Topo

Terra à vista!

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Por onde anda Sandy, a ilha que desapareceu dos mapas há 10 anos

Trou d"Oundjo, em Nova Caledônia - Getty Images/iStockphoto
Trou d'Oundjo, em Nova Caledônia
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista de Nossa

29/05/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

19º13'S, 159º55'L
Ilha fantasma de Sandy
Nova Caledônia (coletividade ultramarina especial da França)

O que era para ser uma expedição científica para estudar placas tectônicas próximas à Austrália acabou se tornando uma viagem que virou notícia no mundo todo. Não é todo dia que se faz uma descoberta do tipo. Ou melhor, uma não-descoberta.

Em 2012, podíamos ter a ilusão de que toda a superfície da Terra já estava muito bem documentada. Google Earth e Maps não eram novidade fazia tempo, você fazia check-in no Foursquare enquanto pedia um Easy Taxi e acompanhava o trajeto do motorista pela tela do iPhone 4. A geolocalização já fazia parte de nossas vidas.

Daí o espanto desses cientistas ao constatarem que uma ilha que estava em mapas e cartas náuticas feitos nos últimos 230 anos, que tinha sido registrada por ninguém menos que James Cook, simplesmente não existia. Ou, no mínimo, não estava onde deveria estar.

Ela pode não existir fisicamente. Mas tem uma história. Conheça Sandy.

Montão de areia

Île des Pines, em Nova Caledônia - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Île des Pines, em Nova Caledônia
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Em setembro de 1774, James Cook, britânico que ficou famoso por explorar o Pacífico no século 18, o primeiro europeu de que se tem notícia a chegar à costa oriental da Austrália e ao Havaí, navegava pela Nova Caledônia, um dos tantos lugares em que ele pôs os olhos antes de qualquer europeu. A Nova Caledônia é um arquipélago mais ou menos com metade da área da Ilha do Marajó situado a leste da Austrália.

Evidentemente, Cook registrou todos seus feitos, que tiveram enorme impacto no domínio crescente do Império Britânico. O arquipélago da Nova Caledônia está na "Carta de Descobertas Feitas no Oceano Pacífico Sul", mapa que exibia aos europeus os achados do navegador. Nele podemos ver, entre os paralelos 19º e 20º, uma certa "Sandy I." (clique para abrir o mapa na íntegra).

Como era uma ilhota de areia, na falta de criatividade maior, a tripulação a batizou de Cook a batizou de "Ilha Arenosa". Agora deixo uma pausa para a nobre leitora constatar, como eu, que jamais percebeu que Sandy, além de uma cantora muito bem-sucedida e querida, é um adjetivo em inglês.

Desde então, outros mapas, de diferentes potências europeias, apontaram a ilha. Esse naco da Oceania ganhou importância global depois que a Nova Caledônia se tornou colônia da França, em 1853. Nas cartas náuticas francesas, o nome já estava até traduzido, Île de Sable, para deixar claro que a ilha arenosa fazia parte da nova possessão do império colonial francês.

Recorte de mapade 1908 que pode ter causado o erro sobre a Ilha de Sandy - R.C. Carrington  - R.C. Carrington
Recorte de mapade 1908 que pode ter causado o erro sobre a Ilha de Sandy
Imagem: R.C. Carrington

Em 1876, um baleeiro chamado Velocity reportou ter avistado a ilha. Seria uma comprovação do registro de Cook, porém ela estava algumas centenas de quilômetros a oeste do ponto citado originalmente. Três anos mais tarde, o Diretório Marítimo da Austrália incorporou a localização atualizada de Sandy.

Nova colônia

A essa altura, os franceses transformaram a Nova Caledônia em uma colônia penal. O presídio recebeu muitos participantes da Comuna de Paris, a insurreição popular que instituiu um governo proletário em 1871 e foi duramente reprimida por tropas conservadoras.

