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Carrancas protegem barqueiros do Velho Chico contra 'monstros' e mau-olhado

Presentes no Rio São Francisco desde 1880, as carrancas misturam traços humanos com animais selvagens - Reprodução
Presentes no Rio São Francisco desde 1880, as carrancas misturam traços humanos com animais selvagens Imagem: Reprodução

Adriano Alves

Colaboração para Nossa, de Petrolina, Pernambuco

22/05/2023 04h00

Entre Petrolina (PE) e Juazeiro (BA), a travessia interestadual pode ser feita pelas águas do Rio São Francisco, pagando apenas R$ 2,50 para viajar em uma das tradicionais barraquinhas que fazem o trajeto diariamente.

Um elemento é comum a todas elas: em suas proas — parte frontal da embarcação — são colocadas carrancas, cumprindo uma tradição dos navegantes da região.

"A carranca começou a ser usada muitos anos atrás, porque se diziam que elas afastam as coisas ruins. Desde quando eu viajava com carga pelo rio, aos 21 anos, já ouvia essas histórias", conta o barqueiro Luiz Raimundo Pereira, de 43 anos, entre uma viagem e outra levando passageiros na rota das águas.

O personagem das lendas do Velho Chico é uma figura animalesca, que mistura características humanas e selvagens, geralmente com grandes olhos e dentes afiados. Nas cidades ribeirinhas, artesãos confeccionam carrancas em madeira e barro há muitos anos. Os primeiros registros no Vale do São Francisco datam de 1880, quando ainda eram chamadas somente como "figuras de proa".

Barco com carranca, em 1946: os fotógrafos Marcel Gautherot e Pierre Verger documentaram em uma viagem as populações ribeirinhas do Rio São Francisco - Coleção Marcel Gautherot/Acervo Instituto Moreira Salles/Divulgação  - Coleção Marcel Gautherot/Acervo Instituto Moreira Salles/Divulgação
Barco com carranca, em 1946: os fotógrafos Marcel Gautherot e Pierre Verger documentaram em uma viagem as populações ribeirinhas do Rio São Francisco
Imagem: Coleção Marcel Gautherot/Acervo Instituto Moreira Salles/Divulgação

Não existem certezas de onde elas vieram. A quem fala que foram os chineses, outros falam dos vikings. O fato é que elas chegam na região através do ciclo das embarcações" Joana Amorim, historiadora

Os mistérios do rio povoam o imaginário popular ribeirinho e o artesanato ganha assim novas funções, além da decorativa. "Elas teriam significado de espantar o mau-olhado, de proteger a embarcação de possíveis assombros, inclusive monstros locais, como as lendas do Nego D'Água e da Serpente de Fogo", exemplifica Joana.

As carrancas são colocadas na frente das embarcações - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
As carrancas são colocadas na frente das embarcações
Imagem: Adriano Alves/UOL
E protegem os barqueiros contra maus espíritos - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
De aspecto assustador, elas protegem barqueiros contra maus espíritos
Imagem: Adriano Alves/UOL

Mestres carranqueiros

As carrancas criadas pelos artesãos ribeirinhos ganharam o mundo. Ana Leopoldina dos Santos (1923-2008), chamada de Ana das Carrancas, foi o nome de destaque que começou a exportar essas obras para a Europa. Sua biografia conta que, na década de 1960, uma crise entre os ceramistas sem barro fez a louceira ir até as margens do rio buscar material de trabalho e ali se deparou com a figura da carranca nas embarcações. Dessa inspiração, ela criou as carrancas em barro e incluiu características como os olhos vazados, em referência ao seu companheiro deficiente visual.

Ana das Carrancas: pioneira nas carrancas de barro - Fred Jordão/Divulgação - Fred Jordão/Divulgação
Ana das Carrancas: pioneira nas carrancas de barro
Imagem: Fred Jordão/Divulgação

Na década de 1970, quando a região do Vale do São Francisco começa seu desenvolvimento acelerado com a construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho e da Ponte Presidente Dutra, as embarcações deixam de ser o principal meio de transporte e, consequentemente, a tradição das carrancas desaparece aos poucos.

