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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Içar veleiro e cortar mastro: a saga do museu do maior navegador do Brasil

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Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

01/12/2021 04h00

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Foi uma operação complexa e que levou mais de um ano sendo intensamente discutida com os técnicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan.

Até que, cansado de argumentar, o navegador baiano (mas nascido na Ucrânia) Aleixo Belov jogou a toalha, aceitou a imposição do órgão e decidiu cortar o mastro do seu veleiro, para que ele coubesse dentro dos limites do telhado de um casarão do Centro Histórico de Salvador que ele comprara para realizar um velho sonho: criar um museu náutico, com lembranças de suas viagens — a começar pelo próprio barco com o qual fizera a maioria delas, o veleiro Três Marias, de pouco mais de 10 metros de comprimento, que ele mesmo construíra e que só caberia inteiro no museu se fosse construída uma claraboia no telhado do casarão, recurso que os técnicos do Iphan negaram.

Não teve jeito.

A única solução para o problema foi cortar um pedaço de 3,5 metros de comprimento do mastro do barco e abrir parte do teto, para que o barco entrasse na casa pelo telhado.

Em seguida, ruas foram interditadas e um poderoso guindaste ergueu o barco, de 7,5 toneladas, e o alocou dentro do casarão, diante de muito alvoroço da plateia.

Aleixo Belov - Histórias do Mar - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Salvador nunca havia visto nada igual — um veleiro sendo colocado dentro de uma casa, em pleno Centro Histórico da cidade.

E não era um barco qualquer e sim o veleiro do mais ilustre navegador da Bahia, o ucraniano Aleixo Belov, que vive em Salvador desde os seis anos de idade, quando sua família chegou ao Brasil fugindo dos horrores da guerra na Europa — e que, por essas e outras, hoje ostenta o título de Cidadão Soteropolitano, entre outros, bem mais relevantes.

Aleixo Belov - Histórias do Mar - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

A saga de Belov para colocar o seu barco dentro de uma casa tombada pelo Patrimônio Histórico de Salvador - bem como o pedaço do mastro que teve que ser decepado, como uma forma de protesto - são algumas das centenas de itens que fazem parte do novo Museu do Mar, em Salvador, que, será inaugurado hoje, após três anos de uma resiliente empreitada do baiano-ucraniano Aleixo Belov, hoje com 78 anos de idade.

Aleixo Belov - Histórias do Mar - Luciano Trink/Divulgação - Luciano Trink/Divulgação
Imagem: Luciano Trink/Divulgação

Cortei, chorando, um pedaço do mastro do barco, mas coloquei o bicho lá dentro. Eles não iriam fazer eu desistir dos meus planos", diz Belov, prestes a realizar o sonho de, enfim, inaugurar um museu com lembranças e equipamentos usados em suas andanças pelos mares do mundo.

Que não foram poucas.

Muito pelo contrário.

Maior do Brasil

Aleixo Belov é simplesmente o brasileiro (naturalizado, mas tão baiano quanto um acarajé) que mais navegou a passeio em todos os tempos — sobretudo sozinho no barco, sem mais ninguém a bordo.

Ele já deu cinco voltas ao mundo velejando (repetindo: contornou o planeta navegando cinco vezes), três delas sozinho no barco, com o mesmo veleiro que agora é a principal atração do museu prestes a ser inaugurado — nenhum outro brasileiro jamais navegou tanto, por puro prazer.

Aleixo Belov - Histórias do Mar - Divulgação - Divulgação
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Também navegou até a Antártica, onde passou uma temporada com um grupo de estudantes que não pagaram nada pela viagem.

Barcos e quadros

O Museu do Mar é uma espécie de legado que Belov quer deixar para os mais jovens ainda em vida.

Museu do Mar - Aleixo Belov - Histórias do Mar - Divulgação - Divulgação
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Ele exibe não só o principal veleiro que o navegador já teve, como quase tudo o que ele usou — e coletou — em suas andanças mundo afora.

Especialmente quadros e esculturas, duas outras paixões de Belov, o que torna o seu museu atraente até para quem não tem nenhuma familiaridade com o mar.

