De renegados às capas de revista: prêmios converteram chefs em celebridades
![Chef Anthony Bourdain, em 2005, cinco anos depois do lançamento de "Cozinha Confidencial" Chef Anthony Bourdain, em 2005, cinco anos depois do lançamento de "Cozinha Confidencial"](https://conteudo.imguol.com.br/c/entretenimento/18/2022/05/10/chef-anthony-bourdain-em-2005-cinco-anos-depois-do-lancamento-de-cozinha-confidencial-1652207989831_v2_900x506.jpg)
Trabalhamos de pé até altas horas da madrugada e nossas mãos vivem queimadas. Não tem nada de célebre nisso. Quem procura emprego na cozinha quer escapar de alguma coisa, isso é o que nos une
A frase acima é do saudoso Anthony Bourdain. O chef que virou apresentador de TV e um dos mais importantes comunicadores da gastronomia moderna — ele mesmo tonado uma celebridade seguida por todos até seu suicídio, em 2018 — proclamou: "Quem entra nesse negócio para virar celebridade é um idiota".
![O chef, escritor e apresentador Anthony Bourdain (1956-2018) O chef, escritor e apresentador Anthony Bourdain (1956-2018)](https://conteudo.imguol.com.br/c/entretenimento/bc/2021/05/10/o-chef-escritor-e-apresentador-anthony-bourdain-1956-2018-1620677556175_v2_750x1.jpg)
Talvez muitos não tivessem mesmo a intenção de se tornarem pessoas famosas a quem se para nas ruas para tirar fotos ou pedir autógrafos: mas a verdade é que os cozinheiros, de repente, gostaram desse papel. Sentiram-se cômodos com ele.
Sem nenhum glamour
Até porque foi um caminho, digamos, inesperado. Há cerca de 40 anos, os chefs não eram considerados nada glamourosos: eram apenas profissionais das panelas, escondidos atrás das portas que os mantinha confinados em suas cozinhas.
Não eram artistas nem visionários. Não eram perguntados sobre política nem chamados a tentar pensar estratégias para sanar conflitos e guerras.
Mal davam entrevistas, quiçá poderiam almejar ter um livro publicado com sua assinatura e receitas ou uma foto na capa de uma revista.
Antes das décadas de 1970 e 1980, os chefs eram "burros de carga anônimos", como descreve o escritor Andrew Friedman em seu livro "Chefs, Drugs and Rock & Roll", publicado em 2018.
![Capa do livro "Chefs, Drugs and Rock & Roll", publicado em 2018 Capa do livro "Chefs, Drugs and Rock & Roll", publicado em 2018](https://conteudo.imguol.com.br/c/entretenimento/5e/2023/11/21/capa-do-livro-chefs-drugs-and-rock--roll-publicado-em-2018-1700604162815_v2_750x1.jpg)
Eram desconhecidos e até desinteressantes do ponto de vista do status social. A cozinha era apenas um caminho para um emprego, não uma profissão.
Nos restaurantes, estavam "os desajustados, os marginalizados", aqueles que não sabiam o que queriam da vida, como escreve o próprio Bourdain em seu clássico "Cozinha Confidencial" (o livro que, curiosamente, o fez famoso no mundo todo).
Chefs no centro
Mas as coisas mudaram: nas últimas décadas, o chef passou a ser considerado a estrela no centro da cozinha. O homem de dolmã branca virou capa de revista, passou até (quem diria?) estrelar campanhas publicitárias.
O chef virou um criador: "ele é um homem, provavelmente. Um gênio, definitivamente. Digamos que esse gênio seja volátil, meticuloso, impenetrável, charmoso e pronto para a câmera", como escreveu a crítica gastronômica Tejal Rao em uma reportagem para o The New York Times.
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Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receber"Ele não gerencia apenas a equipe de um ótimo restaurante. Ele é o ótimo restaurante!", ela continua, mostrando como a figura construída em torno da profissão suplantou qualquer outra função.
As pessoas não vão ao Maní, elas vão ao "restaurante da Helena Rizzo", a chef que se tornou celebridade televisiva como jurada do MasterChef, no horário nobre da Band.
![A chef Helena Rizzo, jurada do MasterChef A chef Helena Rizzo, jurada do MasterChef](https://conteudo.imguol.com.br/c/splash/88/2021/01/15/helena-rizzo-1610721942867_v2_750x1.jpg)
Novos holofotes
Faculdades de gastronomia surgiram de carona nessa onda, jovens passam a dizer aos pais, sem medo e com orgulho, que querem ser "chefs" — tal como querem ser gamers ou jogadores de futebol.
Os chefs estão conectados com o que dá prazer às pessoas, e isso atrai. Há algo muito cool em quem sabe cozinhar bem, algo que uma certa dose de atitude e muitas tatuagens nos braços só ajudam a escalar.
