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Os bastidores da pioneira transmissão do tri do Brasil na Copa de 70

Seleção brasileira na Copa do Mundo de 1970 - Gerência de Memória/CBF
Seleção brasileira na Copa do Mundo de 1970 Imagem: Gerência de Memória/CBF

Lucas Fróes - De Salvador para a BBC News Brasil

02/05/2020 07h56

"Alô, alô, México".

Era essa a deixa da vinheta de abertura das transmissões dos jogos da Copa do Mundo de 1970 na televisão brasileira. As imagens da Seleção que conquistou o Tri no México, há 50 anos, são até hoje as mais lembradas do nosso futebol em todo o mundo.

Para quem viveu a época, uma novidade tornou tudo ainda mais empolgante: aquela foi a primeira Copa com transmissão ao vivo na TV para o Brasil.

Por aqui, até 1966, a Copa do Mundo só podia ser acompanhada ao vivo pelo rádio. Na televisão, os jogos demoravam pelo menos até o dia seguinte para serem exibidos. As transmissões internacionais via satélite começaram em 1967, com um programa especial chamado "Our World", exibido ao vivo para 24 países.

Mas o Brasil só entrou nessa era em 1969, graças a uma estação da Embratel instalada em Tanguá, no Estado do Rio de Janeiro. Uma entrevista no Vaticano com o papa Paulo 6º, exibida pela Globo no dia seguinte, foi a primeira transmissão via satélite na tevê brasileira. Depois, os brasileiros puderam assistir, dessa vez ao vivo, à decolagem da missão Apollo 9 e à chegada do homem à Lua na missão Apollo 11.

Para a Copa do Mundo do ano seguinte, após tensa negociação com o empresário mexicano Emilio Azcárraga Milmo, os direitos de transmissão da competição foram vendidos para quatro emissoras brasileiras, mas só haveria um sinal de áudio à disposição. A solução, por meio de um "pool" formado por Tupi, Globo, Record e Bandeirantes, foi exibir a mesma transmissão em cadeia para todos os canais, com narradores e comentaristas se revezando a cada jogo e também na mesma partida.

"Eu estava de férias em Ubatuba, e me encontrou na praia um motorista da Bandeirantes, que disse que a diretoria tinha mandado ele lá para 'subir' comigo pra tomar as providências para a transmissão da Copa. Eu nem imaginava a possibilidade de uma transmissão ao vivo", relembra o narrador Fernando Solera, 87, último remanescente daquela equipe de transmissão.

Homenagem ao narrador Fernando Solera, publicada após a Copa do Mundo - ARQUIVO THIAGO UBERREICH - ARQUIVO THIAGO UBERREICH
Homenagem ao narrador Fernando Solera, publicada após a Copa do Mundo
Imagem: ARQUIVO THIAGO UBERREICH

A seleção da TV tinha os narradores Geraldo José de Almeida, Walther Abrahão, Oduvaldo Cozzi e Fernando Solera, com a companhia dos comentaristas João Saldanha - técnico da Seleção nas Eliminatórias -, Rui Porto, Geraldo Bretas e Leônidas da Silva.

O rodízio entre eles foi decidido através de um sorteio realizado na Cidade do México pelo diretor da TV Tupi, Enéas Machado de Assis, que coordenava as atividades dos integrantes do pool. Mas todos tiveram o seu momento de destaque durante a transmissão da campanha do Tri.

Olha lá, olha lá, no placar!

"Alô, alô, Brasil! Alô, meu caríssimo telespectador da Rede Brasileira de Televisão". Assim, do estádio Jalisco, em Guadalajara, Fernando Solera iniciou a transmissão da estreia do Brasil contra a antiga Tchecoslováquia, no dia 3 de junho, tendo a seu lado, nos comentários, o craque Leônidas da Silva, artilheiro da Copa do Mundo de 1938. "Estávamos ultrainteressados em viver a experiência", conta Solera à BBC News Brasil.

Aos 11 minutos de jogo, a imagem que focava Pelé mudou rapidamente para o atacante Petras, que invadiu a área brasileira e tocou por cima de Félix para abrir o marcador. "Ô, meu Deus do céu, olha o gol de Petras para a Tchecoslováquia", lamentou Solera.