A grande virada cultural que ressurge com a tradição e lhe dá novos significados é a criação das "carrancas vampiras", modelo em madeira que se popularizou, tornando-se objeto de colecionadores. Na região, moradores começaram a colocar o objeto na frente das casas, mantendo a crença em seu uso como um amuleto.

As carrancas vampiras recuperaram a tradição e se tornaram as mais populares - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
As carrancas vampiras recuperaram a tradição e se tornaram as mais populares
Imagem: Adriano Alves/UOL

O mestre por trás desse novo estilo se chama Severino Borges de Oliveira, popularmente chamado de Bitinho.

Existiam outras carrancas, que navegavam pelo rio, mas eu não tinha uma para ver, então criei a minha. Eu procurei tirar uma foto do filme King Kong e por ela fiz a primeira, que é até hoje o modelo mais vendido"

Assim narra a origem o mestre carranqueiro de 81 anos, explicando que antes chamava de carranca macaca, mas que o povo batizou de vampira e "assim ficou".

Mestre Bitinho criou o estilo carranca vampira inspirado no filme King  Kong - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
Mestre Bitinho criou o estilo carranca vampira inspirado no filme King Kong
Imagem: Adriano Alves/UOL

Natural de Taipu, no Rio Grande do Norte, Bitinho é filho de pai cigano e, por isso, morou em várias regiões. Sua relação com o Rio São Francisco é íntima, viu duas de suas grandes enchentes e perto dele trabalhou grande parte da vida. O mestre brinca que "nasceu dentro d'água e pegou duas piabas com a mão".

A missão de produzir o símbolo do Velho Chico é atualmente dividida com o filho Nivandro Félix de Oliveira, 48, chamado de Vando das Carrancas.

Eu estudava a tabuada em cima de uma carranca de mais de três metros de altura. Meu pai que me ensinava" Vando das Carrancas

Mestre Bitinho mantém tradição das carrancas em família com o filho Vando - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
Mestre Bitinho mantém tradição das carrancas em família com o filho Vando
Imagem: Adriano Alves/UOL

Vando tentou outras profissões, de contador a eletricista, mas a paixão pelo artesanato falou mais alto. "Eu tô vendo a trajetória da carranca um pouco se acabando, as pessoas deixando a tradição. Então, eu deixei de fazer como hobby e agora minha profissão é justamente fabricante de carrancas", diz.

Vando Carranqueiro restaura carrancas históricas por encomenda - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
Vando Carranqueiro restaura carrancas históricas por encomenda
Imagem: Adriano Alves/UOL

Espaços para conhecer as carrancas

Bitinho e Vando são alguns dos artesãos residentes na Oficina do Artesão Mestre Quincas, em Petrolina. O local é um centro de produção que reúne vários profissionais do artesanato local e conta com uma loja, onde é possível comprar exemplares.

Casa do Artesão Mestre Quincas, em Petrolina - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
Casa do Artesão Mestre Quincas, em Petrolina
Imagem: Adriano Alves/UOL

Quem visitar a cidade, pode se direcionar ao local na Avenida Cardoso de Sá, s/n, Vila Eduardo, próximo ao 72º Batalhão de Infantaria Motorizado do Exército. O funcionamento é de segunda a sexta-feira das 8h às 18h; aos sábados e feriados das 8h às 17h; e aos domingos das 8h às 12h. Mais informações podem ser obtidas nos telefones (87) 3864-2069 e (87) 3864-6916.

A cidade sertaneja também abriga o Centro Cultural Ana das Carrancas, que leva o nome da patrona do artesanato pernambucano.

Centro Cultural Ana das Carrancas, em Petrolina - Adriano Alves/UOL - Adriano Alves/UOL
Centro Cultural Ana das Carrancas, em Petrolina
Imagem: Adriano Alves/UOL

No espaço é possível conhecer as carrancas cegas em barro, criadas pela artesã mundialmente reconhecida. O endereço é na BR 407, nº 500, bairro Cohab Massangano. As visitas podem ser agendadas pelo telefone (87) 99919-0809.