Topo

Boicote? Como revolta entre jogadores esfriou e virou nota morna na seleção

Tite e jogadores da seleção brasileira abraçados durante jogo contra o Equador, em 4 de junho - Lucas Figueiredo/CBF
Tite e jogadores da seleção brasileira abraçados durante jogo contra o Equador, em 4 de junho Imagem: Lucas Figueiredo/CBF

Danilo Lavieri, Gabriel Carneiro, Igor Siqueira, Marcel Rizzo e Pedro Lopes

Do UOL, em São Paulo e no Rio de Janeiro

10/06/2021 04h00

A expectativa era grande sobre o posicionamento da seleção brasileira em relação à mudança de sede da Copa América para o país. Depois de duas entrevistas coletivas canceladas, o técnico Tite se recusou a confirmar a participação no torneio, há uma semana. Mas o resultado da insatisfação alimentada por dias foi um comunicado de 26 linhas efêmero, publicado nos Stories do Instagram depois da rodada dupla das Eliminatórias e num tom mais morno.

O boicote à Copa América sempre foi uma opção considerada extrema, caso degringolasse a relação do grupo com o então presidente da CBF Rogério Caboclo, hoje afastado por acusação de assédio sexual e moral. No entanto, o UOL Esporte apurou que ao longo dos dias o manifesto sofreu diversas interferências que tiraram o peso que ele teria originalmente.

É possível traçar uma linha do tempo de todo esse processo, que envolve polêmicas com Caboclo, versões prévias do texto, ação do estafe dos atletas, checagem de erros e muito mais. Veja:

Ato 1: insatisfação coletiva

Rogério Caboclo visitou a Granja Comary no dia 30 de maio. Fazia poucos dias que a "ESPN" tinha publicado áudios de 2018 nos quais o presidente da CBF pedia a demissão de parte da comissão técnica de Tite, o que não aconteceu. Àquela altura, já havia publicação das primeiras denúncias de atitudes grosseiras do dirigente nos bastidores. A visita ao treino serviu para que o dirigente marcasse presença junto ao elenco e fizesse um registro público de aparente tranquilidade.

Alisson e Caboclo - Lucas Figueiredo/CBF - Lucas Figueiredo/CBF
Alisson e Rogério Caboclo em 30 de maio: "Presidente acompanha treino", estampou o site da entidade
Imagem: Lucas Figueiredo/CBF

No dia seguinte, a Conmebol confirmou o Brasil como sede da Copa América depois das desistências de Colômbia e Argentina e de um alinhamento pessoal de Caboclo com o governo federal. Essa discussão não envolveu parte técnica da seleção —jogadores e comissão foram ignorados mesmo poucas horas após uma visita pessoal ao CT.

A falta de comunicação do cabeça da CBF somada ao peso político e social que ganharia a mudança de sede em meio à pandemia foi o que realmente incomodou os jogadores. Eles temiam ser cobrados por posicionamentos e gostariam de se preparar para isso. A troca repentina de sede também acarretava um atropelamento do planejamento logístico de meses.

A partir dessa insatisfação coletiva na rotina da seleção é que foram pedidas reuniões com o técnico Tite e o coordenador Juninho Paulista, que concordaram com os protestos. Na quarta-feira que antecedeu o jogo contra o Equador houve o papo com Caboclo. O dirigente não recebeu bem a posição dos jogadores e só fez o clima esquentar.

Em contato com jogadores de outros países foi possível notar que havia um descontentamento generalizado, mas por causa do momento delicado do Brasil no combate à covid-19. A sensação: não era o lugar certo para se disputar a Copa América.

Casemiro - Reprodução/Globo - Reprodução/Globo
Ao vivo na TV, Casemiro falou em "posição unânime" do grupo sem dizer qual era
Imagem: Reprodução/Globo

Foi aí que Tite, no retorno às Eliminatórias, precisou conceder entrevista coletiva, como é protocolo da Conmebol. Ele não confirmou a participação do Brasil na Copa América e disse que os jogadores preparavam um ato coletivo posterior à rodada dupla rumo ao Qatar 2022. Após o jogo contra o Equador, Casemiro reforçou a ideia da insatisfação: "Todo mundo sabe nosso posicionamento". Sabia mesmo?

Naquele dia já rolava entre os jogadores uma primeira versão do texto. Segundo apurou o UOL, era um parágrafo mais curto dando conta de um acordo entre atletas e comissão técnica de todas as seleções da América do Sul. Eles não concordavam com a realização da Copa América e consideravam um desrespeito a forma como o torneio foi organizado, algo que não combinava com o futebol profissional. Não havia menção a boicote.