Mas ele logo narraria o primeiro gol da Seleção em Copas transmitido ao vivo na tevê brasileira, depois que Pelé cavou falta na entrada da área. "Onde está o Rivelino? Onde está o Rivelino?", perguntou, como se já soubesse que Riva soltaria a bomba que os mexicanos apelidariam de patada atômica. "Não dava outra coisa, Leônidas! Rivelino e fim de papo, 1 a 1".

Nos 45 minutos a que tinha direito, Solera ainda narrou um dos lances mais marcantes daquela Copa, quando Pelé chutou de trás da linha do meio-campo e quase marcou um golaço. "A sobra é para Pelé, que resolve tentar enganar o goleiro e quase, quase, quase, quase, quase que ele derruba esse estádio se ele faz esse gol", disse na transmissão. "Essas coisas é que fazem o futebol ser sensacional", completou.

A partir daí, seria a vez de Geraldo José de Almeida - o inventor do apelido "Seleção Canarinho" - soltar a voz com o show brasileiro no segundo tempo. Gérson fez lançamento perfeito para Pelé, que dominou a bola no ar como numa coreografia, deixou ela quicar e soltou a bomba para virar o jogo.

Geraldo José de Almeida, o "Gera", inventor do termo "seleção canarinho" - ACERVO QUE FIM LEVOU - ACERVO QUE FIM LEVOU
Geraldo José de Almeida, o "Gera", inventor do termo "seleção canarinho"
Imagem: ACERVO QUE FIM LEVOU

O narrador gritou o seu bordão característico na hora do gol: "Olha lá, olha lá, no placar", carregando na pronúncia da letra r. "Deus lhe pague, Pelé! Golaço de Pelé, Saldanha".

No terceiro gol do Brasil, Jairzinho aproveitou a linha de impedimento mal feita pelos tchecos para receber livre outro belo lançamento de Gérson, dar um lençol no goleiro e marcar um golaço.

"Desculpa, Geraldo, essa pedra eu cantei. Os tchecos tavam marcando no impedimento, e (n)a jogada comprida o Jair tinha que ficar ali pelo meio porque aí é uma barbada", comentou João Saldanha, treinador da Seleção até março daquele ano. Jairzinho ainda marcou o quarto gol do Brasil, em bela jogada individual, para mais vibração de Geraldo José.

"Ele tava inspirado, foi o melhor momento da carreira dele", conta o narrador Luiz Alfredo, filho de Geraldo José, o "Gera".

Na rodada seguinte, contra a Inglaterra, atual campeã do mundo, Gera e Saldanha transmitiram o primeiro tempo. "Uma cabeçada estonteante de Pelé, a bola estava quase dentro. Por pouco, pouco, muito pouco, pouco mesmo, Pelé não inaugurou", narrou Geraldo José, com outro de seus bordões, a famosa cabeçada de Pelé defendida por Gordon Banks.

No segundo tempo, o comando foi de Walter Abrahão, que narrou o gol da vitória do Brasil após grande jogada de Tostão: "Vai, Tostão; vai, Tostão; bem, Tostão. Ó o Pelé aí, é sua Pelé, é sua Jairzinho, olha o gol aí. Gol sensacional de Jairzinho! Uma jogada de mestre de Tostão". Os momentos finais do jogo foram ao som da música "Pra frente, Brasil", a mesma da vinheta de abertura, tema da Seleção na Copa. Em Londres, após a partida, uma frase apareceu escrita nos muros pela cidade: "Rivelino Revelation".

Bastidores

A Seleção continuou sua campanha rumo ao Tri, derrotando a Romênia por 3 a 2 e o Peru por 4 a 2. Quando não estavam transmitindo os jogos para o pool da Rede Brasileira de Televisão, narradores e comentaristas trabalhavam na cobertura da Copa, convivendo com os demais colegas de rádios, jornais e revistas, tendo fácil acesso aos jogadores da Seleção. "O contato era livre", explica Solera.

