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Segurança: no Japão, é comum reaver bens perdidos, inclusive dinheiro vivo

No Japão, bicicletas são estacionadas sem corrente nas ruas - Getty Images
No Japão, bicicletas são estacionadas sem corrente nas ruas Imagem: Getty Images

Juliana Sayuri

Colaboração para o UOL, em Toyohashi (Japão)

30/07/2021 04h00

Que atire a primeira pedra quem nunca se distraiu e sem querer simplesmente embolsou uma Bic. Muitas vezes, o movimento é quase inconsciente: abre-se a tampa, assina-se o que é preciso assinar, fecha-se a tampa e, em questão de segundos, a esferográfica azul que estava esquecida num balcão do correio vai parar dentro da sua bolsa ou do seu bolso.

Achado não é roubado, diz o ditado popular, como que para tentar aliviar nossa consciência por ter surrupiado uma caneta. Embora a lei brasileira considere que se apropriar sem querer querendo de um bem perdido ou esquecido é crime (artigo 169 do Código Penal), com pena de até 1 ano de prisão e pagamento de multa, é comum pegar itens deixados para trás, como uma Bic que custa cerca de R$ 1,67. É tão comum que se tornou frequente ver canetas amarradas por um fio aos balcões Brasil adentro.

No Japão, porém, a ideia de "achado não é roubado" não é nem ditado nem argumento. Quem encontra um objeto perdido deste lado do mundo costuma considerar basicamente duas alternativas: deixá-lo onde está ou levá-lo aos achados e perdidos de um pequeno posto policial, o k?ban.

Isso vale tanto para objetos acessíveis tal qual uma caneta, quanto para itens maiores, como carteira, cartões e smartphones. Para se ter ideia, segundo dados de 2018 da polícia metropolitana de Tóquio, mais de 545 mil identidades e 240 mil carteiras foram devolvidas.

Na época, 156 mil celulares foram encontrados e entregues à polícia; entre eles, 130 mil foram recuperados pelos donos —os demais não foram buscados pelos titulares dos telefones e, portanto, foram destruídos. Ao todo, cerca de ¥ 13 bilhões (R$ 578 milhões no câmbio atual) e 11 milhões de itens foram devolvidos em 2018. E o fluxo não para: 29 milhões de novos objetos perdidos foram encontrados e entregues à polícia em 2019.

Segundo o estudo "Losers: recovering lost property in Japan and the United States", feito pelo acadêmico norte-americano Mark West, da University of Michigan Law School, 88% dos celulares propositalmente "perdidos" pelos acadêmicos durante o experimento foram entregues à polícia em Tóquio; em Nova York, foram 6%. Entre as carteiras deliberadamente deixadas para trás, 80% foram entregues na capital japonesa, ante 10% na metrópole norte-americana.

Lenda urbana?

Foi por volta de 2018 que um amigo esqueceu carteira, celular e chave de casa dentro de um banheiro do trem-bala, o shinkansen. Ele só foi dar por falta dos pertences ao voltar para casa e, ainda assim, conseguiu recuperá-los ao ligar para a companhia ferroviária para reportar a perda. Apesar das estatísticas e da experiência relatada, eu ainda pensava que histórias assim eram simples lendas urbanas.

Eis que, em uma tarde de setembro de 2020, atrapalhada carregando guarda-chuva e diversos livros —e um tanto aflita por portar um envelope com cerca de ¥ 200 mil (R$ 9 mil) na mochila—, me distraí no ônibus. Foi só quando vi o motorista fechar as portas e dar a partida que me dei conta: estava sem minha carteira. Na carteira, estavam o meu zairyu card (o documento de identificação de estrangeiros no Japão), caderneta do shakai hoken (o seguro social), cartões de banco e uns ¥ 10 mil (R$ 445).

Enquanto via o ônibus lá longe seguindo viagem, corri umas quadras para tentar alcançá-lo. Mas, com todas as luzes verdes nos semáforos seguintes, não consegui. Liguei, então, para a prefeitura para informar a perda e pedir para avisarem à linha. Em menos de 10 minutos, a atendente da prefeitura me retornou: não localizaram nenhuma carteira dentro do veículo, que, depois desta viagem, voltou para a estação principal. Resignada, pensei, vou passar num k?ban para reportar a perda e depois me agilizar para pedir a segunda via dos documentos perdidos e cancelar os cartões.

