ 700 mil, que revertemos para a compra de duas usinas de oxigênio em Manaus. Foi um período de muito aprendizado, de encontrar forças para sair desse lugar difícil. Eu consegui reverter essa situação, pude erguer a cabeça, seguir em frente e perceber, também, que essas mensagens que eram pertinentes à minha realidade puderam transformar a vida de milhares de pessoas. Até mesmo outros painéis que fiz na sequência, como alguns dentro de unidades de saúde, como o Hospital das Clínicas, por exemplo, que é um painel que acabou trazendo um ponto de equilíbrio entre ciência e fé, com a mensagem de que vale a pena continuar sonhando e que a vida ia voltar à normalidade.

Kobra em seu ateliê
Kobra em seu ateliê Imagem: Renan Roberto

Hoje é uma data que homenageia o graffiti e um dos precursores no Brasil, Alex Vallauri. Como essa primeira geração impactou seu trabalho no começo de carreira e hoje?

É maravilhoso pensar que o Brasil, em termos de street art, arte pública e graffiti, começa praticamente no mesmo momento em que esse movimento se dá início nos Estados Unidos, por exemplo. Mas aqui tivemos outras frentes, outras conexões e artistas plásticos fantásticos se expressando nas ruas como Tupynambá, Maurício Villaça e Alex Vallauri. Tanta gente bacana que pintava o túnel da Avenida Paulista, e eu, mais novo, passava e observava essas manifestações artísticas de muito longe. Eu não tinha qualquer acesso ou contato nem esse canal de oportunidades, então tive que seguir um caminho bem diferente, contraditório e complexo. Encontrei muita oposição nessa trilha, fazendo parte da segunda geração do Street Art. Comecei em 1987, com total influência da cultura norte-americana, dos primeiros grafiteiros dos trens. Pude, ao longo dos anos, pintar com meu próprio pincel e desenvolver o meu caminho e minhas mensagens e me encontrar na arte. Isso foi realmente a passos bem curtos, levando muitos anos para chegar nesse desenvolvimento, porque partiu de muitas coisas, de renúncias, para poder continuar seguindo em frente.

Desde que você começou, a cidade mudou muito e ampliou suas escalas de graffiti. Hoje, São Paulo virou a cidade das empenas. O seu trabalho sempre trabalhou com grandes dimensões. Como você vê esse movimento mais recente na cidade, de um estilo que você iniciou lá atrás?

Eu acredito que está muito coerente com o que sempre disse, no sentido de que qualquer tentativa de repressão a artistas e coibição dessas manifestações legítimas é um absurdo. Também tentei, em um esforço muito grande ao longo desses mais de 30 anos, mostrar que São Paulo e outras capitais brasileiras estão na vanguarda desse movimento mundial. Quanto maior o incentivo, mais frutos colheremos de tudo isso. Ainda continuo falando que as cidades são galerias de arte importantíssimas, porque o acesso é democrático. Temos que olhar para os meninos e meninas das comunidades, muitas vezes com dificuldade até para comprar o próprio material, então precisamos apoiar e incentivar. Uma cidade inteligente tem educação, cultura de todos os tipos, saneamento básico, saúde, e a arte urbana também faz parte de tudo isso. Quanto mais intervenções, instalações, esculturas, pinturas e shows nas ruas, mais agradáveis serão as cidades. Quando pintei o primeiro prédio na cidade de São Paulo, nunca tinha visto alguém pintar um prédio. Fui um dos pioneiros nesse movimento e comecei a pintar pesquisando. Foi uma batalha, porque não tinha referência. Pesquisei em livros, filmes, fotografias e textos, para entender sobre a segurança e sobre como ampliar um desenho em grandes dimensões. Passado tanto tempo, observamos os frutos e sigo com o mesmo entusiasmo, fico feliz e me sinto privilegiado por ter driblado todos os desafios e mostrado que realmente não há diferença na arte feita na rua por um menino da comunidade para a arte de alguém que se formou nas melhores universidades. Arte é algo que vem de dentro para fora.

Muito graffiti nasce no papel, em um rascunho. Com o advento da tecnologia, num tablet, computador, antes de ganhar as paredes. Ultimamente a inteligência artificial apareceu para modificar criações artísticas. Você chegou a explorar essa tecnologia e como você vê o advento da IA na arte urbana?

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Esse debate ocorre desde sempre, até mesmo nas ruas, sobre questões técnicas, equipamentos, uso de computador e de programas. Sempre comentei que ingressei nas ruas justamente pela liberdade que as ruas proporcionam, mas encontrei muita resistência no começo. As pessoas achavam que pintar na rua tinha que ser só com um tipo de técnica, apenas com spray, e eu sempre disse que o que importava era o significado da obra, a mensagem ou por quê você faz o que faz. A técnica não transforma o artista em melhor ou pior, assim como o tamanho ou a cor não faz uma obra mais significativa ou menos importante. Temos artistas importantíssimos com obras muito pequenas. Na street art, temos artistas internacionais renomados que fazem desenhos muito pequenos. Nos museus, também vemos obras muito pequenas e com significado relevante. Sou favorável a usar qualquer material e técnica - pistola, pincel, compressor, colagem, fotografia, escultura ou qualquer tipo de material. Penso que se tiver que usar Photoshop ou Inteligência Artificial, seja feliz e faça sua arte da forma que achar melhor. No final das contas, as pessoas vão contemplar o resultado. Ninguém sabe do processo e o que importa é o resultado final. Mais importante que a técnica é o sentimento, a emoção, o significado e a história do artista que fez aquela obra. Já usei todo tipo de técnica, material e suporte, como papel, madeira, vidro, plástico, teto e piso, diferentes objetos e superfícies com texturas, sem textura, com tijolinho? Tudo é válido, o que eu quero é seguir feliz pintando. Isso é o que mais importa.

