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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Como quatro jangadeiros entraram para a história brasileira, 100 anos atrás

Blog A História de Alagoas/Reprodução
Imagem: Blog A História de Alagoas/Reprodução

Colunista do UOL

03/09/2022 04h00

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Esta semana, os alagoanos comemoraram, orgulhosos, um feito histórico de quatro humildes conterrâneos, um século atrás.

Na última semana de agosto de 1922, 100 anos atrás, quatro bravos jangadeiros de Alagoas partiram de Maceió com um objetivo tão audacioso quanto, até então, inédito: navegar da capital alagoana até cidade do Rio de Janeiro, na época capital do país, com uma simples jangada de feitas troncos amarrados, igual à que usavam na lida diária da pesca de subsistência no mar.

Mas aquela viagem tinha outro propósito, que não pescar: homenagear o primeiro centenário da Independência do Brasil (que esta semana completará 200 anos), com uma travessia nunca feita por uma jangada, embarcação típica do Nordeste brasileiro, mas, na época, ainda praticamente desconhecida pelos brasileiros da região sudeste — e que, não por acaso, foi batizada de "Independência".

Seria uma façanha extraordinária, que certamente chamaria a atenção das pessoas — e do governo federal — para os jangadeiros, uma classe de pescadores ignorada, que sequer era reconhecida pelas leis brasileiras como trabalhadores.

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Imagem: Blog A História de Alagoas/Reprodução

E aquela viagem acabaria mesmo chamando a atenção de todo mundo — pela dureza da jornada.

Sofreram horrores

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Jangadeiros - Histórias do Mar
Imagem: Blog A História de Alagoas/Reprodução

Ao longo de torturantes três meses de navegação, se equilibrando sobre a Independência, uma "jangada de seis paus" (ou seja, um feixe de meia dúzia de toras de madeira piúva amarradas umas às outras, com um mastro fincado no meio, e uma única vela, feita de tecido grosseiro), aqueles quatro homens — Umbelino José dos Santos, mestre da embarcação, de 45 anos, Joaquim Faustilino de Sant'Ana, de 41, Pedro Ganhado da Silva, de 36, e Eugênio Antônio de Oliveira, de 25 — sofreram horrores no mar, mas atingiram o objetivo de chegar ao Rio de Janeiro, onde foram recebidos pelo próprio Presidente da República, Artur Bernardes.

No entanto, erraram feio tanto no dimensionamento da empreitada quanto na duração da jornada.

11 dias viraram 98

Ingenuamente, os quatro jangadeiros haviam estimado fazer a travessia, de mais de 2 000 quilômetros de mar, costeando o litoral brasileiro, em apenas 11 dias. Levaram 98 — quase nove vezes mais tempo.

O cálculo equivocado — mas perfeitamente compreensível, já que nenhum deles jamais havia ido além do mar de Alagoas com uma jangada — fez com que as provisões que levavam na jangada acabassem rapidamente.

Especialmente, a palha de coco, usada como combustível para o "fogareiro" (uma simples lata vazia de leite em pó), no qual iam cozinhando os peixes que pescavam pelo caminho - único alimento com o qual contavam.

Viviam molhados

O grupo navegava durante o dia, mas quase sempre buscava o abrigo de praias para descansar, quando a noite chegava — isso, quando as condições do mar e das arrebentações das ondas permitiam chegar até a areia.

Quando não era possível "arribar", ou seja, tomar o rumo de alguma praia, para descansar, eles tentavam dormir como podiam, sobre a própria jangada em movimento e permanentemente molhados, porque aquele tipo de embarcação não oferecia a menor resistência a passagem do mar sobre o seu "casco" - daí, por outro lado, ser tão resistente.

Cada vez mais cansativa

Na medida em que o esforço e desconforto foram se acumulando no corpo daqueles homens, a travessia foi ficando mais dura e cansativa.

Mas eles seguiam em frente, determinados a chegar à Capital Federal, custasse o que custasse.

Não pensaram em desistir nem quando veio a primeira das nove tempestades que enfrentariam ao longo da viagem, ainda no mar da Bahia, uma dúzia de dias após a partida de Maceió.

Chegaram a nado na praia

A tormenta foi tão forte que virou a jangada, quebrou o mastro e fez os quatro alagoanos perderem não só a vela como tudo o que tinham a bordo.

Para não perderem, também, a própria jangada, a rebocaram, à nado, até uma praia da Baía de Camamu, onde foram acudidos por moradores.

Dias depois, refeitos do esforço de arrastar, apenas com a força dos braços, um feixe de toras de madeira no mar encapelado, os quatro jangadeiros retomaram a viagem.

Mas não por muito tempo.

Mortos ou vivos?

Logo, surgiu outra tempestade, tão violenta quanto a primeira — mas, felizmente, sem os mesmos danos à jangada —, que os obrigou a buscar abrigo em Ilhéus, onde passaram mais alguns dias.

Como, na época, as comunicações eram muito precárias, em Maceió, ninguém tinha notícias de seus conterrâneos, nem mesmo se ainda estavam vivos.

A única certeza é que, contrariando as previsões que haviam feito, os quatro jangadeiros ainda não haviam chegado ao Rio de Janeiro, o que só aconteceria dois meses depois de terem partido de Ilhéus.

Jangadeiros - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Acima de tudo, foi uma jornada longa e cruel.

Uma autêntica epopeia

Só em 2 de dezembro de 1922, três meses e sete dias após ter zarpado da capital alagoana, a jangada Independência, finalmente, entrou na Baía de Guanabara, para assombro dos cariocas — que jamais haviam visto uma embarcação daquele tipo em suas águas.

Muito menos jangadeiros, com suas vestimentas sempre encharcadas.

