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Presente para rapper e carta escondida: ele coleciona máquinas de escrever

A paixão de Sergio pelas máquinas de escrever cresceu ao longo dos anos - Arquivo pessoal
A paixão de Sergio pelas máquinas de escrever cresceu ao longo dos anos Imagem: Arquivo pessoal

Glau Gasparetto e Thaís Lopes Aidar

Colaboração para Nossa

07/03/2023 04h00

Sergio Henrique de Oliveira, 55 anos, é redator em São Paulo e trabalha com marketing de conteúdo. Já no Instagram, ele é @sergiotype — de 'typewriter', palavra no inglês para máquina de escrever.

Apaixonado pelo equipamento desde a infância, ele coleciona (e restaura) raridades — além de boas histórias.

"Vez ou outra, meu pai me levava no trabalho dele. Na sala que ocupava, havia uma máquina de escrever — na minha lembrança, era uma Olivetti Lexikon 80, modelo comum nos escritórios no início dos anos 1970. Enquanto ele trabalhava, eu ficava 'brincando' na máquina".

O interesse pelo mundo de teclas e alavancas o acompanhou na vida adulta, quando começou a pesquisar os modelos utilizados por seus autores preferidos — justamente o foco de sua coleção, iniciada há oito anos.

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Sergio e o modelo que foi presente para o rapper Emicida
Imagem: Arquivo pessoal

"Ernest Hemingway usou muito uma Royal Portable; Clarice Lispector gostava de escrever com uma Underwood, no colo, como se fosse um notebook; e Paul Auster era tão apaixonado por sua Olympia SM9 Deluxe que escreveu um livro sobre ela", cita.

Atualmente, Sergio tem entre 25 e 30 exemplares — alguns são mantidos na casa dos pais.

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Olympia SM9
Imagem: Arquivo pessoal

"Como uso as máquinas no dia a dia, não as deixo expostas; elas ficam em uma estante, dentro dos 'cases'. É algo bem prático e funcional mesmo", afirma.

Tanto que, em sua busca por novas unidades, dá preferência às que têm a parte mecânica em dia, já que sempre compra com a intenção de utilizá-las.

Não busco máquinas perfeitas. Pelo contrário, gosto das marcas de uso que trazem, porque fazem parte da história delas.

Carreira na escrita

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O colecionador ainda no trabalho como redator
Imagem: Arquivo pessoal

Há três décadas atuando como redator, o ano em que começou a colecionar coincidiu com o curso de narrativa de ficção que estava fazendo. Como o computador remetia ao trabalho do dia a dia, resolveu escrever literatura em um equipamento mecânico.

À época, comprou uma Olivetti Lettera 22, em excelente estado, no centro da capital paulista. Foi o item "número um" do seu acervo especial, apesar de não ser sua primeira máquina — no caso, uma Remington 25, azul, modelo de entrada, simples, em que fazia seus trabalhos escolares, redações e poesias.

Lettera 22: o início da coleção - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Lettera 22: o início da coleção
Imagem: Arquivo pessoal

Quando começou a atuar em agências, aos 19 anos, as máquinas se tornaram sua principal ferramenta de trabalho. Por onde passou, experimentou modelos diferentes, inclusive eletrônicos, que traziam fita corretora.

Iniciar a coleção também foi a forma que encontrou para experienciar as máquinas que não teve condições de comprar naquela época.

Alguns modelos levam anos para serem conquistados

Entre os equipamentos que compila, um deles levou oito anos para Sergio obtê-lo. "Só no ano passado consegui uma Lexikon 80 italiana, primeira versão. Comprei de um mecanógrafo que mudou de profissão há décadas", cita. Outra peça, um exemplar da primeira edição da Hermes 3000, dos anos 1950, bateu cinco anos de espera.

O xodó da coleção, porém, é uma Olivetti Lettera 22, também da década de 50, italiana. "Combinei o valor com a senhora que estava vendendo e, quando fui buscar, ela não quis cobrar. Disse que a máquina era do pai, falecido há alguns anos, e que já estava muito feliz de passá-la para alguém que iria cuidar bem dela", explica.

Hermes 3000, que levou cinco anos para conseguir - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Hermes 3000, que levou cinco anos para conseguir
Imagem: Arquivo pessoal

Outra queridinha é uma Olympia SM9 Deluxe. "Além de ser a preferida do escritor Paul Auster, é a estrela de um filme que adoro: Ruby Sparks. Consegui um exemplar em 2016, mas acabei vendendo por insistência de um querido amigo colecionador. Em 2022, encontrei outra em estado de nova. Foi um dos pontos altos do ano", afirma.

