Eficiência que fala muito

Após dez anos, Corinthians de Tite pode ser superado como melhor campeão da história da Libertadores?

Tales Torraga Colunista do UOL, em São Paulo Robson Ventura/Folhapress
Robson Ventura/Folhapress

Na semana passada, o Corinthians completou 112 anos e as redes sociais explodiram debatendo qual o principal título da história do clube: o Campeonato Paulista de 1977 ou a Libertadores de 2012? As duas conquistas representam o fim do "sofrimento" tão apregoado pelo corintiano. Em 1977, a torcida cresceu mesmo com duros 22 anos sem títulos. Em 2012, a catarse representou o alívio de enfim conquistar a América, algo que seus concorrentes diretos em São Paulo já haviam feito.

Piadas como "só no dia em que o Corinthians ganhar a Libertadores" foram enterradas depois de uma campanha invicta, resgatada neste especial do UOL. Com depoimentos inéditos e uma releitura histórica que só o distanciamento dos anos permite, é possível dimensionar melhor se aquela conquista é, de fato, marcante não apenas para a torcida, mas também para a história do futebol sul-americano e mundial.

Técnico do Corinthians naquela final contra o Boca Juniors, Tite gritou a Juan Román Riquelme que ele "falava muito". No ano anterior, fizera o mesmo com Luiz Felipe Scolari. O jargão é simbólico. Os torcedores adversários também "falavam muito". E hoje é aquela trajetória que segue dizendo demais.

Como tudo no futebol, a polêmica continua. Até porque outra máquina de jogar futebol pode repetir o feito daquele Corinthians de 2012. Estamos falando do Flamengo de Dorival Júnior, que massacrou, na semana passada, o Vélez Sarsfield na primeira semifinal, e em plena Argentina.

Na atual Libertadores, o Rubro-Negro tem dez vitórias e um empate, e, salvo alguma enorme surpresa, tem ainda dois compromissos por diante: a segunda semifinal contra o Vélez, depois de amanhã (7), e a finalíssima em jogo único, em Guayaquil (Equador), no dia 29 de outubro, contra Palmeiras ou Athletico.

Sempre concorrendo entre si, Flamengo e Corinthians mergulhariam numa discussão sem fim ao comparar seus títulos invictos. O corintiano tem um forte argumento desde já. Sua campanha em 2012 teve um jogo a mais, com a decisão sendo disputada ainda no sistema de ida e volta.

Mas como a imaginação do torcedor contraria até a matemática, é de se imaginar múltiplas lógicas próprias brotando tão logo soe o apito final em Guayaquil, seja quem for o campeão...

AFP Emerson Sheik toca na saída do goleiro Sosa e faz o segundo gol do Corinthians contra o Boca: título garantido

Emerson Sheik toca na saída do goleiro Sosa e faz o segundo gol do Corinthians contra o Boca: título garantido

Incontestáveis: os 7 campeões invictos da Libertadores

  • 1960 - Peñarol-URU (7 jogos - 3 vitórias e 4 empates)

    A primeira edição da história da Libertadores contou com apenas oito times, que se perfilaram em um mata-mata até a decisão. O título foi obtido contra o Olimpia, do Paraguai.

  • 1963 - Santos (4 jogos - 3 vitórias e 1 empate)

    Então campeão vigente, o histórico time de Pelé entrou apenas nas semifinais, batendo, na sequência, Botafogo e Boca Juniors, dois imensos esquadrões.

  • 1964 - Independiente-ARG (7 jogos - 5 vitórias e 2 empates)

    Foi o primeiro dos sete títulos do gigante argentino. Superou um triangular na primeira fase. Depois, venceu o Santos na semifinal e ergueu o título ante o Colo-Colo, do Chile.

  • 1969 - Estudiantes-ARG (4 jogos e 4 vitórias)

    Era o campeão vigente e entrou apenas nas semifinais, batendo Universidad Católica (Chile) e Nacional (Uruguai). Única campanha 100% na história. Os brasileiros não participaram.

