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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Cidade inglesa se prepara para comemorar tragédia no mar com muita festa

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

26/11/2022 04h00

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Nas primeiras horas da tempestuosa noite de 14 de dezembro de 1822, quando navegava em um mar bastante turbulento e se aproximava da Ilha de Man, entre a Irlanda e a Inglaterra, o piloto da nau inglesa HMS Racehorse avistou um clarão ao longe.

O marinheiro, então, respirou aliviado e comunicou o fato ao capitão do barco.

Em seguida, após ser autorizado, girou o timão e começou a se aproximar de terra firme, guiado por aquela luminosidade, que deduziu ser o farol da cidade de Douglas, para onde a nau se dirigia.

Mas não era.

O farol era o de outra cidade, e o que aconteceria em seguida acabaria por se tornar o mais relevante fato da história de um pequeno povoado quase vizinho ao porto para onde aquela embarcação se dirigia, a pequena Castletown - que, agora, 200 anos depois, se prepara para comemorar o que aconteceu naquela noite: uma tragédia, que resultou na morte de nove pessoas, três delas da própria localidade.

Um bom motivo

Festejar um acontecimento trágico pode não parecer algo lá muito adequado.

Mas os escassos moradores de Castletown, ainda hoje um vilarejo com pouco mais de 3 000 pessoas, têm um bom motivo para celebrar o que aconteceu naquela noite, dois séculos atrás: o bravo ato de heroísmo de alguns de seus habitantes, que se seguiu ao fatídico destino do HMS Racehorse.

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Imagem: Reprodução

Confundiu os faróis

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Imagem: Visit Isle of Man

Numa época em que todos os recursos eram escassos, e começar pelos próprios mapas, quando o confuso piloto da nau inglesa, que navegava com cerca de 100 soldados da Marinha Real a bordo, guinou na direção do equivocado farol, não tardou para o capitão do HMS Racehorse se arrepender amargamente da manobra que autorizara.

Minutos depois, a nau inglesa atropelou um punhado de pedras submersas nas águas rasas diante de Castletown, e imediatamente começou a encher de água — situação agravada pelo mar bastante agitado.

Abandonar o barco

Sentido a gravidade da situação, o capitão deu ordens de abandonar o barco. Mas não havia botes salva-vidas para todos os ocupantes da nau.

Ele, então, despachou para terra firme um punhado de soldados nos dois únicos dois botes que a HMS Racehorse possuía, com ordens de que, ao chegar lá, buscar ajuda junto aos moradores da vila que deveria haver junto ao tal farol que o piloto da nau confundira como sendo o da maior cidade da ilha.

Ajuda dos moradores

A curta travessia, a remo, foi dura, mas bem-sucedida: os dois botes chegaram à praia da pequena Castletown, e os soldados saíram buscando ajuda pelas vielas escuras da vila.

Não demorou e toda a comunidade local, a despeito da chuva forte e do frio, já estava na beira da praia, tentando recolocar os botes no mar, a fim de resgatar os demais ocupantes da HMS Racehorse, que seguia inundando, diante da cidade.

Um afundou, outro passou

Um dos botes, no entanto, logo emborcou nas ondas da praia e afundou. Mas o outro, com três experientes moradores de Castletown a bordo (os ingleses Norris Bridson, Robert Quayle e Thomas Hall), conseguiu vencer a arrebentação, através de uma espécie de canal, que eles conheciam bem.

Orientados por uma fogueira improvisada na areia da praia, os três bravos moradores de Castletown fizeram quatro viagens de ida e volta entre a vila e a nau já semi-soçobrada, resgatando os demais soldados, em um esforço quase sobre-humano.

E veio a tragédia...

Mas, na quinta e última viagem, quando traziam os últimos seis ocupantes da nau, entre eles o capitão do HMS Racehorse (que, de acordo com o protocolo, fora o último a abandonar o barco), foram engolidos por uma onda, quando já se aproximavam da praia.

Todos os nove ocupantes do bote morreram afogados, incluindo os três heróis locais - que, por isso mesmo, agora serão homenageados com muita festa na cidade, na semana em que completar dois séculos da tragédia, daqui há 15 dias.

