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REPORTAGEM

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Como uma selva no Caribe quebrou a Escócia e ajudou a criar o Reino Unido

Golfo de Darién, território dividido entre Colômbia e Panamá - rchphoto/Getty Images/iStockphoto
Golfo de Darién, território dividido entre Colômbia e Panamá Imagem: rchphoto/Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

22/01/2023 04h00

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8º50'N, 77º37'O
Ruínas de Puerto Escocés
Sukunya, Guna Yala, Panamá

Quando pensamos nos países europeus que colonizaram as Américas, espanhóis, portugueses, ingleses e franceses logo vêm à mente. Pudera, foram os bambambãs do assunto. Os Países Baixos, com o Brasil holandês e as colônias no Caribe, vêm logo em seguida.

Mas houve outros europeus metidos no assunto. A Dinamarca é, ainda hoje, o Estado soberano da Groenlândia (e as Ilhas Virgens Americanas já foram possessão dinamarquesa). O Alasca era uma colônia russa. A Suécia já se aventurou no nordeste dos Estados Unidos.

Todos foram, em algum momento do passado, reinos expansionistas e belicosos. A exceção dessa lista (que inclui também Noruega, Bélgica e Alemanha) é a Escócia. Mesmo sem ser uma potência naval nem ter uma economia forte o bastante para bancar um empreendimento do tipo, a Escócia resolveu colonizar um dos pedaços mais hostis da América Central.

Como podemos imaginar, deu tudo errado. E ainda deixou a Escócia em uma situação periclitante.

Panamá escocês

El Valle de Anton: rio corta a selva do Panamá - picturist/Getty Images/iStockphoto - picturist/Getty Images/iStockphoto
El Valle de Anton: rio corta a selva do Panamá
Imagem: picturist/Getty Images/iStockphoto

William Peterson era um proeminente banqueiro escocês e um dos fundadores do Banco da Inglaterra, o banco central britânico, ativo até hoje. Em 1695, ele participou também da criação da Companhia da Escócia para a África e as Índias, empresa que seguia mais ou menos os moldes das famigeradas e superpoderosas companhias britânicas e holandesas: um negócio cujo propósito era sugar as riquezas de colônias bem distantes de casa.

Nas décadas anteriores, a Escócia havia sido atingida por crises econômicas, fome e restrições econômicas dos ingleses. Escócia e Inglaterra eram reinos diferentes naquela época, mas compartilhavam o mesmo rei — algo que começou em 1603, quando Jaime VI da Escócia herdou o trono inglês.

Na cabeça de Peterson, o empreendimento seria "a porta para os mares e a chave do Universo" para os escoceses. Investidores da Inglaterra estavam prontos para embarcar no esquema, mas o rei Guilherme III puxou o freio. Meter-se na jogada poderia afetar os negócios dos próprios ingleses e ainda criaria um desgaste desnecessário com outra potência colonialista, a Espanha.

Os investidores caíram fora. Mais uma vez, os ingleses irritaram os escoceses.

Mas Paterson seguiu adiante e levantou uma fortuna com tudo que era tipo de gente com alguma posse. De mercadores a donos de terra, os investidores chegaram à assombrosa soma de mais de 150 mil libras, o que equivalia a cerca de 20% do dinheiro em circulação na Escócia da época, segundo o historiador Douglas Watt no livro "The Price of Scotland" (inédito no Brasil), sobre o episódio.

O lugar escolhido para fundar a colônia, chamada Nova Caledônia (nada a ver com o território francês no Pacífico) fica no Istmo do Panamá, no Golfo de Darién. Não podia ser pior.

Golfo de Darién - H. Moll G./Domínio Público - H. Moll G./Domínio Público
Golfo de Darién
Imagem: H. Moll G./Domínio Público

Darién é conhecida, ainda hoje, como uma terra inclemente, que repele modernidades humanas com uma força selvagem. Sua floresta é a responsável por ser impossível ir do Alasca à Terra do Fogo apenas de carro. Em um pequeno trecho da Rodovia Pan-Americana, na fronteira do Panamá com a Colômbia, a estrada acaba e é preciso pegar balsa.

