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Especialistas apontam motivos para demora em discussão sobre clube-empresa

Clubes podem adotar novo modelo de gestão - Lucas Figueiredo/CBF
Clubes podem adotar novo modelo de gestão Imagem: Lucas Figueiredo/CBF

Thiago Fernandes

Do UOL, em Belo Horizonte

24/08/2020 13h00

O progresso do futebol europeu nas últimas décadas não aconteceu apenas dentro de campo se comparado ao Brasil. Fora dele, países como Inglaterra, Portugal, Espanha e Itália também avançaram em leis específicas sobre a transformação em sociedade anônima e a consequente entrada de fundos de investimentos estrangeiros, os colocando alguns passos a frente em questões econômicas e estruturais.

O fato de ter uma injeção potencial de dinheiro não é garantia de sucesso e títulos, mas de sobrevivência. E é dentro desse ponto de vista que alguns especialistas enxergam um caminho promissor caso as principais agremiações brasileiras também tivessem essa visão.

Alguns entraves são vistos como primordiais quando esse assunto vem à tona. O principal deles ainda está no vício das estruturas políticas, em especial das agremiações consideradas 'grandes', visto que o poder dos conselhos deliberativos ainda é uma ruptura distante de ser realizada. A outra, é a demora do Senado Federal em concluir o processo de votação de projeto de clube-empresa, que está parado há meses.

A pauta, que 'esfriou' em razão da pandemia do coronavírus, está vigente desde 2019 de acordo com os Projetos de Lei nº 5.082/16, já aprovado na Câmara dos Deputados, e nº 5516/19, em discussão no Senado, que abordam a transformação da gestão associativa dos clubes para o molde empresarial.

"O Senado Federal precisa agir urgentemente. Essa é uma medida muito importante para o futebol no pós-pandemia, pois vai faltar dinheiro no futebol brasileiro e uma das únicas alternativas para a captação de valores relevantes por parte dos clubes seria mediante a criação de uma empresa e a venda de participação acionária", explica Eduardo Carlezzo, especialista em direito desportivo e responsável pela estruturação jurídica no Atlético-GO, que no começo deste ano tornou-se o primeiro clube da elite do futebol brasileiro a se registrar como Sociedade Anônima.

"Entendemos que a transformação do clube em Sociedade Anônima é algo fundamental para que possamos ter competitividade dentro de campo e sustentabilidade de longo prazo nas finanças. Sem isso, ficaremos eternamente brigando pelo acesso à Série A ou para não cair para a Série B", explica Marcos Egidio, diretor administrativo do Atlético Goianiense.

Apesar de o assunto estar em debate já há alguns anos no Brasil, Eduardo Carlezzo entende que o cenário atual do país com a pandemia e a falta de recursos dos clubes, que perderam milhões em receitas, seria o mais propício para todas as partes envolvidas despertarem. Ele ainda entende que as equipes com maiores investimentos não farão isso em um primeiro momento, mas para as agremiações mais emergentes ou que pretendem se manter na Série A com uma regularidade maior, o caminho será esse.

"Os clubes de potencial médio sabem que precisam de uma injeção de capital para sobreviverem. Mesmo com a volta do Campeonato Brasileiro, alguns deles estão tendo que tirar do bolso e tendo prejuízos com os jogos com portões fechados, por exemplo. Por isso eu vejo essa mudança como prioridade, é preciso ser aprovado e depois aprimorado. Em países como Espanha, Itália e Portugal aconteceu isso", alerta o advogado, sem deixar de fazer uma ressalva importantíssima.

"Mesmo com uma eventual aprovação, transformar em clube-empresa não é uma obrigação, faz quem quiser. Conheço muitos clubes das séries A e B que já se reestruturam para isso, mas não o fazem pela burocracia e o alto custo tributário. Com a aprovação na Câmara e a votação no Senado, esse entrave sairia do caminho".

Consolidação do Botafogo-SP completa dois anos

O Botafogo de Ribeirão Preto talvez tenha sido um dos clubes considerados emergentes e da elite do futebol paulista que atingiram um status de consolidação de seu projeto de S/A.. A transformação teve início em maio de 2018, quando os sócios do clube aprovaram de maneira unânime a transferência do futebol e da gestão para a empresa constituída em forma de sociedade anônima, que passou a ser titular do registro na FPF e na CBF, com direitos às vagas nos campeonatos dessas entidades.