  • 1970 - Estudiantes-ARG (4 jogos - 3 vitórias e 1 empate)

    Repetiu a conquista do ano anterior, também entrando nas semifinais. Conquistou o título contra o duríssimo Peñarol. De novo, os brasileiros não mandaram representantes.

  • 1978 - Boca Juniors-ARG (6 jogos - 4 vitórias e 2 empates)

    Campeão de 1977 em cima do Cruzeiro, entrou só no triangular semifinal. Superou River Plate e Atlético-MG, e depois atropelou por 4 a 0 na decisão o Deportivo Cali, da Colômbia.

  • 2012 - Corinthians (14 jogos - 8 vitórias e 6 empates)

    Única campanha invicta no formato mais conhecido, com fase de grupos com quatro times e mata-mata em ida e volta das oitavas de final em diante.

Leandro Moraes/UOL
Torcedores do Corinthians em frente ao Pacaembum em 2012

Pacaembu, ponto final

O Corinthians abriu a Libertadores de 2012 fazendo aquilo que é fácil de explicar e difícil de aplicar: dominar a fase de grupos para depois sempre decidir o mata-mata em casa. Seguindo esta cartilha, o time liderou a chave que continha também Cruz Azul (México), Nacional (Paraguai) e Deportivo Táchira (da Venezuela).

Com quatro vitórias e dois empates, o Corinthians alcançou a segunda melhor campanha geral daquela Libertadores, atrás apenas do Fluminense (com cinco vitórias e uma derrota).

Colocar o ponto final do mata-mata diante da torcida era algo que intrigava Tite. Afinal, as três eliminações anteriores, nas oitavas de final de 2010 (contra o Flamengo), 2006 e 2003 (ambas contra o River Plate), também ocorreram em casa, diante dos perplexos corintianos.

"O que temos adiante é o adversário, não o nosso passado", falava Tite à época, tentando diminuir a pressão.

Talyta Vespa/UOL Pacaembu: estádio está sendo reformado e estava, em janeiro de 2022, sem parte das arquibancadas. Tobogã foi demolido há um ano

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O Corinthians começou a espantar seus fantasmas contra o Emelec (do Equador), que eliminara Flamengo e Olimpia na fase de grupos. Uma vitória por 3 a 0 comprovou. Aquele Corinthians tinha, sim, algo que os anteriores não possuíam: frieza.

O sangue gelado foi testado também fora de casa, na "trilogia" dos alçapões que vieram a seguir, São Januário (nas quartas de final), Vila Belmiro (semifinal) e Bombonera (decisão).

Como prêmio, a possibilidade da catarse geral perante os seus fieis. Na histórica noite de 4 de julho, diante de 39.959 corintianos que desembolsaram de R$ 50 a R$ 500 por um ingresso, o bando de loucos exorcizou seus traumas e a gozação rival.

Aquela comemoração selaria também o fim da história de amor do Corinthians com o Pacaembu. Palco de momentos únicos do time, como a conquista do Campeonato Paulista de 1954 e o fim da fila contra o Santos em 1968, o estádio receberia ainda outra festa corintiana, a Recopa de 2013, infinitamente menor na retina corintiana em comparação com a Libertadores.

O Pacaembu está fechado para virar um complexo de luxo, com lojas, hotel e restaurantes. Restou, como repetia o escritor americano Norman Mailer, apenas o "vento gelado da saudade". A praça em frente ao estádio hoje é um santuário, um lugar de culto a corintianos até de outros países, que vão para lá apenas para sentir a magia das tardes e noites épicas do passado.

Robson Ventura/Folhapress

Muralha alvinegra

No fim dos anos 1970, o Corinthians teve uma famosa defesa chamada de "muralha negra", com o goleiro Jairo, os laterais Zé Maria e Wladimir e os zagueiros Amaral e Mauro, todos eles negros.

Em 2012, por mais que os dois gols de Emerson Sheik contra o Boca no Pacaembu sejam gritados até hoje, há outros dois gols que merecem enorme destaque: os apenas e tão somente dois gols sofridos pela defesa corintiana em todos os oito jogos daquela mata-mata. Um desempenho digno da "muralha alvinegra", como aquela zaga passou a ser chamada.