Antes mesmo de chegarem, os escoceses já começaram a se estrepar. Fraudes e navios superfaturados marcaram a gestão da Companhia da Escócia. E, quando os primeiros barcos chegaram a Darién, as doenças tropicais fizeram o estrago de sempre.

Logo os colonizadores viram que se tratava de um lugar infrutífero para o comércio. Comida era escassa. Os tecidos e outros bens levados para fazer negócio encalharam. Para piorar, os espanhóis não gostaram de ver uma outra bandeira europeia tremulando em uma baía que ficava, tecnicamente, no território de uma colônia da Espanha, o Vice-Reino de Nova Granada (que incluía o Panamá e outros futuros países latino-americanos).

Em apenas dois anos, a empreitada se mostrou inviável. Mais da metade dos 2,8 mil escoceses morreu de malária, febre amarela ou nos conflitos com os espanhóis. Guilherme III negou qualquer ajuda externa. Em 1699, os sobreviventes, desesperados, abandonaram a Nova Caledônia em direção aos Estados Unidos.

Como as notícias demoravam para chegar, no verão daquele ano uma nova leva de colonos desembarcou em Darién. Em 1700, todos já tinham sido expulsos. O sonho de erguer Nova Edimburgo na selva caribenha foi engolido por uma mistura caipirota de ganância, mosquitos, corrupção e lama.

Ruínas e ecos políticos

O Forte de St. Andrew, que os escoceses chegaram a construir em sua breve passagem por Darién, foi engolido pela natureza. A aventura caiu no esquecimento, até que em 1979 um time de arqueólogos descobriu as ruínas da fortificação e um navio que naufragou em 1699 ao buscar mantimentos para a colônia.

Escondida por séculos de lama, a embarcação estava intacta. Ainda preservava boa parte da carga, o que ajudou na confirmação de que se tratava da Nova Caledônia escocesa, segundo uma reportagem publicada pelo "New York Times" à época da descoberta.

Mais algumas décadas se passaram e o mato voltou a cobrir tudo. O local era conhecido como Puerto Escocés, mas poucas pessoas sabem por quê. Segundo a agência Reuters, muitos gunas (ou kunas), povo originário da região, ignoram o fato de que seus antepassados chegaram a ter, por um breve período, aliados escoceses nas lutas contra os espanhóis.

Não sobrou nada, é um resquício histórico irrelevante para os gunas. Ficou ainda mais quando o governo panamenho alterou, em 2011, o nome Puerto Escocés para Sukunya-Inabaginya, em homenagem a um herói nacional, um cacique guna do início do século 20.

O Panamá, em algumas ocasiões, cogitou construir um porto na região inóspita, de acordo com o site "Panamá América". Mas nada saiu do papel. O local permanece como está.

Sua história pode não ter tido muitos desdobramentos relevantes para o Panamá, mas para a Escócia o estrago foi imenso.

Poucos anos depois, em 1707, o país assinou os Atos de União com a Inglaterra. Endividada e empobrecida, a Escócia passou a ter participação no comércio internacional e representação no governo britânico. Dinheiro era mais importante que liberdade naquele momento, e o país abriu mão de sua independência.

O fiasco do colonialismo escocês ajudou na criação do Reino Unido. Era a primeira versão do Estado que conhecemos hoje, ainda sem a Irlanda do Norte e a Irlanda, que fez parte da união no século 19 e no começo do 20.

Por isso, o episódio é lembrado sempre que o assunto da independência escocesa está em alta. Em 2014, ano do referendo em que a maioria dos eleitores escolheu permanecer no Reino Unido, Darién foi citado por políticos.

No ano que vem, a Escócia terá eleições gerais, e a primeira-ministra, Nicola Sturgeon, planeja que a votação seja um novo referendo "de facto" sobre a permanência no Reino Unido. A selva panamenha voltará a ser assunto em Edimburgo.


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