No Brasil, a venda de televisores aumentou com a expectativa pela Copa transmitida ao vivo, embora as residências com o aparelho ainda fossem minoria. As imagens do que acontecia no México eram enviadas coloridas para todo o mundo, mas aqui ainda eram retransmitidas em preto e branco aos telespectadores, exceto para autoridades em Brasília, profissionais envolvidos na transmissão e seus convidados.

Nas ruas não existiam telões, e o público se aglomerava perto de pequenos televisores.

"Na semifinal, o Gera ligou, a gente falou da festa e da loucura que estava aqui. Ele disse que estava com inveja de mim, e eu disse que estava com inveja dele e de quem estava lá", lembra Luiz Alfredo.

Geraldo José narrou o primeiro tempo da semifinal contra o Uruguai. Ele chamava Gérson de "O Monstro de Guadalajara", Everaldo de "Gauchão", Tostão de "Mineirinho de ouro" e Pelé simplesmente de "Ele". O Uruguai abriu o placar, mas o Brasil empatou aos 44: "Brasil no ataque: Tostão. Vamos, minha gente! Que bola-bola, Clodô, olha lá, olha lá, olha lá, olha lá no placar: Clodoaldo".

No segundo tempo, a novidade foi o revezamento entre Oduvaldo Cozzi e Walter Abrahão, narrando cada um a metade dos 45 minutos restantes, com os comentários de Geraldo Bretas e Rui Porto. "Meu Deus do céu, Pelé põe a mão na cabeça", narrou Cozzi depois que Pelé rebateu de primeira o tiro de meta do goleiro Mazurkiewicz e quase marcou. A virada veio quando Walter Abrahão já estava ao microfone: "Vejam Pelé ao lado, atrás Tostão, ligeiro o toque, foi bom. Tostão a Jair, grande jogada, atenção, telespectadores, pintou: gol do Brasil! Gol de Jairzinho! Sensacional!", vibrou. No terceiro gol, marcado por Rivelino, Abrahão quebrou o script: "Eu já perdi a voz, telespectadores. É sensacional! Deus está me ajudando e está ajudando o Brasil".

Ainda houve tempo para Pelé assinar mais um de seus lances que entraram para a história, quando deu um drible de corpo no goleiro e chutou a bola rente à trave: "Vai de novo Pelé, atenção, olha o quarto gol aí... ah, mas que falta de sorte".

O melhor futebol do mundo no barbante deles

Na final contra a Itália, no estádio Azteca, na Cidade do México, no dia 21 de junho, Oduvaldo Cozzi e Walter Abrahão continuaram o revezamento, dessa vez no primeiro tempo. Cozzi teve mais sorte: "Olha aí, Pelé de cabeça: gol! Pelé, no centro de Rivelino! Pelé! Rivelino levantou, Pelé meteu um tento a zero".

No momento exato em que Walter Abrahão dizia que não havia distração na defesa brasileira, Clodoaldo tentou um bonito e displicente passe de calcanhar, perdeu a bola e a Itália empatou: "Não, Clodô! Não, Clodô! Apareceu Boninsegna, Brito salva, entra Gigi Riva, gol aberto, e o gol da Itália. O gol da Itália numa jogada sem nenhuma necessidade de Clodoaldo. Um pecado mortal do nosso grande médio Clodoaldo".

No último lance de Abrahão na Copa, o árbitro alemão Rudi Glöckner apitou o fim do primeiro tempo antes mesmo da marca dos 45 minutos, enquanto Pelé dominava a bola e mandava em vão para a rede: "É um indivíduo mal-intencionado", irritou-se.

Coube a Fernando Solera narrar o segundo tempo e encerrar a transmissão da campanha da Seleção, iniciada na voz dele mesmo. Na hora dos gols, seu bordão "O melhor futebol do mundo no 13", referência à TV Bandeirantes, teve que ser adaptado para o pool de emissoras que transmitia a Copa.

"Aí está Jair pra receber, pelo miolo procura Jair a caminhada, escondeu a bola, deu a Gérson, atenção, tentou: o melhor futebol do mundo no barbante deles". O barbante italiano voltou a balançar: "Olha lá Pelé, atenção, Jair, Jair: o melhor futebol do mundo no barbante deles".