No caminho ao posto policial, cabisbaixa, passei pelo ponto de ônibus onde tinha descido. E lá estava a pequenina carteira, posicionada bem à vista no banco. Devo tê-la deixado cair no chão ao sair do ônibus e quem a encontrou, a tirou do chão e a deixou no alto para ser reencontrada. Abri: estavam não só todos os meus documentos, intactos, mas uma quantia de dinheiro maior do que eu lembrava inicialmente, ¥ 23 mil (R$ 1.025).

bicicletas toquio - Juliana Sayuri/UOL - Juliana Sayuri/UOL
Imagem: Juliana Sayuri/UOL

Foi aí que passei a notar como pequenos detalhes no cotidiano desta cidade japonesa de cerca de 380 mil habitantes às vezes contrastam com a realidade de muitas cidades brasileiras: bicicletas paradas por aí sem correntes, casas sem portões nem cerca elétrica, crianças andando sozinhas nas ruas rumo às escolas, idosos saindo do banco contando notas de dinheiro tranquilamente.

Certa vez, vi um operário levantar do chão uma carteira com ¥ 30 mil (R$ 1.337) à vista e levá-la para o administrador do condomínio, que a devolveu ao dono. Num trem, um estudante distraído deixou cair um iPhone 11 e todos ao redor, quase que ao mesmo tempo, lhe avisaram. Num parque, uma senhora japonesa parou a bicicleta ao lado de um FamilyMart (uma loja de conveniência que se encontra quase que a cada esquina no arquipélago), abriu carteira, pegou uns trocados, deixou a bicicleta e a bolsa aberta ali, entrou, demorou uns 5 minutos para comprar o que queria, voltou, fechou a carteira e foi embora pedalando.

No Japão, 73% da população diz se sentir segura, segundo o Better Life Index, da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). O número de homicídios por 100 mil habitantes, indica o relatório, é o principal marcador para se pensar o nível de segurança de um país — e o Japão possui uma das menores taxas do mundo (0,2, ante a média internacional de 3,7).

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A impressão de segurança talvez também se dê pela ideia de seguir regras à risca no Japão. Há quem atribua a devolução de itens perdidos, por exemplo, a questões culturais, do medo de ser flagrado fora da lei (o Lost Property Act, de 2007, diz que, ao encontrar objetos, é preciso entregá-los a um posto policial no prazo de 7 dias); à angústia de estar sempre sob vigilância da sociedade (seja dos olhares japoneses seja das câmeras de segurança espalhadas por aí), passando pelo que é ensinado nas escolas —é crime pegar o que não te pertence.

"Para começar, o Japão sempre enfatizou a educação. Crianças aprendem com seus pais e guardiões desde pequenos a importância das regras. Na escola, a educação é implementada a fim de alcançar um desenvolvimento equilibrado das crianças com habilidades acadêmicas e humanidade", diz o discurso oficial do governo japonês para o congresso de justiça criminal das Nações Unidas, realizado em março, em Kyoto. "Crianças são ensinadas a seguir as regras da sociedade."

Não que não haja furtos e roubos no Japão; há, infelizmente. Segundo dados da Agência Nacional de Polícia, 307 mil crimes foram registrados no país na pandemia (uma queda de 15,4% ante o ano anterior, 2019) —entre eles, 211.409 foram furtos e roubos entre janeiro e junho de 2020; quase metade foi de bicicletas, 99.573. Roubo prevê pena de 10 anos de prisão ou multa de até ¥ 500 mil).

No fim de agosto de 2020, o youtuber japonês Shota Harada, 29, foi detido e indiciado por roubo na cidade de Okazaki, na província de Aichi, por comer sashimi dentro de um supermercado antes de pagar pelo produto, 430 ienes (R$ 19). Hezumaryu, como o jovem é conhecido, pediu para um amigo filmar o episódio no mercado, em maio, e depois postou o vídeo na internet, como se fosse uma travessura, uma transgressão de brincadeira. A polícia não riu.