Jangadeiros - Histórias do Mar - Blog A História de Alagoas/Reprodução - Blog A História de Alagoas/Reprodução
Imagem: Blog A História de Alagoas/Reprodução

A improvável jornada daquele quarteto — quem diria? — havia dado certo. Uma autêntica epopeia.

Só ofereciam o sacrifício

O feito levou os alagoanos, chamados de "Lobos do Mar" pelos jornais cariocas, a serem recebidos no Palácio do Catete, então sede do Governo Federal.

Lá, eles entregaram uma mensagem enviada pelo líder da comunidade de jangadeiros a qual pertenciam, que dizia: "Já que os alagoanos nada podiam oferecer para a comemoração do centenário da independência do Brasil, contribuíam com o esforço e o sacrifício daqueles quatro homens" - que imediatamente passaram a ser admirados por toda a cidade.

As medalhas sumiram

Mas o verdadeiro clamor e reconhecimento veio quando os quatro alagoanos retornaram — de navio a vapor — à Maceió, onde foram saudados como heróis.

O desembarque dos jangadeiros na capital alagoana, no final daquele mês de dezembro, teve até desfile com banda de música pelas ruas da cidade (mais tarde, eles próprios virariam nome de rua em Maceió, a Jangadeiros Alagoanos, principal avenida do elegante bairro de Pajuçara, que mantém esse nome até hoje — além de também batizarem uma escola de samba...), e homenagens oficiais, como a criação de um monumento à beira-mar e a cunhagem de sete medalhas comemorativas de ouro, pelo governo do estado — uma para cada jangadeiro, e três para autoridades.

Jangadeiros - Histórias do Mar - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação
Jangadeiros - Histórias do Mar - Museu Histórico Nacional/Reprodução - Museu Histórico Nacional/Reprodução
Imagem: Museu Histórico Nacional/Reprodução

Não se sabe o destino daquelas moedas, exceto que uma delas foi parar no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, onde faz parte do acervo, e outra que por muito pouco não foi derretida, depois que o principal membro da expedição, mestre Umbelino, penhorou seu prêmio para pagar dívidas.

Apesar do ato quase heroico, os quatro jangadeiros continuaram vivendo na miséria.

Que fim levou a jangada?

Apesar da relevância do feito daqueles quatro jangadeiros para todos os alagoanos, não foram apenas as medalhas comemorativas que desapareceram com o tempo.

A própria jangada Independência também sumiu, após ter sido supostamente doada pelos jangadeiros ao próprio Museu Histórico Nacional, quando da chegada do quarteto à Capital Federal.

Nos registros do museu carioca, nunca constou tal jangada, bem como nos demais museus da cidade e do gênero, no país.

O mais provável é que a lendária embarcação, de cerca de sete metros de comprimento por pouco mais de um metro e meio de largura, tenha apodrecido esquecida em algum galpão da cidade, a despeito de sua relevância histórica.

Documentário sobre o fato

Jangadeiros - Histórias do Mar - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

"É muito pouco caso com um objeto que faz parte da história de Alagoas", lamenta o diretor de cinema Carlos Pronzato, que, também esta semana, lançou, em Maceió, um documentário sobre a saga dos quatro alagoanos com aquela jangada, um século atrás.

Batizado de "Jangadeiros Alagoanos: O Que Orson Welles Não Viu", o documentário narra a saga daqueles quatro homens, além de revelar os planos de outro jangadeiro, o também alagoano Claudevan Januário da Silva, de refazer aquela épica viagem nos dias de hoje, o que ele pretende fazer, mas ainda não sabe como nem quando.

Jangadeiros - Histórias do Mar - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Protesto contra o esquecimento

Mas, como o título deixa claro, o documentário também é uma forma de protesto contra o esquecimento do feito pelos demais brasileiros, a partir do momento que outros jangadeiros começaram a fazer o mesmo.

Sobretudo depois que o célebre cineasta americano Orson Welles veio ao Brasil para transformar outra travessia do tipo, a dos jangadeiros cearenses Manuel Olimpio Meira, o mestre Jacaré, Jerônimo André de Souza, Raimundo Correia Lima e Manuel Preto, que foram de Fortaleza ao Rio de Janeiro também com uma "jangada de seis paus", em 1941, no inacabado filme "É Tudo Verdade" — que nunca ficou pronto, porque mestre Jacaré morreu tragicamente durante a reconstituição da chegada do grupo à então Capital Federal.

A tragédia, e o nome de peso de Orson Welles, ofuscaram a pioneira travessia da Independência, 19 anos antes.

E isso incomoda os alagoanos até hoje.

Do Ceará a Buenos Aires

Além disso, 36 anos depois, outros quatro jangadeiros, todos cearenses (Luis Carlos de Souza, Samuel Isidro e José de Lima, capitaneados pelo mesmo Jerônimo André de Souza, da viagem imortalizada por Orson Welles), foram ainda mais longe, em uma improvável travessia de mais de 6.000 quilômetros, de Fortaleza a Buenos Aires, na Argentina, também com uma jangada feita de simples troncos de árvores.

Lá, foram recebidos com um misto de surpresa e incredulidade: como uma embarcação tão primitiva e precária poderia ter vindo de tão longe?

Amarrados ao mastro

Jangadeiros 9 - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

No caminho, os quatro jangadeiros enfrentaram fome, sede e tempestades terríveis, como uma, na costa do Uruguai, que chegou a obrigá-los a se amarrarem ao mastro da jangada, para não serem levados pelo mar - clique aqui para conhecer esta outra impressionante jornada, nunca mais repetida.

Mesmo assim, os quatro cearenses chegaram à capital argentina, ofuscando ainda mais o feito pioneiro dos companheiros alagoanos, que, até hoje, 100 anos depois, ainda busca sair do incômodo esquecimento fora dos limites de Alagoas.