Aos 41 minutos, a obra-prima coletiva da Seleção começou quando Clodoaldo driblou quatro italianos: "Olha aí o show! É dessa maneira que se ganha a Copa". Clodô tocou pra Rivelino, que acionou Jairzinho, que deu a Pelé. De costas para o gol e de frente para o Rei, Tostão estendeu o braço esquerdo apontando para a chegada de Carlos Alberto, que soltou uma bomba aproveitando o quique providencial da bola: "O melhor futebol do mundo no barbante deles! Acabou a Copa", decretou Solera.

"Meu Deus do céu, eu terminei esta Copa com esse segundo tempo que dá a vitória ao meu Brasil, 4 a 1, tricampeão. Jules Rimet está encerrada, não há mais Jules Rimet, vamos pra outra", disse no ar, enquanto a festa tomava conta do gramado. Pelé foi coroado Rei por aclamação com um chapelão mexicano, Rivelino desmaiou, Tostão, apavorado, teve seu uniforme tirado à força por torcedores, e Zagallo foi carregado com a prancheta de técnico na mão.

Carlos Alberto Torres carrega a Taça Jules Rimet depois de vencer a Copa do Mundo de 1970 - AP Photo/Gianni Foggia - AP Photo/Gianni Foggia
Carlos Alberto Torres carrega a Taça Jules Rimet depois de vencer a Copa do Mundo de 1970
Imagem: AP Photo/Gianni Foggia

Enquanto isso, João Saldanha caminhava sozinho. Em depoimento à TV Cultura, em 2014, o jornalista Michel Laurence contou que após o jogo desceu para o centro de imprensa, no fosso do estádio Azteca, e encontrou João Saldanha. Empolgado, parabenizou o ex-técnico da Seleção e disse que um pedaço daquele título era dele.

"Você acha, Laurence?", perguntou um sério Saldanha. Laurence disse que sim e que tinha certeza de que ele seria festejado como um campeão do mundo quando chegasse ao Brasil. "Não acho, não", disse Saldanha, puxando do paletó seu passaporte e mostrando um carimbo que o obrigava a se apresentar à Polícia Federal em no máximo 48 horas depois do término da Copa do Mundo.

Em março de 1970, pouco antes de sua demissão, ele envolveu-se numa discórdia com o general Médici, que presidia o país na fase mais repressora da ditadura militar e queria a convocação do artilheiro Dario, do Atlético Mineiro. Numa entrevista, em tom ameno, mas irônico, Saldanha disse: "nem eu escalo ministério, nem o presidente escala time".

Já sem censura e ditadura, em 1987, no programa Roda Viva, Saldanha declarou: "Eu considero o Médici o maior assassino da história do Brasil (...), o cara matou amigos meus. Eu levei pro México uma pilha de documentos de três mil e poucos presos, trezentos e tantos mortos, e não sei quantos torturados". João Saldanha faleceu em 1990, na Itália, quatro dias depois do fim da Copa do Mundo que cobria pela TV Manchete.

Não foi só João Saldanha que aproveitou a ida ao México. Geraldo José de Almeida levou encomenda aos exilados brasileiros que estavam no país sede da Copa, missão repassada a ele por seu filho. "Foi emocionante, porque eu conversei com ele, e o Gera era ultraconservador. E quando eu voltei, ele já tinha comprado uma tremenda de uma mala enorme, com goiabada e coisas pra levar pro pessoal", explica Luiz Alfredo.

No México, Gera e Saldanha também trabalharam para a imprensa local. Por sugestão de Saldanha - que era membro do Partido Comunista Brasileiro -, doaram todo o dinheiro que ganharam para os exilados brasileiros.

Apesar de estarem em polos opostos ideologicamente, a dupla da Globo era afinada: "Eram amicíssimos, irmãos", garante Luiz Alfredo, que narrou o Tetra, em 1994, pelo SBT.

Geraldo José de Almeida faleceu em 1976. Após sua morte, o ginásio do Ibirapuera passou a levar seu nome.

Meio século depois do pioneirismo na Copa do Mundo de 1970, a televisão brasileira alterou bastante seus padrões, e uma transmissão naquele formato jamais se repetiu.