'Mochileiros Muçulmanos': a turnê de quatro religiosos para explicar o Islã pelo Brasil
César Kaab Pugnaz tinha acabado de chegar a Aracaju: "Cara, acho que podemos conversar hoje, porque está chovendo muito e não vamos sair do hotel", explicou à reportagem, por telefone.
A capital de Sergipe era mais um destino da turnê que ele e mais três amigos muçulmanos sunitas fizeram pelo sudeste e nordeste brasileiro no início deste ano. O objetivo da viagem, projeto que eles apelidaram de "Mochileiros Muçulmanos", é explicar o islamismo e tentar diminuir o preconceito contra a religião.
O quarteto saiu da favela Cultura Física, em Embu das Artes, região metropolitana de São Paulo. A comunidade é tida como a primeira do país a ter uma mesquita montada por Kaab, de 47 anos, em meados da década passada.
No dia 7 de janeiro, os quatro paulistas entraram em um carro para iniciar uma jornada que já percorreu 8 mil quilômetros até essa semana. Passaram por Barretos, Juiz de Fora, Belo Horizonte, Vitória, Recife, Salvador e Aracaju, entre outras diversas cidades.
Segundo Kaab, não havia um roteiro definido previamente. "Nós passamos pelas cidades, conhecemos as pessoas e (fomos) aceitando os convites que chegam para falar da nossa religião. Por incrível que pareça, as pessoas pedem que a gente vá até elas. Muitas têm curiosidade sobre o que é o Islã, se a gente acredita em Jesus, se brasileiro pode ser muçulmano", conta.
Nas ruas, os quatro abordaram os pedestres, entregaram livros e folhetos explicativos e deram pequenas palestras sobre a religião. A ideia surgiu do trabalho semelhante que eles já fazem no viaduto do Chá, no centro de São Paulo. Segundo Kaab, a viagem foi bancada por doações de comerciantes e outros fiéis da comunidade islâmica.
"Há uma imagem estereotipada de que todo muçulmano é um terrorista em potencial, ou que tem ligação com o extremismo. Isso não é verdade. O Islã prega a paz e o amor, como o profeta Jesus também fazia", explica César.
"O Islã fala que quando você tira a vida de um inocente é como se tivesse assassinado toda a humanidade. E, ao contrário, quando você salva o inocente, é como se salvasse todo mundo."
No Brasil, os adeptos da religião não chegam nem a 0,5% da população, segundo pesquisa Datafolha. Ficam abaixo de católicos (50%), evangélicos (31%), religiões afro-brasileiras (2%) e ateus (1%), entre outras.
Escolhas e preconceitos
Outro membro do grupo, o estudante de direito Otávio Augusto Vieira, 25, também conhecido como Hamza, conta que encontrou quem acredite que o islamismo é imposto aos fiéis, ou seja, não haveria liberdade de escolha para seguir ou não a religião.
"A mensagem do Islã é que não há imposição na religião. Às vezes, parece que fomos forçados a segui-la, ou que é ruim ser muçulmano. Mas não é isso: foi uma escolha que fizemos para nossa vida", explica ele, que passou a seguir o Islã recentemente, depois de conhecer Kaab.
Hamza conta que por vezes esbarra em piadas sobre a religião quando veste indumentária típica, como túnicas ou a taqiyah (uma espécie de chapéu). "Todas as dificuldades em ser muçulmano estão relacionadas ao preconceito", afirma.
"A gente sempre enfrenta brincadeiras ou piadinhas sem graça. Mas nada que o diálogo e a informação não resolva. Se você tem oportunidade, dialoga com a pessoa, fala a verdade. Se não, você deixa para lá, pois, às vezes, é melhor evitar enfrentamentos desnecessários", explica.
Seu colega Antônio Marcos Abdullah, 21, pensa de forma parecida. "Não podemos reagir (ao preconceito) com o instinto, com raiva. Se a gente revidar, alguém pode dizer: 'o Islã incentiva o revide'. E não é verdade. Então, precisamos exercitar a paciência", diz.
Professor de árabe em Embu, ele se converteu no início de 2015, ainda adolescente, depois de ler livros e reportagens sobre a religião. "Inicialmente, minha família achou estranho, porque a primeira coisa que falei foi que eu não iria mais comer carne de porco ou derivados. Somos uma família pobre: salsicha e linguiça eram sempre os alimentos mais baratos. Mas, depois, eles se acostumaram", diz.
A turma conta ter enfrentado alguns episódios de preconceito durante a turnê por causa das barbas e roupas tradicionais. "Um dia, a gente passou em frente a um barzinho, e um cara falou: 'olha os homens-bomba aí, os iranianos'", afirma Kaab. "Até um policial chegou em nós e perguntou: 'tem alguma bomba escondida aí?'."
Ele conta que, em São Paulo, é comum pessoas se afastarem ou até deixarem o ambiente quando ele entra. "Acho que a única arma contra o preconceito é a informação", diz.
Outro ponto sempre criticado é a forma como o islamismo trata as mulheres. Há quem diga que a religião aborda as liberdades individuais de mulheres e homens de maneira desigual. O véu usado pelas fiéis, por exemplo, é um dos pontos controversos em diversos lugares.
