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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Cadáver à deriva: caso de velejador achado morto no RN ainda tem mistérios

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

14/01/2023 04h00

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No dia 7 de maio do ano passado, três pescadores de Natal, no Rio Grande de Norte, avistaram um veleiro danificado à deriva, quando pescavam a cerca de 25 quilômetros da costa.

Intrigados, eles se aproximaram, e, após se certificar de que não havia ninguém a bordo, entraram no barco, que estava em péssimo estado, com o mastro caído, o leme quebrado e evidentes sinais de que jazia no mar há bastante tempo.

Dentro do veleiro, os pescadores encontraram o cadáver de um homem, já em avançado estado de decomposição, o que comprovava que o quer que tivesse acontecido com ele — e com aquele barco —, ocorrera muito tempo antes.

Mas, o quê?

O que teria causado a morte daquela pessoa, que jazia, reduzida a pelo e osso, no assoalho da cabine de um barco à vela seriamente avariado?

Começava ali um mistério que até hoje, mais de oito meses depois, a Polícia brasileira ainda não sabe explicar.

O que diz a PF

Questionada, a Polícia Federal de Natal, a quem coube a investigação, informou, esta semana, que "o inquérito ainda não foi concluído porque aguarda os laudos periciais da embarcação" — embora esta perícia tenha sido feita pela própria Polícia Federal.

Já o Itep — Instituto Técnico-Científico de Perícia da capital potiguar, órgão que fez a necropsia no corpo encontrado no barco, informou, também esta semana, que "após confirmar a identidade da vítima através de exames de DNA com familiares" (algo fácil, já que junto ao cadáver estava o passaporte e a carteira de identidade do italiano Stefano Magnani, de 52 anos, residente na pequena cidade de Bellaria-Igea Marina, na Itália), emitiu um laudo", que apontou a causa da morte como sendo "desnutrição e desidratação extrema".

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Em seguida, entregou os restos do velejador a "um sobrinho" da vítima, que os levou de volta para a Itália, onde o corpo foi cremado e enterrado, três meses depois.

Falta explicar o motivo

Ou seja, tanto o nome quanto a causa da morte do suposto único ocupante daquele veleiro (não se sabe se havia mais pessoas a bordo, embora nada indicasse isso) nunca foram nenhum mistério.

Mas resta saber o que aconteceu no mar com aquele barco, que resultou na morte do italiano.

E é isso o que a polícia brasileira ainda não apontou, meses depois.

"As evidências até aqui levantadas indicam morte por inanição, mas só após a conclusão do inquérito a PF poderá se pronunciar sobre este caso", informa o porta-voz da Polícia Federal de Natal, acrescentando que isso não tem prazo para acontecer, "pois depende das conclusões da perícia feita no barco".

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Barco está abandonado em Natal

Enquanto isso, desde então, o veleiro Mona-Mi F.S, de 12 metros de comprimento, registrado na cidade sueca de Falkenberg (embora o seu dono fosse italiano), segue amarrado a uma boia do Iate Clube de Natal, para aflição do comodoro do clube, que não vê a hora de se livrar daquele incômodo e sinistro barco, cada dia mais deteriorado pelo tempo e abandono.

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"Nunca ninguém nos procurou para resolver a questão da remoção do barco", diz o comodoro do clube, Kaleb Campos Freire. "Nem da família, nem da Polícia, nem do Consulado da Itália. E nós não podemos fazer nada".

Consultado, o Consulado da Itália em Recife, que vem intermediando o caso com a família da vítima, também não quis se pronunciar sobre o que será feito do veleiro, embora a legislação brasileira determine que barcos estrangeiros têm prazo legal para deixar o país.

"A família não pretende fazer declarações", informou, laconicamente, o Consulado italiano.

O que pode ter acontecido?

Apesar da demora da Polícia Federal em finalizar o inquérito — e a dificuldade que sempre é solucionar casos ocorridos no mar, sem testemunhas —, não é difícil deduzir o que pode ter ocorrido com o infeliz velejador italiano, pelas pistas que o próprio veleiro exibia ao ser encontrado: seu leme estava quebrado e faltava-lhe o mastro, equipamento tão imprescindível em um barco movido à vela quanto o motor em um automóvel.

O mais provável é que o mastro tenha caído durante uma tempestade, como sugerem os cortes feitos nos cabos de aço que sustentavam a peça, que ainda jazem no convés do barco abandonado.

Quando o mastro de um veleiro desaba, a primeira providência de qualquer velejador experiente (como parecia ser o caso de Magnani, a julgar pela quantidade de ferramentas que havia a bordo) é justamente cortar os cabos de aço que sustentavam a peça, para que o peso inerte da peça não afunde o próprio barco. E isso foi feito.

Captou água da chuva

Habilidoso, o velejador italiano, que era motorista de profissão e tinha duas filhas, também improvisou um sistema de captação de água da chuva, quando se esgotou o estoque de água potável que havia no tanque do barco.

Contudo, aparentemente, ele não tentou improvisar uma forma de velejar sem o mastro, como é comum nesses casos.

Ao contrário, a vela principal do barco, embora rasgada, jazia caída sobre o convés, quando o barco foi encontrado.