Desde então, o futebol botafoguense é administrado 60% pelo próprio clube e 40% pela Trex Holding, empresa de investimentos comandada por Adalberto Baptista, que adquiriu a participação no empreendimento por R$ 8 milhões, após estudo de mercado ter indicado o valor do Botafogo-SP em R$ 20 milhões.

Apesar de alguns resultados dentro de campo não terem atingido o objetivo estipulado, como no Campeonato Paulista deste ano, o clube saltou da Série C para a B de 2018 para 2019, ano em que por determinado momento da competição nacional chegou a aspirar o acesso para a elite.

"Eu tenho absoluta certeza de que a saída para os clubes vai ser a profissionalização e a transformação em uma empresa, como já foi feito aqui. Os insucessos dentro de campo podem acontecer com ou sem S/A, não é isso que vai caracterizar o desempenho em determinada competição. Mas é isso que pode, sim, estipular uma vida mais saudável e estável a médio e longo prazo, é isso o que batemos na tecla", afirma o presidente do Conselho de Administração da S/A, Adalberto Baptista.

Fora de campo, o Botafogo S/A se propôs a cumprir todas as regras nos contratos feitos na CLT e recolhimento dos impostos. Com isso, apesar de momentaneamente os recursos serem menores no curto prazo, os ganhos de credibilidade são infinitos no futuro. A transformação em S/A também fez com que alguns setores passassem por uma ampla profissionalização, e a principal delas foi conquista patrimonial, com a construção da Arena Eurobike. Trata-se de um espaço para 15 mil pessoas, dentro do estádio Santa Cruz, que foi amplamente modernizado, com cadeiras, bares conceituados, espaço kids, lounge vip, camarotes e até suítes. Do lado externo, a área receberá food trucks e um estacionamento.

Executivo não vê modelo de associação como 'falido'

Rui Costa é advogado de formação, foi diretor jurídico do Grêmio e depois comandou o cargo de executivo de futebol do tricolor gaúcho. Alguns anos depois, também trabalhou naquele que já é considerado um clube 'empresa' na prática, não de forma oficial, que é o Athletico Paranaense. Com experiência de quem vivenciou o cotidiano de grandes agremiações do país, ele entende que a aprovação do projeto é mais do que necessária, mas que deve se enquadrar dentro da realidade brasileira.

"Não consigo comparar o cenário do nosso país com o da Inglaterra, por exemplo, onde o investidor, que é dono do clube, coloca bilhões de euros por ano e faz contratações mirabolantes. Antes de tudo, aqui é necessário uma reestruturação dos clubes. Acho que muitos já tem buscado esse caminho e se preparado para quando a lei for finalmente aprovada pelo Senado, e do outro lado também sabemos que tem muita gente de fora querendo botar dinheiro aqui. Mas é necessário uma desburocratização, de todas as partes", aponta.

Enquanto isso não acontece, Rui Costa entende que alguns modelos de associação são referência no país e deveriam servir como exemplos de transparência para aquelas instituições que ainda sofrem as questões econômicas.

"O Athletico talvez seja um dos clubes com maior potencial de empresa da América do Sul, pelos mecanismos e metas que são colocadas e projetadas. O Grêmio também alcançou um papel de protagonismo profissional mesmo de forma estatutária. Se comparado com outros países, guardada as devidas proporções, o Real Madrid é um clube estatutário. Os clubes do Nordeste também vem dando exemplo de gestão presidencial. O importante é tentar atrair investimento, e isso pode acontecer com bons exemplos de gestão", aponta.

Um exemplo claro no Brasil de clube que trabalha de forma associativa e teve interesse de um investidor de fora foi o Fortaleza. O bilionário russo Ivan Savvidis, que também trabalha para o PAOK, da Grécia, procurou o clube cearense, e de acordo com palavras do presidente Marcelo Paz, o desejo surgiu justamente por causa do trabalho de gestão profissional e transparente do clube nos últimos anos.

As tratativas não tiveram continuidade em razão da pandemia, e o mandatário do Leão também entende que a aprovação do projeto de S/A facilitaria uma série de aportes vindos do exterior, mas que essa transformação deve ser uma escolha de cada instituição.

"É bem vinda a legislação aprovada, amplia a possibilidade de gestão no futebol, com modelo associativo e modelo empresarial vigentes. Ambos podem existir, cada instituição vai escolher qual seu melhor caminho, sem imposição de regras, mas cada um se adaptando à sua realidade. Existem vários clubes do país associativos que são bem geridos, que são exemplos de gestão, com planejamento estratégico e meta por resultados. O modelo de clube-empresa vem ampliar esse leque para que dada clube faça sua escolha", conclui Marcelo Paz.