Os holofotes viraram-se para as cozinhas e obrigaram muitos cozinheiros a saírem delas: hoje os chefs viajam, dão palestras, fazem turnês de seus livros. Há até chefs nos campos de guerra a fazer streamings de refeições que servem para vítimas de conflitos.
![O chef Henrique Fogaça: atitude também conta pontos na nova roupagem dos chefs O chef Henrique Fogaça: atitude também conta pontos na nova roupagem dos chefs](https://conteudo.imguol.com.br/c/entretenimento/fc/2023/04/10/chef-henrique-fogaca---especial-nossa-1681162257370_v2_750x1.jpg)
Prêmios e mais prêmios
Mas sobretudo os chefs recebem prêmios — muitos deles. A quantidade de listas e rankings, premiações e reconhecimentos que surgiram na gastronomia nos últimos anos são muito representativos da celebritização da profissão.
Do guia Michelin (que agora volta ao Brasil e anunciou edição também na Argentina, em franca expansão) aos 50 Best, a mais influente e polêmica lista do segmento que também não para de crescer, a indústria soube ganhar tração justamente a partir do ego dos chefs.
Como em outros segmentos, reconhecer talentos e gerar uma certa competitividade já se mostrou ser uma estratégia acertada de propaganda: estão aí Oscars, Grammys, Nobels e outros prêmios importantes para comprovar.
Todo mundo quer ser reconhecido, estar no topo em sua carreira, gozar da admiração de seus pares — é algo natural e demasiado humano.
Novos gênios criativos
Mas na gastronomia, as premiações souberam atingir aquele que é o calcanhar de Aquiles do segmento para poder crescer — e, claro, lucrar.
Reconhecer como gênios criativos profissionais que antes não passavam de renegados em cozinhas gordurosas e barulhentas foi o que ajudou a impulsionar a própria imagem dos chefs em uma retroalimentação infinita.
E um indicativo que ela não deve acabar tão cedo. Nesta semana, o chef espanhol Dabiz Muñoz ganhou pela terceira vez o prêmio de melhor cozinheiro do mundo na lista do The Best Chef, prêmio que saiu das redes sociais para se tornar uma das cerimônias mais concorridas do momento.
![Dabiz Muñoz recebeu pelo terceiro ano o título de melhor chef do mundo Dabiz Muñoz recebeu pelo terceiro ano o título de melhor chef do mundo](https://conteudo.imguol.com.br/c/entretenimento/ef/2022/09/21/dabiz-munoz-numero-1-do-the-best-chef-awards-madrid-2022-1663757944560_v2_750x1.jpg)
Foco na imagem
A história de como o talentoso e arguto casal Joanna ?lusarczy e Cristian Gadau (os criadores do The Best Chef) deu esse passo é muito representativa desse movimento.
Ao focar na imagem dos chefs, e não dos restaurantes, como as outras premiações vinham fazendo, eles criaram potentes bombar de ar para inflar os egos que ajudaram a catapultar a imagem e a repercussão do seu próprio prêmio.
Nas redes sociais, os chefs concorrentes a um dos cobiçados lugares no ranking dos 100 melhores do mundo compartilham o reconhecimento (muitas vezes, só ter sido nomeado já vale) com seus milhares de seguidores, dando legibilidade à premiação.
![Dabiz Muñoz na entrega do The Best Chef Awards, realizado esta semana Dabiz Muñoz na entrega do The Best Chef Awards, realizado esta semana](https://conteudo.imguol.com.br/c/entretenimento/9e/2023/11/21/dabiz-munoz-e-o-melhor-chef-do-mundo-em-2023-segundo-the-best-chef-awards-1700572476941_v2_750x1.jpg)
O efeito é de viralização: os cozinheiros se tornam os propagadores motivados por sua própria busca por reconhecimento e alguma fama. Em tempos em que nos convertemos todos um pouco em influencers digitais, isso ganha ainda uma nova conotação, é claro.
Maior projeção
Os prêmios gastronômicos têm sabido se aproveitar disso: assim, ganham maior projeção, atraem mais patrocínios, conquistam mais espaço em meios de mídia, que, cada vez mais, se baseiam em repercutir o que ocorre nas redes sociais.
É bom para eles, é bom para os chefs. Todo mundo ganha mais projeção, mais reconhecimento, mais dinheiro. Perde, talvez, a visão mais holística de que um restaurante é, sempre, a soma de muitas partes.
Para a comida chegar à mesa de um cliente, é preciso literalmente do trabalho de muitos, do agricultor ao pescador e até o garçom.
O chef ter, finalmente, sobre sua cabeça um holofote a iluminar seu esforço e dedicação não é algo mau; é até justo para uma função por tanto tempo menosprezada.
Agora, o mínimo que se espera é que eles saibam difundir essa luz , trazendo para diante do feixe os outros profissionais que o ajudaram a chegar ali. Toda fama tem consequências: que eles saibam aproveitar as melhores.
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