Mestre J. Borges

Maior xilogravurista do Brasil, ele talhou em madeira a alma sertaneja e levou o Nordeste para o mundo

Eduardo Vessoni Colaboração para Nossa, de Bezerros, Pernambuco Eduardo Vessoni/UOL

José Francisco Borges, de 87 anos, é Patrimônio Vivo de Pernambuco e um dos mais importantes xilógrafos do Brasil. Já foi comparado a Picasso e ilustrou obras de escritores como José Saramago, Eduardo Galeano e os Irmãos Grimm.

Antes desses títulos todos, porém, esse artista de Bezerros, a 100 km do Recife, teve que se apressar na alfabetização.

"Numa semana, eu assimilei tudo e já juntava as letras do cordel", conta para Nossa sobre os únicos dez meses em que estudou, formalmente, em toda sua vida.

Como ele mesmo conta, aquela pressa, aos 12 anos, era para poder ler cordel.

"Nos anos 40, o Brasil era uma coisa horrível. Não tinha escolas nos povoados, não tinha rádio nem TV", conta J. Borges, e completa:

Então meu pai lia cordel toda noite e eu assistia àquilo com tanto gosto que dormia, ouvindo as histórias"

Quando sua escola rural fechou, nunca mais voltou a estudar. Preferiu observar o mundo ao redor.

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Nordeste talhado

Foi como vendedor de cordel em feiras do interior, ao longo de 20 anos, que J. Borges colecionou as paisagens que a gente vê nas suas centenas de xilogravuras, como Caruaru, Garanhuns e Limoeiro.

"Eu só faço trabalhos relacionados aos costumes e à vida do Nordeste porque eu considero o Brasil da Bahia para cá. É um Brasil natural, de sangue nordestino", defende, aos risos.

No seu ateliê, o público circula entre obras que retratam personagens e lendas do Nordeste. Sem falar nas cenas de cangaço, boi-bumbá, reisado e capoeira.

Para J. Borges, a rica cultura popular nordestina tem origem na pobreza.

Por que os EUA consomem muita arte, mas não têm artistas? Porque todo mundo se forma e tem emprego digno. Ninguém vai pegar um bolo de barro nem um pedaço de pau para fazer um boneco para vender?

J. Borges

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Matrizes de J. Borges à venda em seu ateliê

Atualmente, Bezerros é sinônimo de xilogravura, antiga técnica chinesa de gravura em madeira que funciona como uma espécie de carimbo, cujas imagens são reproduzidas, a partir de uma matriz.

Apesar de abrigar um dos carnavais mais tradicionais de Pernambuco e fazer turismo na sua bem-estruturada Serra Negra, a cidade gira em torno de J. Borges.

"Aqui não tem muita coisa interessante, mas tem artistas de várias naturezas. Tem o da madeira, do barro, da palha e o que faz máscaras. O turista gosta de ver coisas novas", analisa.

Revoltado com o esquecimento com que sua terra natal foi tratada, J. levou o agreste para o mundo.

Entre os mais de 10 países que visitou, como Cuba, Alemanha e Suíça, o artista lembra com orgulho da experiência de dar palestras em Santa Fe, capital do Novo México, nos Estados Unidos.

"Conheço como a palma da mão e adoro. É uma cidade pequena, mas tombada pelo patrimônio", descreve.

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Cordel em cor

Feito em versos por trovadores medievais e trazido ao Brasil pelos portugueses, o cordel tem esse nome por conta da tradição de ser exposto em cordas ou barbantes.

Desde 2018, o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) reconhece a Literatura de Cordel como Patrimônio Cultural Brasileiro. Segundo o instituto, o gênero não se refere apenas à literatura, mas é também "um veículo de comunicação" que reúne as "tradições da oralidade, da poesia e das narrativas em prosa".

E dá-lhe história, cantoria, repente e embolada.

Esses folhetos de poemas populares são conhecidos pelas ilustrações com xilogravura, tradicionalmente, em preto e branco. Mas daí veio J. Borges, ou melhor, seus clientes, para subverter as regras.

Nas contas de J., 90% de suas obras são coloridas porque "é só o que povo quer".

A decisão não foi nem minha. Uma vez, uma mulher disse que meu trabalho é bonito, mas se eu fizesse colorido, ficava melhor"

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Para compensar a trabalheira de ter uma matriz para cada parte colorida da obra, J. Borges comprou pequenos pinceis para pintar diferentes partes da peça. Feitas até então com tinta tipográfica, suas obras passaram a contar com a versão offset, "que é a que eu uso hoje porque seca mais depressa e tem um brilho superior".

"Eu fiz colorido e meus meninos ignoraram. 'Pai endoidou agora, foi?'", se diverte contando a reação de seus filhos na época.

Para testar a nova fase, deu uma gravura para cada um pintar como quisesse. "Faz o vestido azul, a saia vermelha, o chapéu de uma cor e o sapato de outra", lembra.

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Com a benção de Suassuna

Entre as histórias que J. Borges emenda uma na outra, o artista lembra que tudo aquilo só foi possível com a ajuda de Ariano Suassuna, nos anos 70.

Segundo ele, que conheceu Suassuna por intermédio do artista plástico Ivan Marchetti e do escritor Liêdo Maranhão, quando o paraibano disse que o bezerrense era o melhor do Brasil, esse se tornou também empreendedor.

Não é todo artista que ganha isso da boca do Ariano. Com uma só frase, ele me ajudou a construir tudo isso"

Ele faz questão de deixar seu legado para os futuros artistas, repassando inclusive suas técnicas de trabalho para outros profissionais.

"J. Borges é uma preciosidade que a gente tem e passar isso para os jovens é perpetuar o trabalho dele. É uma forma da sua arte permanecer", analisa Roberval Lima, coordenador do Memorial do Papangu, em Bezerros.

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Nova safra

Um dos ajudantes do artista é o bezerrense Anderson Pedro Bernardino de Vasconcelos.

"Eu não penso muito em arte, mas a gente aprende muitas coisas. J. Borges representa o Nordeste", conta esse jovem de 19 anos que pinta matrizes no pincel, transfere o desenho para o papel e tira falhas com uma caneta.

Outro aprendiz é Bacaro Borges, 22, um dos 18 filhos do artista.

A gente já nasceu dentro da xilogravura. Aprendemos por conta própria, vendo a arte que ele faz" Bacaro Borges

Ver um trabalho seu é como ter a sensação de estar e não estar, ao mesmo tempo, diante de uma obra do pai. Assim como J. Borges, Bacaro e seus outros irmãos artistas também retratam o Nordeste, suas paisagens e o folclore.

Mas as semelhanças param por aí.

"O diferente é o traço, cada um de nós tem sua identidade artística criada", diz Bacaro, que atualiza a xilogravura tradicional com suas referências culturais, como a xilo que homenageia o cantor Belchior.

A entrevista com o mestre, que deveria ser de apenas 30 minutos, não dá sinal de chegar ao fim após quase três horas de prosa.

- Acabou a história, seu J. Borges?

- Eu só comecei, meu filho.

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