Leme também quebrado

A explicação para esse estranho fato poderia estar em outro equipamento fundamental — e igualmente danificado — que havia no veleiro do italiano: o leme, que dá direção à embarcação.

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O leme do barco também estava quebrado, o que pode ter tornado inútil a eventual ação de uma vela improvisada.

Possivelmente, a quebra do leme deve ter ocorrido após a queda do mastro, quando o barco ficou à mercê das ondas nem sempre tranquilas do oceano.

E, sem mastro nem leme, não há como dar movimento nem direção a um veleiro.

Foi quando deve ter começado o calvário do velejador italiano, condenado a uma morte agoniante e dolorosa, por falta de água e comida no barco.

Não tinha mais combustível

Quando o barco foi encontrado, também não havia mais combustível no tanque, embora o motor estivesse em perfeito estado — sinal de que a vítima tentou avançar, até que o combustível acabou.

Sem o motor, Magnani perdeu, também, a capacidade de recarregar as baterias do barco, responsáveis, entre outras coisas, por manter funcionando os equipamentos de comunicação.

O resultado dessa somatória de infortúnios foi a lenta morte por inanição, já que a necropsia do corpo não apontou nenhuma lesão causada por acidente ou problema de saúde.

Ao que tudo indica, o velejador italiano secou e definhou até morrer. Mas a Polícia ainda não concluiu por quê?

Outro caso ainda não explicado

A letargia em inquéritos desse tipo parecem ser prática usual na Polícia brasileira.

Em março de 2021, uma canoa com três corpos, dois homens e uma mulher, todos também em avançado estado de putrefação, foi dar na costa do Ceará, após ter, ao que tudo indica, cruzado todo o Atlântico à deriva, desde a África, como comprovavam objetos encontrados no barco — entre eles, uma carteira com cartões bancários de bancos africanos, cédulas de dinheiro da Mauritânia, Togo e Mali, e até dois números de telefone.

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Mesmo assim, até hoje, a Polícia Federal do Ceará ainda não concluiu o inquérito, que está sob a responsabilidade do delegado Thiago Monjardim Santos.

Consultada, a entidade limitou-se a informar que o "inquérito continua em andamento", e negou mais informações (quem eram aquelas três pessoas? O que aconteceu com elas?), evocando o "sigilo legal" da investigação - que, aparentemente, não avançou nada em quase dois anos.

Família nada diz

No caso do veleiro do italiano, quando barco foi vistoriado pela Polícia Federal, nenhum grão de alimento a bordo foi encontrado.

Até a ração de sobrevivência da balsa salva-vidas, equipamento que todo barco que faz travessias oceânicas possui, havia sido extraída e consumida pela desesperada vítima, da qual pouco se sabe, além do nome - porque a família nada diz.

Nem mesmo quando teria sido o último contato com a vítima, se Magnani estava sozinho no veleiro, de onde vinha e para onde seguia.

Deve ter vindo da África

Certo é que o barco do italiano estava fazendo a travessia do Atlântico, talvez rumo ao Brasil ou de volta à Europa, já que o ponto onde foi encontrado pelos pescadores faz parte de uma poderosa corrente marítima, que vem desde a costa da África, ponto mais provável da partida do barco.

Tampouco se sabe quando a viagem teria começado, embora, pelo estado do barco, é certo que tenha sido muito tempo antes de ser encontrado.

Morto há dois meses

Na necrópsia, os técnicos do Itep estimaram que a morte do velejador ocorreu "cerca de dois meses antes de o cadáver ser encontrado", embora o martírio do velejador deva ter começado bem antes disso, quando acabou a água e a comida.

"Ele estava quase mumificado", confirmou, na ocasião, o pescador que resgatou o barco, ao repórter Paulo Nascimento, de TAB, o primeiro a noticiar o fato, no dia seguinte ao achado.

"O cheiro dentro do barco era insuportável", disse o pescador que fez o resgate do veleiro, agora abandonado diante do Iate Clube de Natal, como única testemunha de uma morte, que, talvez, nunca a venha a ser totalmente explicada.

Como o italiano Stafano Magnani morreu, já se sabe. Resta saber por quê?

E é isso que a Polícia brasileira ainda concluiu, oito meses depois.

Virou múmia

Processos de quase mumificação do corpo humano por conta da desidratação extrema do organismo, são raros, mas não inéditos - mesmo no mar.
O fato mais impressionante do gênero, aconteceu sete anos atrás, com o também velejador alemão Manfred Fritz Bajorat, cujo corpo foi encontrado dentro de seu barco, em perfeitíssimo estado - até com os cabelos penteados --, embora tivesse morrido muitos meses antes -- clique aqui para conhecer este impressionante caso.

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Imagem: Barobo Police Station

Só que, no caso do velejador alemão, a causa da morte foi um fulminante ataque cardíaco, que ao menos o poupou do sofrimento de uma morte em camera lenta por inanição, como aconteceu com o infeliz italiano que foi dar no litoral do Rio Grande do Norte, oito meses atrás.
E que, até hoje, a Polícia brasileira não explicou por quê.