Sobre sonhos e pesadelos

Glória do primeiro título colombiano na Libertadores é assombrada por violência, narcotráfico e Pablo Escobar

Bruno Grossi Colaboração para o UOL, em São Paulo Jan Sochor/Getty Images

Foram 29 anos entre a primeira edição da Copa Libertadores da América e a primeira conquista de um time colombiano na competição. No período, foram quatro vices que aumentaram as expectativas de torcidas apaixonadas. Até que, em 1989, uma equipe histórica, que se tornaria base de uma das seleções mais carismáticas e envolventes da história, levou a primeira taça da Libertadores para a Colômbia.

O problema é que as glórias de uma campanha histórica acabaram ofuscadas pelo medo, pela violência e pelas denúncias de corrupção. Quando se fala no Atlético Nacional campeão da Libertadores de 1989, é muito mais fácil lembrar de Pablo Escobar e seu império do tráfico de drogas, responsável por incontáveis crimes violentos entre as décadas de 1970 e 1990.

Time e cartel ocupavam a mesma cidade e tinham relações estreitas graças a Escobar, o que motivou uma série de relatos e ilações sobre supostas ameaças e propinas para árbitros e jogadores adversários. Mas quem viveu de perto a campanha do título do Atlético Nacional tenta fugir até hoje desses fantasmas e mostrar que o troféu levantado em 1989 representava a esperança de uma nação diante do sangue e das lágrimas que não paravam de escorrer pelo país.

Jan Sochor/Getty Images

O ano sangrento

O ano de 1989 foi um dos mais violentos de toda a guerra entre narcotraficantes, governo, polícia e milícias na Colômbia. Assassinatos eram encomendados pelos cartéis de Medellín, liderado por Pablo Escobar, e de Cali, dos irmãos Rodríguez Orejuela. E foi assim que um avião da Avianca foi derrubado com o objetivo de matar um candidato à presidência da Colômbia - César Gaviria - naquele ano.

Nesse contexto, o futebol não passou incólume. Um árbitro foi assassinado após uma partida do Campeonato Colombiano, que chegou a ser suspenso. As investigações na época falavam em envolvimento dos cartéis de Medellín e Cali, que tentavam lucrar com o esporte a partir de apostas clandestinas.

As denúncias da presença do narcotráfico no futebol e o assassinato do árbitro Álvaro Ortega, em Medellín, obrigaram ainda o Atlético Nacional a disputar a final da Libertadores de 1989 longe de seu povo. O duelo de volta contra os paraguaios do Olimpia foi transferido para Bogotá, no estádio El Campín, por razões de segurança.

Ter um passaporte colombiano se tornou um estigma. Mas o país tem quase 50 milhões de habitantes e a imensa maioria não tem nenhuma relação com o narcotráfico. São mais de 49 milhões de pessoas em busca de seu pão honesto

Wbeimar Muñoz, jornalista esportivo em Medellín há mais de quatro décadas

Eduardo Parra/Getty Images
Juan Sebastian Marroquin, filho de Pablo Escobar

Futebol era pano de fundo dos carteis, mas filho nega interferência de Escobar

Os líderes dos cartéis até poderiam não ser mandantes diretos de ameaças e subornos a árbitros nos jogos de Libertadores na época. Porém, os fatos mostram que os grupos tiravam proveito do momento de alta do futebol colombiano para o próprio prestígio.

Era uma forma de ganhar popularidade na busca por poder político. E, assim, Pablo Escobar se revoltou quando o ministro da Justiça Rodrigo Lara iniciou uma série de ações contra os cartéis do narcotráfico e denunciou a presença dos grupos nos bastidores do futebol colombiano. Em abril 1984, o ministro foi assassinado pelos capangas do "Patrón".

O futebol também servia para alimentar o ego dos cartéis. Em Cali, eles se orgulhavam das três finais consecutivas de Libertadores entre 1985 e 1987, com derrotas para Argentinos Juniors, River Plate e Peñarol. Em Medellín, havia bastado a decisão de 1989 do Atlético Nacional contra o Olimpia para provar a superioridade da região sobre os rivais.