Representantes do povo kanake - Wikicommons - Wikicommons
Representantes do povo kanake
Imagem: Wikicommons

Além disso, a descoberta de níquel mudou para sempre a economia e a demografia do arquipélago, com trabalhadores chegando de diversas partes da Ásia e da Oceania. Hoje, a segunda maior reserva de níquel do mundo fica na Nova Caledônia.

Ao longo do século 20, a localização exata da ilha começou a ser contestada, e os cartógrafos acrescentaram um "ED" próximo à legenda de Sandy. É a sigla para "existência duvidosa", em inglês.

Nos anos 1960, os kanakes, o povo originário da Nova Caledônia, se mobilizaram em movimentos nacionalistas, motivados pela prosperidade do níquel e cansados dos abusos colonialistas. Paris deu mais atenção ao longínquo território: Georges Pompidou, Charles De Gaulle e François Mitterrand o visitaram.

Em visita oficial, em 1966, o presidente De Gaulle assistiu à missa na catedral da capital, Nouméa, construída pelos prisioneiros 70 anos antes. Ele foi recebido por milhares de pessoas no aeroporto, construído pelos americanos na Segunda Guerra — a Nova Caledônia foi uma estratégica base aliada no Pacífico.

Catedral de São José e Baía de Moselle, em Noumea, Nova Caledônia - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Catedral de São José e Baía de Moselle, em Noumea, Nova Caledônia
Imagem: Getty Images/iStockphoto

A situação geopolítica da Nova Caledônia ficou em banho-maria pelas décadas seguintes, com referendos, pressões separatistas, assassinatos de líderes kanakes, promessas de acordo e mais ondas de violência. Já o destino de Sandy Island, ou melhor, Île de Sable, foi sacramentado, ao menos nos mapas franceses: na falta de comprovação de existência, a ilha foi apagada.

Só que ela continuou aparecendo no resto do mundo até a popularização do GPS e dos mapas digitais, porque estava incluída nos arquivos da antecessora da Agência Nacional de Informação Geoespacial (NGA), órgão ligado ao Departamento de Defesa dos Estados Unidos e que digitalizou as cartas usadas para padronizar os dados litorâneos de todo o globo. Houve alguns erros humanos no processo, em especial nas partes menos exploradas e habitadas do mundo.

A Nova Caledônia é um território rico, com uma população que, em 2012, chegava às 250 mil pessoas. Mas Sandy não ficava na rota de nenhum comércio marítimo e não tinha nenhuma relevância científica ou cultural. Em suma, ninguém ligava.

O fim do mistério

Até que um time de cientistas australianos resolveu decifrar a charada. Liderados pela geóloga Maria Seton, da Universidade de Sydney, eles perceberam que sua viagem para estudar placas tectônicas passaria pela enigmática ilha, então resolveram investigar.
Ou seja, Sandy era tão desimportante que alguém só resolveu arregaçar as mangas porque tinha outra coisa para fazer ali perto. Sorte a nossa.

Era um mistério. Sandy estava no Google Earth, mas não havia fotos dela. E, como vimos, não era presença garantida nos mapas. "Subimos na ponte de comando e vimos que as cartas de navegação que o navio usava não incluíam a ilha", disse à época Steven Micklethwaite, membro da tripulação científica.

"Vamos confiar em quem? No Google Earth ou nos mapas de navegação? Essa era uma das questões intrigantes", contou. "Não estava muito longe da nossa rota, então decidimos navegar até a ilha."

Eles chegaram. "Olhe e contemple, não há nada! O fundo do mar não ficava menos raso do que 1.300 metros abaixo da base das ondas. Tem uma ilha no meio do nada que na verdade não existe", narrou Micklethwaite, que ainda lembrou ao jornal "Sydney Morning Herald" que, apesar da profundidade, o capitão, nervoso, navegava com cuidado à medida que eles cumpriam a não-descoberta.

"A gente checava no Google enquanto navegava pela 'ilha'. Foi uma dessas circunstâncias felizes na ciência. Você se dá de cara com algo que ninguém percebeu antes."