Os oito jogos somados representam 720 minutos, sem contar os acréscimos. Desde a adoção do formato atual, em 1989, apenas dois outros campeões da Libertadores levaram dois gols em todo o mata-mata: o Estudiantes do técnico Alejandro Sabella (em 2009) e o River de Marcelo Gallardo (em 2015).

Era um time que contava também com o combate dos volantes [Ralf e Paulinho]".

Rolando Schiavi, zagueiro daquele Boca, ao UOL

Eles jogavam duro e simples, como devem ser as boas defesas".

Matías Caruzzo, também zagueiro do Boca, ao UOL

Nenhum brasileiro a levantar o título exibiu tamanha solidez, mas aí entra de novo o atual Flamengo, que sofreu apenas um golzinho nas cinco partidas eliminatórias até aqui.

Famoso por montar times coesos, Tite desenvolveu um verdadeiro ferrolho com os laterais Alessandro e Fábio Santos. Os zagueiros eram Chicão e Leandro Castán.

Impossível não destacar também o goleiro Cássio, que brilhou em momentos decisivos, como no chute de Diego Souza, nas quartas de final, contra o Vasco. Quando houver a inevitável discussão sobre o maior goleiro da história do Corinthians, se Gylmar, Dida, Ronaldo ou Cássio, a "muralha internacional sem igual" merece entrar no debate.

O mapa da América: mata-mata invicto de 2012

  • Oitavas de final: Emelec

    Placares: 0x0 no Equador e 3x0 no Brasil. Espantou o fantasma das eliminações anteriores e mostrou uma qualidade que este Corinthians cravaria na sua história: a maturidade emocional.

  • Quartas de final: Vasco

    Placares: 0x0 no Rio, 1x0 em São Paulo. Não se apavorou nem nos minutos finais, que levariam a decisão para os pênaltis. O gol salvador de Paulinho coroou o time que soube atacar e sobreviver aos riscos.

  • Semifinal: Santos

    Placares: 0x1 na Vila Belmiro, 1x1 no Pacaembu. Soube golpear o Santos na Vila Belmiro e controlar o resultado diante do então campeão da América. Em casa, reagiu com calma ao gol de Neymar, chegando rápido ao empate.

  • Final: Boca Juniors

    Placares: 1x1 na Argentina, 2x0 no Brasil. A temida Bombonera não fez o Corinthians tremer. No Pacaembu, dominou o Boca e a ansiedade da torcida. Soube "ganhar o jogo na hora certa", sendo prático e eficiente.

Yasuyoshi Chiba/AFP Photo

Da "empatite" ao Don Adenor

Adenor Leonardo Bacchi, o Tite, entrou na vida com o Corinthians em 2001. Desconhecido no cenário nacional, ele era o técnico do Grêmio que calou o Morumbi e conquistou a Copa do Brasil em cima do Corinthians de Vanderlei Luxemburgo.

Em 2002, a seguinte ideia dominava as conversas da torcida do Corinthians: já com Carlos Alberto Parreira, a equipe exibia então uma das suas formações mais interessantes, com o "melhor lado esquerdo do mundo", com Kléber, Ricardinho e Gil.

No imaginário do torcedor, aquela Libertadores de 2002, cuja final foi São Caetano x Olimpia, com título dos paraguaios, era das mais fáceis para enfim ganhá-la. E o Corinthians só conseguiria conquistá-la depois de esperar exatamente uma década.

E exatamente com Tite, o carrasco que evitara aquela participação em 2002.

Em 2011, Tite ainda resistiria às enormes pressões da eliminação da pré-Libertadores (contra o Tolima da Colômbia), virando uma referência sobre como o futebol também recompensa planejamentos. Ele se uniu com o elenco, ganhou o Brasileirão de 2011 e montou o corpo e a mente do Corinthians que conquistaria invicto a América no ano seguinte.