O filho de Escobar, que hoje se identifica como Juan Sebastián Marroquín Santos, indica o futebol como um território amado, mas respeitado pelo pai. "Sempre se especulou que meu pai fosse dono de times de futebol colombiano, como [Independiente de] Medellín, Atlético Nacional, Envigado [clube que revelou James Rodríguez e que fica próximo ao local onde Escobar nasceu] e até mesmo de alguns jogadores. Isso não é verdade. O futebol sempre foi uma de suas paixões, mas ele nunca se interessou por ser dirigente ou empresário", relata Juan nas páginas 354 e 355 de seu livro "Pablo Escobar - Meu pai: As histórias que não deveríamos saber", publicado no Brasil pela editora Planeta.

Rivais, rivais, negócios à parte

A torcida de Pablo Escobar era pelo Indepediente de Medellín, mas fatos que também são abordados pelo livro escrito por seu filho mostram um envolvimento frequente com o Atlético Nacional. O "Patrón", assassinado em 1993, sempre investiu na construção de quadras e campos nas regiões mais pobres de Medellín e chegou a levar atletas do clube para disputarem amistosos de inauguração contra as equipes de bairro.

Além disso, seu campo com sistema de drenagem e iluminação profissionais construídos na prisão de La Catedral, onde se mantinha enclausurado com luxos, amigos e uma rota de fuga premeditada, frequentemente recebia a visita de estrelas do Atlético Nacional - Juan Sebastián citou no livro os nomes de René Higuita, Luis Alfonso, Luis Fajardo, Leonel Álvarez, Victor Aristizábal, Faustino Asprilla e do técnico Francisco Maturana. Em uma das peladas, Leonel Álvarez, então volante e hoje treinador de futebol, exagerou nas chegadas em Escobar e precisou ser alertado sobre as encaradas de raiva que o narcotraficante já lhe desferia.

Outro momento que mostrou a relação de Escobar com o Atlético Nacional aconteceu em janeiro de 1985. Autoridades norte-americanas tentavam fragilizar o império de Escobar e prendê-lo. Para isso, fizeram acordos de extradição com alguns de seus aliados, incluindo Hernán Botero Moreno, então presidente do clube de Medellín.

Escobar e o futebol

Wikimedia Commons

A fuga como gandula

Em 1976, durante um jogo de futebol na prisão depois da primeira vez em que foi preso, pediu para os jogadores isolarem a bola diversas vezes e se dispunha a buscá-la como gandula, até que conseguiu fugir do presídio. Sua esposa, grávida de Juan Sebastián, implorou para que ele voltasse ao cárcere após pressão das autoridades.

AFP Photo

Exílio com Copa do Mundo

Preocupado com as ameaças feitas a seu filho, Escobar mandou Juan Sebastián à Itália em 1990 durante o período da Copa do Mundo. Lá, o jovem assistiu ao jogo de abertura entre Itália e Áustria e dois jogos da Colômbia, contra Alemanha e Iugoslávia, sempre disfarçado com a bandeira colombiana pintada no rosto.

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Massacre na boate

No mesmo dia em que a Colômbia foi eliminada da Copa do Mundo de 1990 para Camarões, nas oitavas de final, um massacre deixou 19 mortos e 50 feridos em uma boate na região nobre de El Poblado, em Medellín. O crime foi atribuído a Escobar, que sempre jurou à família não ter sido o mandante deste atentado.

Reprodução web

Lágrimas de despedida

Juan Sebastián conta que seus últimos momentos lado a lado com o pai antes de sua morte em 1993 foram assistindo à histórica goleada da Colômbia por 5 a 0 sobre a Argentina, nas Eliminatórias da Copa do Mundo de 1994. O filho diz que não via o pai sorrir de verdade há anos e que ele nunca havia chorado tanto.

Site oficial/atlnacional.com.co
Francisco Maturana, ao centro: técnico levantou a primeira Libertadores colombiana

A Libertadores de 1989

O título do Atlético Nacional veio em uma final contra o Olímpia, do Paraguai. No primeiro jogo, o time colombiano perdeu de 2 a 0. No jogo de volta, vitória por 2 a 0. Nos pênaltis, vitória por 5 a 4 com o goleiro Higuita saindo como herói. Os times brasileiros na disputa foram Bahia e Internacional —que se encontraram na fase de grupos e novamente nas quartas de final. O Inter chegou até a semi, eliminado pelo Olímpia.