Ateliê de Eduardo Kobra
Ateliê de Eduardo Kobra Imagem: Renan Roberto

Você segue criando artes surpreendentes fora do país. O reconhecimento do seu nome sempre vem associado ao fato de você ser brasileiro ou o público lá fora muitas vezes não sabe seu país de origem?

Hoje, sobre o meu trabalho, penso que o significado e a mensagem são mais importantes do que a pintura. Eu vivo numa imersão completa, a minha vida toda é ligada ao que eu faço. As pinturas são verdadeiras extensões daquilo que eu sou. Ou seja, são questões das quais eu vivenciei, quero lutar e falar a respeito. Então, esses temas permeiam minha obra hoje, de paz, tolerância, a união dos povos, coexistência, questões de racismo, de violência e de história também. Venho buscando aperfeiçoar e colocar a minha arte à disposição, nesse sentido de conscientizar a respeito desses temas, de pedir proteção ao meio ambiente, dos povos indígenas e dos animais. São assuntos que me preocuparam a vida inteira, e eu me sinto comovido e tocam a minha alma. Quero fazer algo e a minha forma de expressão é por meio das pinturas. Foi a maneira que encontrei de dar voz a esses temas que são pertinentes a valores dos quais acredito. Acredito que as oportunidades de pintar no exterior aconteceram de forma orgânica e natural. Hoje, são 37 países e pintei lugares incríveis como a fachada da ONU e a fachada do World Trade Center, ambos em Nova York. Só nos Estados Unidos, atualmente, são 50 murais. Acho tudo isso muito significativo, que me dá muita liberdade artística e muita possibilidade de conseguir expandir com essas mensagens. Mas não acredito que seja um fator principal, relevante ou único pintar fora do meu país. Eu estou muito entusiasmado e muito feliz em ter oportunidades de pintar no interior de São Paulo e na cidade onde eu nasci, que é a cidade de São Paulo, e vários outros estados brasileiros. Hoje, com quase 50 anos de idade, recebo todos os convites com muito carinho e vou entender aqueles que realmente consigo responder à altura da expectativa das pessoas que me procuram.

Tem algum país que você ainda não pintou que gostaria de pintar e por que?

Foram vários convites e sigo sendo convidado para muitos lugares. Vejo como totalmente inesperado e inusitado tudo que aconteceu na minha trajetória. Quando que poderia imaginar voltar 50 vezes com 50 murais no território norte-americano, sem falar inglês. Agradeço a Deus por todas essas oportunidades, embora o desafio seja muito grande. Tenho problemas de saúde, e também tenho um filho de sete anos, então viajar, ficar em hotel e comer fora é muito complicado, mas sigo me dedicando na medida do possível. Às vezes, passo oito meses fora de casa. Mas com muita consciência, fazendo aquilo que é correto também. Não é fácil ter força para seguir com toda essa responsabilidade. Estou muito entusiasmado em pintar no Brasil. Depois de ter viajado pelo mundo todo, eu estou muito interessado em ter oportunidades de explorar o território nacional. Estou dentro das minhas possibilidades, procurando expandir o meu trabalho dentro do Brasil. A minha meta está nesse sentido.

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Ateliê de Eduardo Kobra
Ateliê de Eduardo Kobra Imagem: Renan Roberto

E no Brasil, alguma cidade específica que você sonha em pintar?

Eu tenho alguns planos no Brasil. A maior entrega da minha trajetória é um projeto que estou realizando na cidade de Itu, no interior de São Paulo. As pessoas veem as minhas obras nas ruas, mas não sabem os bastidores. Abri meu ateliê no FAMA Museu de forma gratuita, que é um espaço fechado onde faço as minhas criações e realizo algumas pinturas, especialmente da pandemia para cá. A abertura desse ateliê foi um passo para dar mais acessibilidade, que é um dos objetivos do meu trabalho. Quero levar a arte ao acesso de todos da mesma maneira que faço nas ruas. Estamos recebendo muitas pessoas e está sendo muito interessante ver que, na verdade, muitas delas ou talvez a maioria, jamais havia entrado em um museu e acompanha o meu trabalho nas ruas. E, por outro lado, também na cidade de Itu, vou construir o meu instituto em uma área de 67 mil m². É justamente com o intuito de, por meio da arte, dar oportunidade para crianças, adolescentes e jovens. A arte pode ser uma vacina e acho que esse é o meu objetivo agora.

Neste dia do graffiti no Brasil, como você avalia a cena da arte urbana do país?

Os artistas de rua do Brasil estão de parabéns. Temos que bater palmas em pé para quem está pintando e fazendo arte. Passamos em São Paulo e observamos centenas de prédios e dezenas de muros pintados. Os artistas estão sendo convidados para expor em outras cidades fora do Brasil, então você vê como a arte de rua está transformando as cidades brasileiras. Locais que, muitas vezes, estão envolvidos com caos, trânsito, poluição, violência e tanta coisa complicada. A arte vem trazer um alívio para tudo isso. Eu quero deixar a minha gratidão e o meu elogio para todo tipo de manifestação artística, todo tipo de artista que está, de forma espontânea, ocupando as ruas do nosso país.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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