Alguns exemplares, Sergio até empresta aos amigos. Outras, porém, são só para dar uma olhadinha, como a Smith Corona Folding Portable e a Olympia SM4. "É dos anos 1950, mas parece que acabou de sair da loja de tão nova", afirma.

A mais valiosa, financeiramente falando, é uma Royal Model 10, que tem em torno de cem anos. "Traz as raríssimas janelas laterais bipartidas, que foram produzidas entre 1913 e 1924. Posteriormente, a Royal manteve as janelas na forma de um único retângulo em cada lateral. O valor pode chegar a até US$ 5 mil, mas a minha não está à venda", declara.

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Royal Model 10, que tem cerca de 100 anos de idade
Imagem: Arquivo pessoal

Impulso das redes sociais

Foi também em 2015 que criou seu perfil no Instagram, o @sergiotype, com intenção de mostrar que o digital e o analógico podem conviver em perfeita harmonia.

Mesmo usando um computador MacBook de última geração para o trabalho diário, ele mantém uma máquina de escrever bem ao lado. "Comprei uma mesa em 'L' só para isso. Basta virar a cadeira para mudar de universo", diz.

A rede social de fotos e vídeos transformou a paixão do redator em negócio de nicho. Muitas pessoas o procuram, desejando uma máquina, mas sem a mínima ideia de como o equipamento funciona e qual modelo comprar. Sergio faz essa curadoria.

Descobri uma demanda enorme de pessoas que queriam ter uma 'type' para chamar de sua, mas não faziam a menor ideia de onde encontrar.

Ele sempre fez pequenos reparos e a manutenção dos equipamentos da própria coleção, mas não se considera um mecanógrafo.

Por isso, atualmente, conta com uma pequena equipe profissional sob sua supervisão, que já recuperou mais de 2 mil máquinas desde que começou a oferecer os serviços, há oito anos.

A maioria das vendas é para homens e mulheres entre 25 e 40 anos. Da turma dos mais de 50, costuma receber máquinas para revisão. "Quando compram, é para resgatar o modelo que tiveram na infância ou juventude", comenta.

Sergio Type - colecionador de máquinas de escrever - SergioType - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Sergio aprendeu a fazer pequenos reparos nas máquinas
Imagem: Arquivo pessoal

Sergio garimpa máquinas pelo país inteiro. A maioria dos equipamentos chega via Instagram ou indicação de outros colecionadores. Conforme ressalta, a intenção de restaurar o maquinário é deixar os itens o mais próximo possível do estado original.

"Prefiro falar em reparos mecânicos e estéticos; deixar a máquina funcional. A maior parte das máquinas que chegam na oficina está parada há décadas, com muita poeira acumulada e peças ressecadas pela falta de lubrificação", cita.

Geralmente, o equipamento passa por revisão geral, que inclui limpeza, lubrificação profunda, regulagens e substituição de fita. O serviço custa entre R$ 300 e R$ 1.500, dependendo do modelo e do estado geral da máquina.

Ele também recebe muitos pedidos de customização. "A pintura nova dá uma boa levantada na 'type' e ajuda a compor a decoração do ambiente onde vai ficar", salienta. Esse processo custa entre R$ 350 e R$ 1.000.

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Além da restauração, muitas máquinas acabam sendo personalizadas no processo
Imagem: Arquivo pessoal

Nem sempre tem conserto

O colecionador conta que, apesar da vontade das pessoas, não é todo equipamento que pode ser reparado. Não é raro receber imagens de máquinas abandonadas em garagens, cobertas de poeira, enferrujadas ou com falta de peças.

"Só de bater o olho sei que não tem jeito. Se tem oxidação na carcaça da máquina é porque a parte mecânica já está consumida pela ferrugem e há peças específicas que não há como substituir ou recondicionar", exemplifica.

Um pouco antes da pandemia, mãe e filho trouxeram a máquina que era do avô — já falecido — para revisar. A ideia era passar a relíquia para o menino, que devia ter pouco mais de 10 anos. O modelo era uma Remington 5, dos anos 1940, em boas condições, a não ser pela borracha do cilindro.