O Atlético Nacional de 89 em ação

Gabriel Aponte/LatinContent via Getty Images
Jogadores campeões da Libertadores de 89 são homenageados na Colômbia em 2016

Menosprezo a um time histórico e a real influência dos carteis

Há quem defenda que a relação dos times colombianos com os cartéis foi superdimensionada, principalmente por argentinos, uruguaios e brasileiros, que estariam incomodados com a ascensão de Atlético Nacional e América de Cali. E para embasar a tese, lembram que não houve nenhum erro marcante de arbitragem durante a campanha do título da equipe de Medellín em 1989. Nem mesmo nos jogos contra Danúbio, na semifinal, e Olimpia, na final, em que denúncias de suborno e ameaça aos árbitros foram feitas.

"Sempre falam disso e acho que é um desrespeito. É preciso reconhecer quando outra pessoa ganha. Nos sobrepusemos a qualquer erro que possa ter acontecido. E aposto que nenhum jogador deixaria de bater um pênalti se um juiz tivesse errado. Estávamos ali para jogar e merecemos o título pelo que jogamos, independentemente das reclamações", reclama John Jairo Tréllez, titular do Atlético Nacional no jogo decisivo e pai do atacante Santiago Tréllez, ex-São Paulo.

A teoria é defendida pelo premiado jornalista esportivo Wbeimar Muñoz, natural de Medellín e que há mais de 40 anos acompanha o futebol local. Para ele, o contexto de crescimento esportivo no país é ignorado: "Nos anos 1980, foram 16 técnicos estrangeiros na Colômbia, e todos ganharam ou ganhariam algum título de Libertadores ou Mundial. Essa gente deixou um legado para nosso futebol e ajudou a formar técnicos como Francisco Maturana, campeão com o Atlético Nacional".

Se a interferência dentro de campo nunca foi comprovada, fora dele a influência dos cartéis era sentida. "É claro que a gente ouvia sobre a presença dos cartéis. Eu mesmo já tinha apitado um jogo em Cali em que ouvi alguns tiros após a partida e me disseram que tinham matado uma pessoa lá mesmo. Então, era muito difícil para os árbitros trabalhar nesse período. Você precisava estar muito mais atento a mais coisas ao mesmo tempo", conta José Roberto Wright, que apitou o primeiro jogo da final de 89.

Ser campeão representou muito, muito mesmo. Outros times haviam chegado longe, mas ninguém havia sido campeão. As pessoas passaram a acreditar que tínhamos talento e capacidade para planejar um trabalho sério na Colômbia

Jonh Jairo Tréllez, atacante campeão da Libertadores de 1989

Olimpia e Nacional eram muito bons, fortes, disputavam espaço o tempo todo. As reclamações (sobre interferência dos cartéis) me parecem mais discurso de torcedor. O Olimpia ganhou de 2 a 0 quando eu apitei o jogo de ida

José Roberto Wright, árbitro do primeiro jogo da final da Libertadores de 89

Não posso falar se a Libertadores foi comprada ou não por que nunca presenciei ou comprovei nada. O que sei, no campo, é que o Atlético Nacional era um time que mesclava capacidade de pressionar, técnica e muita disciplina

Wbeimar Nuñez, jornalista colombiano que fez carreira em veículos como Caracol e Win Sports

Jan Sochor/Getty Images Jan Sochor/Getty Images

Violência afastou para unir o povo

O Atlético Nacional foi impedido de mandar o jogo de volta da final da Libertadores contra o Olimpia em Medellín por questões de segurança. Mas o que poderia ter afastado um povo apaixonado por seu clube acabou unindo torcidas rivais, que viam naquele duelo contra o Olimpia a chance de mostrar que a Colômbia era muito maior e mais bonita do que a interminável onda de violência que acometia o país.

"Foi muito complicado não estar ao lado da torcida em Medellín. Não sentiram que queria seguro jogar lá, mas topamos porque sabíamos que poderíamos reverter a vantagem do Olimpia em qualquer lugar. E ainda vimos o país se unir. Havia camisas de todos os times, muitas bandeiras da Colômbia, foi algo histórico e acredito que tenha ajudado a acalmar os ânimos no país. As pessoas mostraram um lado positivo que representava toda a Colômbia", ressalta John Jairo Tréllez.