Perceber, até percebeu. Em 2000, radioamadores já haviam noticiado a ausência de Sandy. Mas faltava aquele aval científico para legitimar o sumiço.

A equipe começou a mapear o leito marinho, a coletar informações para enviar às autoridades competentes para que, de uma vez por todas, atualizassem os mapas. "Ficamos muito intrigados. Como estava no Google Earth e em cartas náuticas? Bem bizarro. Como foi parar nos mapas? Não sabemos", disse Seton à agência AFP.

Mas o que então a tripulação de James Cook e o Velocity, cem anos depois, viram ali? A hipótese mais aceita hoje diz que seriam rochas vulcânicas, muito porosas, que boiam à deriva uma vez que se solidificam. Em estudo de 2004 concluiu que materiais de uma erupção que ocorreu perto de Tonga viajou mais de 2 mil quilômetros para oeste, onde fica a Nova Caledônia.

A "ilha de areia" que Cook registrou seria nada mais que um amontoado de pedra-pomes boiando.

Se eu fosse coach, poderia encerrar a coluna de hoje dizendo que até os maiorais da história, como James Cook, podem cometer erros bobos. Mas infelizmente não sou um rico palestrante, então sigamos.

Em novembro de 2012, semanas após a notícia, Sandy sumiu dos mapas do Google, da National Geographic e de outras instituições que ainda a mantinham. Sim, você ainda pode encontrar Sandy Island nos mapas digitais, mas são outras, que existem para valer.

Tem uma no Território do Norte, na Austrália, e outra nas Ilhas Pitcairn, um território britânico ultramarino no Pacífico Sul.

Tudo isso soa incrível porque tendemos a ver mapas como produtos quase imutáveis hoje em dia. Mas eles estão em constante atualização. Fronteiras podem não mudar com a mesma frequência dos loucos anos 1990, mas ilhas vulcânicas vivem aparecendo por aí.

Mar de engano

Para a Nova Caledônia, digamos que houve acontecimentos mais relevantes na última década. No último dezembro, por exemplo, mais um referendo adiou os sonhos de independência. A maioria votou pela permanência do status de coletividade ultramarina especial da França.

Em 2014, o vazamento de produtos químicos em um rio motivou violentos protestos da população e obrigou a usina de Goro Nickel a suspender as operações. Ela pertencia a uma especialista em desastres ambientais e velha conhecida nossa: a Vale.

Seis anos depois, a situação política voltou a ficar tensa. O "não" venceu, por margem estreita, em mais um referendo. Rumores surgiram de que a Vale queria se livrar de Goro Nickel e vendê-la à Trafigura, uma empresa de commodities mergulhada em escândalos, sem envolver a comunidade local. O desastre de Brumadinho, ocorrido pouco antes, não passou batido, e muitos neocaledônios, preocupados, queriam cada vez mais distância da gigante brasileira.

A Vale acabou vendendo a usina a um consórcio que inclui participantes locais, mas também a Trafigura. A planta foi repaginada para atender a crescente demanda por carros elétricos e hoje é uma queridinha da Tesla de Elon Musk.

A população segue de olho, atenta, pois a exploração de níquel é, com as tecnologias usadas atualmente, uma indústria suja e destrutiva. A Nova Caledônia tem outros potenciais econômicos, a começar pelo turismo.

James Cook a batizou de Nova Caledônia porque ela lembrava o território que os romanos chamavam de Caledônia e nós conhecemos como Escócia. As semelhanças estavam na paisagem, mas a história mostrou que elas não parariam por aí. Tanto Escócia como Nova Caledônia são territórios que há tempos flertam com a independência.

Além disso, a antiga Caledônia conseguiu resistir às investidas romanas com táticas de guerrilha. Atraíam soldados inimigos com vaquinhas e ovelhas inofensivas soltas no campo e os atacavam. Tudo na base do engano. Sandy foi só um detalhe.

Índice de lugares do Terra à Vista