Ato 2: medo da repercussão

O debate público ficou quente após Tite revelar que os jogadores se posicionariam dias depois. A essa altura, eles já tinham "enquadrado" o presidente da CBF. A pressão sobre os jogadores veio, então, de todos os lados: apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) entenderam que a Copa América era uma agenda positiva para o governo e que um suposto boicote à competição tinha que ser punido. Até o técnico Tite foi mencionado pejorativamente pelo vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) e pelo senador Flávio Bolsonaro (Patriota).

Tite - Buda Mendes/Getty Images - Buda Mendes/Getty Images
Técnico Tite foi atacado na internet e em entrevistas por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro
Imagem: Buda Mendes/Getty Images

Já opositores viram nessa faísca a esperança de que a seleção negasse participar da Copa América para não desviar o foco do enfrentamento da pandemia. O grupo de jogadores se viu no centro da polarização por uma decisão que ainda não havia tomado e que sempre fez de tudo para evitar.

Enquanto eles discutiam internamente a melhor forma de tornar as inquietações públicas, a bomba: uma funcionária da CBF denunciou Rogério Caboclo por assédio sexual e moral. O presidente da CBF viria a ser afastado pelo comitê de ética no domingo.

O maior alvo da insatisfação dos jogadores estava fora de cena entre um jogo e outro das Eliminatórias. O que se seguiu a isso foi uma garantia do novo comando da CBF de que o cargo de Tite estava a salvo e que Caboclo dificilmente voltaria. A impressão geral é de que este foi o ponto exato de mudança da temperatura do movimento do elenco e do tom mais ameno do manifesto. Na "nova" diretoria, Juninho Paulista tem sido elogiado internamente pela condução deste processo. Já na segunda-feira os jogadores sinalizaram a decisão de que iriam, sim, atuar na Copa América.

Ato 3: a nota e desdobramentos

A nota saiu minutos depois do apito final nos Stories do Instagram dos jogadores —publicações que desaparecem após 24 horas. São 26 linhas que não mencionam a pandemia, somente razões "humanitárias ou de cunho profissional" que justificavam a insatisfação sobre a Copa América, "fosse ela sediada tardiamente no Chile ou mesmo no Brasil." Eles também dizem que não quiseram "tornar essa discussão política" e que eram contra a competição, mas jogariam.

Segundo ouviu o UOL, houve pressão de representantes e estafe de alguns jogadores para que o comunicado tivesse esse tom morno, que não mencionasse a CBF ou o governo federal, somente a Conmebol. O argumento do "cunho profissional", aliás, é influência de alguns empresários que colocaram a mão no texto, porque defendem que torneios como a Copa América em meio ao que normalmente seria um período de férias dos jogadores atrapalham a temporada seguinte e também ativações de patrocinadores realizadas nesta época.

A ideia inicial era de um texto mais duro, mas o tom foi sendo diminuído na medida em que passava por mais pessoas. Um número muito pequeno de pessoas do entorno dos jogadores e do próprio elenco entendeu que havia necessidade de fazer críticas ou plantar uma mensagem que permitisse a interpretação de algo crítico a Bolsonaro ou ao governo. Todo esse teor foi neutralizado, que é o significado da frase "somos um grupo coeso, porém com ideias distintas."

O grupo da seleção tem apoiadores e simpatizantes de Bolsonaro e também críticos, mas a maioria das pessoas que cuida da carreira dos jogadores, como mostrou o colunista do UOL Marcel Rizzo, tem envolvimento em outras áreas do entretenimento e afeição pelo governo federal também em razão de contratos comerciais.

Seleção - Christian Alvarenga/Getty Images - Christian Alvarenga/Getty Images
Seleção brasileira perfilada para a partida contra o Paraguai pelas Eliminatórias
Imagem: Christian Alvarenga/Getty Images

Houve um cuidado muito grande para que não houvesse vazamento do texto final. Um dos jogadores, por exemplo, só enviou ao seu assessor pessoal já depois do fim do jogo contra o Paraguai, pedindo uma checagem rápida de eventuais erros. Mas quem publicou a imagem no Instagram foi o próprio jogador. Outros assessores consultados disseram que nem essa vista prévia aconteceu, a publicação foi dos atletas. A CBF teve acesso antes da publicação, mas não interferiu. Já se sabia que, com a saída de Caboclo, o tom seria bem mais leve.

Sem menções à pandemia, ao governo e também à CBF, pois Caboclo já estava fora de cena, o comunicado perdeu força e gerou uma sensação interna de que se fosse para ir ao ar desse jeito não havia necessidade de esperar tanto tempo e alimentar a expectativa da opinião pública. Mas já estava feito. O Brasil estreia na Copa América domingo (13), às 18h, contra a Venezuela, no estádio Mané Garrincha.