"É algo que nos anos 1980 era possível recondicionar por cerca de R$ 50 — em valores atualizados —, e hoje não dá para consertar porque ninguém mais recondiciona cilindros no Brasil. Foi bem decepcionante dar a notícia a eles", conclui.

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Sergio Type é colecionador de máquinas de escrever
Imagem: Arquivo pessoal

Cartas de família

Entretanto, boa parte dos desfechos é positivo, seja com equipamentos comercializados ou que passam a integrar sua coleção pessoal. Além disso, Sergio acaba se deparando com muitas histórias interessantes, como quando encontrou bilhetes especiais no 'case' de uma de suas aquisições.

No começo, quando estava comprando máquinas para a própria coleção, sem pensar em comercializar ainda, adquiriu uma pela internet e foi buscar no apartamento de um rapaz. O exemplar, uma Remington dos anos 1950, era da mãe dele, que estava em Londres e tinha herdado do pai, avô do rapaz.

Ao tirar do estojo para fazer a limpeza, caíram duas folhinhas de papel, dobradas, que estavam debaixo da máquina. Abri e eram bilhetes, escritos com a própria máquina. Era do pai para a filha, passando-lhe aquele exemplar. Ele era médico e dizia que aquela máquina havia o ajudado muito e serviu para fazer as apostilas do curso que vendia para juntar uma grana.

Outra carta, em folha de caderno, foi feita pela filha — a mãe do rapaz. Ela devia ter uns seis ou sete anos, pois parecia uma redação de escola. Pelo valor sentimental que a máquina devia ter, retomou o contato com a mulher, por e-mail.

Contou a ela a história, mandou foto dos bilhetes e perguntou se queria desfazer o negócio. "Ela ficou muito emocionada, mas não quis a máquina de volta. Falou que a atitude de mandar os bilhetes foi suficiente", compartilha.

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A cobiçada coleção de máquinas de Sergio
Imagem: Arquivo pessoal

Sentimento acima de tudo

As histórias que envolvem os equipamentos têm um peso muito importante, na opinião do colecionador, que também acumula relatos tocantes. Em certa ocasião, uma senhora o procurou, pois queria vender uma máquina que, coincidentemente, ele desejava bastante — uma Olympia Orbis, alemã, dos anos 30.

Combinamos o preço e, quando a trouxe para mim, contou a história: a máquina veio de navio, trazida pelo avô, que passou para o pai dela e, depois, para ela. Quando chegou a vez de ela passar para os filhos, ninguém quis, o que a deixou magoada.

Sergio sugeriu que voltasse para casa e relatasse a história da forma que havia lhe contado, pois talvez nenhum dos filhos soubesse toda a trajetória. "Fiz isso com o coração na mão, porque eu queria muito aquela máquina, mas senti que a história era mais forte que o meu desejo de tê-la", argumenta.

Dito e feito. Uma das filhas ficou com a máquina, pois a neta ouviu o relato e quis ficar com o exemplar. Tempos depois, o colecionador conseguiu uma máquina similar para seu acervo

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Detalhe da máquina com teclado em grego
Imagem: Arquivo pessoal

Máquina para Emicida

Alguns amigos sortudos são presenteados com máquinas que ele repara. Há pouco mais de dois anos, a jornalista Rita Lisauskas foi agraciada com uma Olivetti Studio 45 e postou no Twitter um agradecimento o que gerou uma boa repercussão.

"Recebi no Instagram um direct do Emicida, parabenizando meu trabalho, por ter visto aquele tweet. Achei que era alguém, talvez um fã, se passando por ele. Agradeci e não dei tanta bola", revela.

No dia seguinte, olhou o perfil e viu a quantidade de seguidores que o cantor acumula. Era ele mesmo. Trocaram ideias pelo gosto em comum e Sergio decidiu presenteá-lo também.

Falei para escolher alguma do meu feed e ele perguntou se poderia ser a que escreve com letra de mão, cursiva — uma Hermes Baby. O encantamento dele foi o mesmo que eu tive quando descobri essa máquina, pois deixa algo muito próximo do humano, uma coisa mágica.

O equipamento foi customizado. Foi pintado de amarelo — cor do nome do disco que ele havia lançado há pouco tempo — e uma amiga grafiteira, Vitcha Matos, fez uma arte sobre a pintura. "Os grafites contavam a vida dele, desde a comunidade até ele conquistar o que conquistou", conclui.