Wbeimar Muñoz também guarda com carinho as memórias de uma noite que uniu os colombianos e abrandou os pesadelos da violência: "Não foi o triunfo de um time, mas sim de um povo. Os jovens não podiam sair na rua, havia massacres e o Atanasio Girardot se tornou um ponto de reunião e segurança. Na final, esse povo sofrido, que sofreu com o demônio do narcotráfico, lotou as estradas e vias aéreas para ir a Bogotá e celebrou como nunca. Não era só ganhar do Olimpia, era a solidariedade a um time e a um país que se abraçava e tentava despertar de um pesadelo".

Getty Images/Getty Images
Trellez, do Atletico Nacional, em ação pela seleção colombiana

Título de 89 foi base para construção de seleção

A final em Bogotá foi um marco para o futebol colombiano. Não só pela conquista inédita do Atlético Nacional, mas também por criar uma base para a geração que levou a seleção local a disputar três Copas do Mundo consecutivas.

Naquela noite de 31 de maio de 1989, René Higuita se tornou de vez um herói. Após os gols de Fidel Miño, contra, e de Albeiro Usuriaga, o Atlético Nacional levou a disputa para os pênaltis. Foram nove cobranças para cada lado e coube a Higuita a façanha de defender quatro delas. Leonel Álvarez fez o gol que definiu o 5 a 4 e a história vitoriosa daquela equipe que tinha ainda Luis Perea como zagueiro e o técnico Francisco Maturana, responsável por unir seus pupilos com os talentos do América de Cali, como Freddy Rincón, na seleção colombiana nos anos seguintes.

"Éramos um time que gostava de ficar com a bola e até ficamos conhecidos pelo 'toque toque' por isso. Queríamos sempre nos impor, em casa ou fora, mas sofremos com o campo ruim do Defensores del Chaco. Não era nada digno para uma Libertadores, mas conseguimos virar", valoriza Tréllez, que converteu uma das cobranças de pênalti na final.

"A seleção pegou como base a defesa do Atlético Nacional, talentos como 'el pibe' Valderrama e formou uma geração que se destacou pela riqueza técnica, tática e de personalidade, incluindo o pioneirismo de usar goleiros como líberos e zagueiros que sabiam jogar", diz o jornalista Wbeimar Muñoz.

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Novo assassinato e busca pela paz

Novas denúncias de propina e ameaças a árbitros foram registradas em 1990 e motivaram até a anulação de um jogo entre Atlético Nacional e Vasco da Gama. O então vice-presidente do clube carioca, Eurico Miranda, chegou a ser ameaçado também. A Conmebol remarcou o jogo para o Chile e depois suspendeu as equipes colombianas de seus torneios.

Em 1994, mais uma tragédia abalou o futebol colombiano. O zagueiro Andrés Escobar, um dos pilares do Atlético Nacional campeão em 1989 e da seleção, foi morto brutalmente dez dias após fazer um gol contra na eliminação da Colômbia na fase de grupos da Copa do Mundo de 1994. O crime nunca foi 100% solucionado, mas houve denúncias de novo envolvimento de narcotraficantes que trabalhavam com apostas no futebol.

Com o passar dos anos, a região de Medellín, antes um campo de batalha na guerra dos cartéis, se tornou referência em segurança pública e integração entre as áreas mais pobres e o centro da cidade, com soluções premiadas de urbanismo e de incentivo às práticas esportivas. "Saímos do temor pela morte para buscar a paz e alegria. E melhor ainda por ser através do esporte. Do ponto de vista social, foi muito importante. Somos um povo especial, com lugares lindos para conhecer, ícones nas artes como Fernando Botero e Gabriel García Márquez e muito mais do que o terror que foi o narcotrático", valoriza Wbeimar Muñoz..

No futebol, foram mais duas conquistas de Libertadores - Once Caldas em 2004 e, novamente, Atlético Nacional em 2016 - e mais uma geração dourada para a seleção, capaz de chegar às quartas de final da Copa do Mundo de 2014 com o artilheiro James Rodríguez.

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