"Graças àqueles três cidadãos de Castletown, 100 homens foram salvos, e isso merece uma grande homenagem", explica Fenella Collister, a moradora da cidade que teve a ideia de transformar aquela tragédia em motivo de festa.

"A bravura deles precisa ser devidamente comemorada", explica a moradora de Castletown.

Comemoração ganhou força

Logo após Fenella dar início ao movimento, o plano de usar a efeméride para promover um grande acontecimento na cidade foi tomando corpo e passou a envolver outros setores.
Com isso, a celebração passou a ser tratada como uma espécie de festival, com diversas atividades já programadas.

Visitas ao cemitério

Uma delas serão as visitações, em grupos guiados, ao cemitério da cidade onde estão enterrados os três heróis locais.

Outra, a inauguração de um memorial, no principal ponto da cidade, com os nomes dos três moradores em destaque - embora a oposição local já esteja reclamando que a placa encomendada exalta mais o nome do atual governador da ilha que o dos homenageados.

No monumento, haverá, também, um dos canhões do HMS Racehorse, que foi resgatado dos restos do naufrágio, quando ele foi encontrado por mergulhadores da cidade, meio século atrás.

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Imagem: Reprodução

Restos do naufrágio

Na ocasião do achado, além daquele canhão, um dos 18 que a nau inglesa possuia, foram recuperados objetos da época, como armas, brasões, munições, e até sapatos intactos da tripulação.

Boa parte disso foi parar no Museu Nacional da Ilha de Man, cujo governo, agora vislumbrando a oportunidade de ganhar visibilidade, resolveu aderir ao movimento de Castletown, e já anunciou uma "exposição especial dos artefatos na cidade, para celebrar o bicentenário do desastre".

"Faremos uma grande exposição temporária em Castletown", avisou, na semana passada, a curadora de arqueologia do museu, Allison Fox.

Até selo comemorativo

Além da movimentação geral causada na ilha pela proximidade da data histórica, os Correios da própria Inglaterra também decidiram embarcar nos festejos e lançaram uma série especial de seis selos comemorativos do naufrágio.

Um deles mostra o que seria o HMS Racehorse (não existem fotos do barco, apenas desenhos) semi-destruído, bem diante da cidade.

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Imagem: Reprodução

Os moradores de Castletown ficaram lisonjeados com a homenagem.

Deu origem à Guarda Costeira

Existe, no entanto, um fato bem mais significativo - e ainda mais positivo - envolvendo a tragédia do HMS Racehorse ("Corrida de Cavalo" em português, nome curioso, mas que já foi usado para batizar XXX outros navios na Marinha Inglesa, desde então).

Foi por causa do ato heroico daqueles moradores da cidade que uma autoridade da época na Ilha de Man, o político William Hillary, mais tarde agraciado com o título de "Sir", decidiu criar uma instituição para resgates no mar, a RNLI - Royal National Lifeboat Institution, uma espécie de guarda costeira inglesa, hoje responsável por todas as ações de salvamento na costa inglesa - e uma das instituições mais admiradas da Inglaterra.

Foi mais um legado deixado pela tragédia.

Outro fato ainda mais curioso

Embora peculiar, pelo que gerou em seguida, o naufrágio do HMS Racehorse não foi o único a alterar a vida de toda uma comunidade em uma ilha da Grã-Bretanha, no passado.

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Imagem: Whiskey Galore Movie

Mais de um século depois, em plena Segunda Guerra Mundial, outra ilha, a de Eriskay, na costa da Escócia, viveria um frenesi semelhante, quando o naufrágio de outro barco, o cargueiro SS Politician, rendeu aos moradores locais um tesouro inesperado: centenas de caixas de uísque da melhor qualidade, que o navio transportava.

Como naqueles tempos de guerra havia carência geral de tudo - especialmente bebidas alcoólicas -, os habitantes da ilha resolveram aproveitar ao máximo o "presente vindo do mar", e passaram dias e noites surrupiando secretamente caixas de uísque dos escombros do navio e as consumindo instantaneamente — o que fez com que todos os moradores da ilha passassem dias a fio completamente bêbados.

O caso rendeu uma das mais hilariantes histórias da costa inglesa, chegou a virar filme, e pode ser conferido clicando aqui.