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Santos de Pelé perdeu craque chileno por ativismo político, diz documento

Carlos Caszely se aposentou do futebol há mais de 30 anos e hoje leva uma vida simples  - Rafael Carneiro
Carlos Caszely se aposentou do futebol há mais de 30 anos e hoje leva uma vida simples Imagem: Rafael Carneiro

Rafael Carneiro

Colaboração para o UOL

05/07/2019 04h00

O ano era 1973, quando Carlos Caszely, um dos maiores ídolos do futebol chileno, esteve a um passo de fechar a sua transferência para o Santos, que na época tinha Pelé como o seu principal jogador. Porém, um documento descoberto por um historiador da Universidad Austral Sebastián Hurtado, e revelado pelo jornal "La Tercera" em abril deste ano, mostrou que o governo do Chile teve uma grande influência para que a negociação não fosse concluída.

O motivo? A ideologia política de Caszely, que era assumidamente de esquerda. O jogador seria um futuro desafeto do governo ditatorial do general Augusto Pinochet, que durou de setembro de 1973 [o episódio com o Santos ocorreu um pouco antes] a 1990.

Na época, um telegrama emitido pela Embaixada do Brasil no Chile teria sido entregue secretamente ao Peixe. O documento foi assinado por Camara Canto, então embaixador brasileiro, e fazia um alerta sobre o jogador. Um dos trechos, dizia que "Carlos Caszely, astro da equipe do Colo-Colo, e cujo passe estaria negociando com Santos pelo valor de 120 mil dólares, é um elemento ativo do Partido Comunista do Chile".

O comunicado ainda mencionava que as informações haviam sido obtidas pelo SIM (Serviço de Inteligência Militar), órgão vinculado ao governo do Chile, que ainda não vivia a sua ditadura militar, ao contrário do Brasil. Nas entrelinhas, o telegrama apontava que o craque poderia ser uma ameaça.

Telegrama enviado ao Santos que alertava sobre Caszely - Reprodução/ La Tercera - Reprodução/ La Tercera
Telegrama enviado ao Santos que alertava sobre Caszely
Imagem: Reprodução/ La Tercera

Procurado pela reportagem, o Santos afirmou que não há nenhum registro no clube sobre essa negociação não concluída.

"Eu sabia que o Santos me queria, mas nunca soube a razão pela qual essa negociação não se concretizou. E eu tinha muita vontade de jogar no clube. Quem não queria ser companheiro de Pelé?", ressaltou o ex-atacante, que assegura nunca ter sido filiado a nenhum partido político.

Além do "Rei", o time da Vila Belmiro ainda tinha em seu elenco o lateral Carlos Alberto Torres. Três anos antes, os dois haviam ajudado a seleção brasileira a conquistar o tricampeonato mundial no México.

Com a transferência de Caszely não realizada, a convivência com Pelé e Carlos Alberto se deu apenas dentro de campo, em jogos entre as seleções. Segundo o chileno, a relação com o "Rei", principalmente, era de muito respeito, mas os dois não chegaram a ser amigos.

Despedida de Caszely do Colo-Colo, o clube onde mais atuou  - Flickr/ Paulo Slanchevsky - Flickr/ Paulo Slanchevsky
Despedida de Caszely do Colo-Colo, o clube onde mais atuou
Imagem: Flickr/ Paulo Slanchevsky

Ao contrário do que aconteceu com Sócrates, nos anos 80. Bastou um primeiro contato para que eles se aproximassem. Então jogador do Santos, o meio-campo brasileiro viajou a Concepción, no sul do Chile, para disputar um amistoso contra o time local, e Caszely, que já estava aposentado do futebol, visitava a cidade.

"Passava três, quatro horas conversando com Sócrates sobre esporte, política... Ele era um homem muito especial. Com a sua cerveja, o seu cigarro, ele era carismático, tranquilo e sobretudo um grande jogador", diz o amigo chileno.

Política e futebol

As semelhanças entre Carlos Caszely e Sócrates não se resumem apenas à habilidade que os dois tinham com a bola. Eles cursaram o ensino superior e também tinham uma atuação política fora de campo bastante relevante. Enquanto o ídolo brasileiro participou ativamente da campanha das "Diretas Já", como um líder do movimento conhecido domo "Democracia Corintiana", na primeira metade da década de 80, o chileno foi um dos poucos jogadores que se posicionaram publicamente contra a ditadura de Augusto Pinochet, que assombrou o Chile entre 1973 e 1990.

Caszely acompanhado do amigo Sócrates em Concepción  - Reprodução Instagram/ CSD Concepción - Reprodução Instagram/ CSD Concepción
Caszely acompanhado do amigo Sócrates em Concepción
Imagem: Reprodução Instagram/ CSD Concepción

Apoiador do ex-presidente socialista Salvador Allende, deposto pelo golpe militar chileno, "El Chino" fez questão de participar da campanha do "No" pela volta da democracia no Chile, em 1988. Na época, Caszely gravou um vídeo ao lado da mãe Olga Garrido, torturada pelos militares, e este se transformou em uma importante peça publicitária para a redemocratização do país.

Anos antes, o futebolista já havia protagonizado uma cena emblemática. Em 1974, quando Pinochet cumprimentava todos os jogadores da seleção que embarcariam para a Copa do Mundo da Alemanha, Caszely se recusou a estender-lhe a mão. O episódio foi transmitido ao vivo pela televisão.

Carlos Caszely, ou "el rey del metro cuadrado", como também é conhecido, está aposentado dos gramados há mais de três décadas e se orgulha da sua trajetória. O garoto que começou jogando no bairro em que morava, em pouco tempo passou a atuar nas divisões de base do Colo-Colo, até chegar ao time principal em 1967.

Em clubes, atuou também no Levante e no Espanyol, da Espanha, e no Barcelona de Guayaquil, do Equador. Pela seleção chilena, jogou entre 1969 e 1985. Atualmente é o quarto maior goleador da história do Chile, ficando atrás somente de Alexis Sánchez, Marcelo Salas e Iván Zamorano. Mas, se considerados também os jogos não-oficiais, é o atleta que mais vezes balançou a rede na equipe nacional.

Prestes a completar 70 anos, Caszely se define como um sujeito simples, que gosta de estar entre amigos e se dedicar à família, principalmente aos netos. Perguntado se ele se considera um herói nacional, entre um cigarro e um gole de café expresso, Caszely responde que prefere não estar nesse pedestal: "Ter apenas o reconhecimento das pessoas já é o suficiente para mim".