Os dois volantes do Boca vencido pelo Corinthians na decisão hoje são treinadores: Leandro Somoza (do Aldosivi, da Primeira Divisão da Argentina) e Walter Erviti (sem clube). "Aquele Corinthians foi um exemplo de time equilibrado, de como é possível atacar e combater", resumiu Somoza ao UOL. "O futebol simples tem sua beleza, a beleza da eficiência. É o que eu me lembro daquele Corinthians", ampliou Erviti também ao UOL.

No comando da seleção brasileira que tenta o título na Copa do Mundo do Qatar, Tite pode igualar uma marca importante de Luiz Felipe Scolari, o único brasileiro a conquistar a Libertadores e a Copa do Mundo. Felipão comandou Grêmio (1995) e Palmeiras (1999) antes de sagrar-se pentacampeão com a seleção em 2002.

E campeão do mundo com clubes e seleção, Tite seria o único? Não. Mas integraria um trio ilustre, com o espanhol Vicente del Bosque (campeão do mundo com o Real Madrid em 2002 e com a Espanha em 2010) e o italiano Marcello Lippi (vencedor do Mundial de 1996 com a Juventus e da Copa do Mundo de 2006 com a própria Itália).

"Bilardismo" e "Menottismo"

Escolas argentinas históricas se unem em elogios ao Corinthians

AFP: France Presse

Carlos Bilardo, campeão da Copa do Mundo de 1986

"Vocês sabem que sempre disse que as finais se ganham, não se jogam. E vocês viram o que o Corinthians fez com o Boca? É isso que sempre disse. O futebol muitas vezes se parece com o boxe. É acertar e nocautear. Faz o primeiro gol, pum, o segundo, lona. O Boca não se achou. Quando abriu a guarda, tomou o segundo. É essa a diferença entre um campeão e um vice. A potência do soco. Podem dizer o que quiserem, mas para ganhar é preciso ser eficiente. Não existe campeão ineficiente", ao programa "La Hora de Bilardo" em 2012.

Claudia Daut/Reuters

César Luis Menotti, campeão da Copa do Mundo de 1978

"Prezo demais por times equilibrados, e este Corinthians com certeza foi um dos campeões mais completos da Libertadores recente. Era um time de muita técnica, bem ao estilo brasileiro, mas que trouxe uma inovação: um rigor tático muito definido. Foi um time que jogou e não se descuidou, algo que não caracterizava outras equipes do Brasil. Era uma capacidade coletiva marcante daquele time. Ganhar é diferente de não perder. E ganhar invicto, sem jamais ter perdido, é como tocar o céu com as mãos", ao UOL.

Claudio Santana/AFP

"Um dos melhores do mundo"

Dois "imperadores" marcaram o 2012 do Corinthians. O primeiro? O atacante Adriano, dispensado em março, logo no começo daquela campanha. O segundo foi Julio Cesar Falcioni, técnico do Boca Juniors que enfrentou o Corinthians na decisão. "Imperador" é seu apelido na Argentina pela maneira persuasiva de ser. Hoje com 66 anos, no comando do Independiente, ele relembrou aquele 2012 ao UOL.

UOL - O brasileiro costuma olhar para aquele Boca como um time inferior aos demais na história do clube na Libertadores...
Falcioni - Fomos campeões invictos do Campeonato Argentino e tínhamos um grupo experiente, com o ídolo [Riquelme]. O futebol é assim, comporta opiniões diferentes, principalmente em outros países. Mas nossa campanha não teve questionamentos.

Tanto que o senhor seguiu no cargo depois da final contra o Corinthians...
E por mais cinco meses. Comprova a aceitação do nosso trabalho. Jogamos todas as partidas que eram possíveis na Libertadores. E nosso rival depois ganhou o Mundial de Clubes. Não perdemos para um time qualquer.

Dez anos depois, o que faria diferente?
Seguraria a vitória na Bombonera. Permitimos o empate, até então liderávamos a série. A atuação na primeira final foi aquém das nossas capacidades. E isso pode custar um título, como nos custou.

Como vê o trabalho de Tite hoje?
Como um dos melhores técnicos do mundo. Ele já poderia ser considerado assim em 2012. Ganhou a Libertadores sem perder, e hoje comanda a seleção brasileira na Copa do Mundo. Não há o que questionar.

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