Aleixo Belov - Histórias do Mar - Divulgação - Divulgação
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"Nas minhas viagens, sempre que via uma pintura interessante nos portos por onde passava, eu comprava. Arrancava da moldura, para não ocupar espaço no barco, enrolava a tela e trazia para casa. Agora, quase todas elas estão no museu, porque o que é bonito e culturalmente rico deve ser compartilhado com todo mundo", diz Belov, que manteve em sua casa só algumas cópias dos quadros de que mais gosta.

"Todos nós vamos morrer um dia, o meu dia, talvez, esteja próximo, e eu não queria que meu acervo ficasse perdido. Daí veio a ideia do museu. Ele vai servir para quem quer aprender a navegar e ama o mar, como eu sempre amei", diz o velho navegador, que tem cinco filhos, três netos, um bisneto, dois casamentos desfeitos e o título de o velejador brasileiro que mais milhas navegou até hoje.

Levei muito tempo para aprender o que hoje sei sobre o mar e resolvi compartilhar isso, especialmente com os jovens, a quem caberá a missão de seguir navegando mundo afora".

Viagens gratuitas para estudantes

Bem antes de criar o museu, Belov já buscava incentivar os jovens baianos a navegar.

Tanto que suas duas últimas viagens de volta ao mundo foram feitas na companhia de grupos de estudantes, a bordo do veleiro-escola Fraternidade, que ele também construiu, para suceder o Três Marias, com espaço para mais pessoas a bordo.

Os jovens iam se revezando de trechos em trechos na viagem, com tudo pago por Belov.

O museu é a terceira fase do meu projeto de deixar um legado para os futuros navegantes do Brasil", explica Belov. "Na primeira fase, eu viajei sozinho, para ganhar experiência. Na segunda, levei estudantes para aprenderem in loco sobre a natureza. Agora, com o museu, quero despertar o interesse de mais pessoas pelo mar".

"Descobri que ainda não vivi"

A julgar por uma amostra que teve, dias atrás, quando abriu previamente o museu para o lançamento de mais um livro que escreveu sobre suas viagens (ele já fez nove deles), Belov está no caminho certo.

"Descobri que ainda não vivi", comentou, na saída, um dos visitantes, após saborear as fotos, vídeos e imagens das viagens de Belov, exibidas no novo museu, que terá entrada franca todas as quartas-feiras.

Primeiro brasileiro

O engenheiro Belov tinha 37 anos de idade e uma já bem-sucedida carreira como dono de uma empresa de engenharia naval quando, em 1980, decidiu tirar um ano sabático e dar uma volta ao mundo velejando.

Antes, porém, construiu, ele próprio, o barco que usaria na viagem: o veleiro Três Marias, que hoje ocupa o lugar mais nobre do seu museu.

Aleixo Belov - Histórias do Mar - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Na volta, 14 meses depois, ganhou até diploma da Marinha do Brasil, por ter sido o primeiro brasileiro a dar uma volta ao mundo navegando em solitário com um barco com bandeira do Brasil.

Vai partir de novo

Depois disso, repetiu a longa viagem outras quatro vezes.

Agora, mesmo próximo de completar 80 anos, está pronto para partir de novo.

"Ainda não sei pra onde, mas vou partir em janeiro", avisa. "Não vejo a hora de voltar pro mar, até para coletar mais coisas para o museu".

Baterá o recorde?

Embora garanta que ainda não tem um roteiro em mente, nada impede que Belov decida dar mais uma volta ao mundo navegando.

Se isso acontecer, há grandes chances de, na volta, ele acrescentar mais um título ao seu currículo: o de o homem mais velho do mundo a dar a volta ao mundo velejando sozinho, marca que atualmente pertence ao australiano Bill Hatfield, que, no ano passado, completou a circum-navegação do planeta pela mais perigosa das rotas.

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Imagem: Daria Blackwell

E aos 81 anos de idade (clique aqui para conhecer esta impressionante história).

O baiano-ucaniano Aleixo Belov está próximo disso.