"Costumo dizer que em outras religiões também há restrições, como algumas igrejas evangélicas, onde as mulheres também utilizam véu, não podem cortar o cabelo, precisam usar saias e se sentam separadas dos homens na igreja. Mas pouca gente reclama. As mulheres muçulmanas usam véu não para agradar o homem, mas porque está escrito no Alcorão (livro sagrado do Islã). Eu recomendo que as pessoas conversem mais com as mulheres muçulmanos sobre essas questões, pois é sempre bom ouvi-las", diz.
Publicações falsas
César Kaab conta que, depois de sua conversão em 2005, sofreu vários episódios de preconceito e islamofobia.
Ele entrou em contato com o Islã nos anos 1980 depois de conhecer a trajetória de Malcolm X, famoso ativista americano pelos direitos civis e também muçulmano. Até hoje, César gostar de andar usando camisetas com a imagem do ativista.
Na juventude, o religioso fez parte de vários grupos de rap da periferia paulistana, como o Tribunal Negro e o Diagnóstico. "Existia uma grande repressão nas periferias. Toda pessoa que fazia rap era considerada bandido, pois as pessoas falavam que era música de ladrão", diz.
A partir principalmente de 2001, após os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos, o islamismo ganhou grande atenção no mundo por visões mais extremistas da religião, que defendem a jihad ("guerra santa"), e costumam ganhar o noticiário.
Nessa época, Kaab passou a procurar textos e livros a respeito. "Eu já conhecia o Malcolm e quis saber mais o que era aquela religião que estava todo mundo falando".
Sua conversão foi um choque até para a família. Hoje, sua mulher e os quatro filhos também são muçulmanos.
"Na favela ninguém me entendia. As pessoas perguntavam se eu tinha virado terrorista. Mas, no começo, ninguém via minha mudança: parei de beber, de fumar, de frequentar bares até altas horas. Passei a cuidar mais de mim, da minha alma e da família", explica.
Líder comunitário, ele criou a primeira biblioteca gratuita no bairro e, depois, uma mussala (sala de reuniões para discutir a religião). Com o aumento do número de convertidos na favela, a mussala evoluiu para uma mesquita frequentada por 60 pessoas.
A história chamou a atenção da comunidade islâmica no país, mas também trouxe problemas.
"Um dia, em 2016, uma pessoa me ligou e disse que um xeique árabe estava no Brasil visitando várias mesquitas, e ficou sabendo da nossa. Falei: 'tudo bem, traga ele aqui'. Eu nunca tinha ouvido falar do xeique. Como não falo árabe, até usamos um tradutor para ajudar. Ele ficou pouco tempo e foi embora, mas eu não imaginava o que essa visita iria se transformar", conta.
O xeique em questão era o saudita Muhammad Al-Arifi, bastante famoso no país. Sunita, ele já fez declarações machistas e extremistas contra a vertente xiita da religião. Em 2014, foi proibido de entrar no Reino Unido por supostamente ter pregado em uma mesquita onde estavam três jovens que depois viajaram à Síria para lutar pelo Estado Islâmico. O xeique negou o caso, dizendo ser "veementemente contra os métodos brutais" do grupo.
Dias depois da vista, uma revista semanal publicou uma reportagem com uma foto de Al-Arifi ao lado de César Kaab. Também associava o religioso árabe ao Estado Islâmico, afirmando que ele pregava "intolerância e violência".
Para o brasileiro, o breve encontro teve repercussão negativa nos meses seguintes.
"De repente, virei o 'homem da favela' que tinha sido aliciado pelo Estado Islâmico", conta. "Recebi dezenas de mensagens com ameaças de morte e xingamentos, me chamavam de homem-bomba. Também divulgaram fotos da minha família nas redes sociais."
Em seguida, um texto com uma foto de César Kaab em uma comunidade também viralizou. A publicação afirmava que o muçulmano estava "recrutando adolescentes para o Estado Islâmico" no Morro da Maré, no Rio de Janeiro, porém, a favela que aparece na imagem era a Cultura Física, em Embu da Artes, onde vive até hoje.
Recentemente, a Justiça condenou o dono de um site que publicou essa imagem e outros textos associando Kaab a grupos extremistas a indenizar o religioso por causa de publicações falsas.
'Trabalho de formiga'
Tirando alguns episódios de preconceito, a turnê para divulgar o Islã pelo país foi bem sucedida: a grande maioria das pessoas se mostrou receptiva e curiosa sobre a religião, segundo os mochileiros.
Eles contam que, em um restaurante em Salvador, um casal se aproximou do grupo para questioná-los. "Foi incrível. Nós explicamos o que é a religião e como eles poderiam se converter", conta Cesar.
Para Rafiq Aires, 28, outro membro do grupo, o preconceito contra muçulmanos "não é culpa das pessoas", mas sim de um processo de estigmatização que já dura alguns anos. "As pessoas se tornam preconceituosas porque têm mais acesso a opiniões preconceituosas, muitas vezes divulgadas pela própria mídia. Nossa viagem teve o papel de informar e de mostrar que o Islã não é tão diferente do que elas já conhecem", diz.
Já Kaab afirma que uma das tarefas dos fiéis é falar do islamismo para as pessoas. "Nossa esperança é que outros façam o mesmo. Não precisa andar o país como nós, mas conversar com o amigo, com o vizinho, com a família. É um trabalho pequeno, de formiga, mas já ajuda", diz.
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