Preconceito em escolas e parque: Pierre e a luta pela filha deficiente
Recuperado de uma cirurgia no tornozelo, o volante Pierre está à disposição de Abel Braga no Fluminense. Longe dos campos por três meses, o baiano de Itororó já está mais que vacinado contra as dificuldades. Da experiência em uma banca de jogo de bicho na cidade natal às dificuldades enfrentadas na rotina de Pietra, filha mais velha que luta contra uma paralisia cerebral, o tricolor se habituou a driblar os problemas.
“Não queriam deixar minha filha brincar num brinquedo em um parque aquático. São coisas que a gente enfrenta, mas aí me indignei. Ela é normal, ela apenas não anda. Tiveram de chamar a direção do parque, falei que ia chamar a imprensa, aí liberaram os brinquedos. Mas depois de todo o constrangimento, a gente fica magoado”, contou Pierre, relembrando só um dos vários casos de preconceito.
Pietra teria um irmão gêmeo, mas ele morreu em um parto complicado, com rompimento da bolsa aos seis meses de gestação. Com menos de 1 kg ao nascer, ela só sobreviveu após três meses de UTI. Em uma parada respiratória, a falta de oxigênio no cérebro resultou em uma paralisia cerebral que afetou os movimentos da filha de Pierre. Hoje, a evolução da menina e a alegria que ela transmite à família fazem o volante não hesitar ao falar o quanto ela é um "milagre" e "especial".
Em uma entrevista exclusiva ao UOL Esporte, Pierre relembrou toda a trajetória de Pietra e suas muitas outras histórias: a infância na Bahia, a tragédia que vitimou seu irmão mais velho e a perda de um filho prematuro. Confira o papo com um tricolor que encarna, como poucos, o apelido de "Guerreiro":
Trabalhava em jogo de bicho antes do futebol
"Tinha o sonho de ser jogador, mas via isso como algo longe. Estava com 19 anos e ainda em casa. Eu trabalhava em uma banca de jogo do bicho, recolhia os jogos na rua. Um dia me perguntaram se queria fazer um teste no Vitória, sou o caçula de 12 irmãos. Disse que não ia para não perder o emprego, mas o patrão disse que podia ir que teria o emprego de volta se desse errado. Saí de Itororó, viajei 300 km e fiquei seis meses no Vitória. Fui mandado embora, mas conseguiram um teste no Ituano. Eles bancaram a passagem e fiquei dois dias viajando. O time já estava formado para a Copinha. Na época, fui emprestado para o Capivariano para a Copinha. Fui bem e o Ituano me trouxe de volta. Em 2002, já era campeão paulista pelo Ituano"
Irmão foi morto um dia antes da semi fa Copa do Brasil
"Sou o mais novo de 12 irmãos. O mais velho morreu em 2014, na véspera da semi da Copa do Brasil de 2014 contra o Flamengo. Sepultei meu irmão e um dia depois estava jogando. Foi homicídio, um pessoal que trabalhava na empresa de reciclagem dele tirou a vida dele no dia do pagamento. Queriam tomar o dinheiro dele. Estão todos soltos, confessaram o crime e estão andando lá como se nada tivesse acontecido. A justiça brasileira é falha. Tenho um irmão que anda na minha cidade e vira e mexe encontra com os assassinos na rua. Isso deixa a gente pasmo e indignado. Os assassinos estão impunes, a vida de um inocente foi tirada e os bandidos têm regalias. Antes do jogo do bicho, trabalhava num bar com meu irmão, ajudava ele servindo, lavando prato, fazendo nota"
Pietra e o milagre no nascimento
"A bolsa da Moema [esposa de Pierre] rompeu com seis meses de gestação. Era um casal, mas o menino viveu 14 horas e morreu. A Pietra ficou três meses na UTI lutando pela vida. Nasceu com 522 g e saiu com 2 kg e pouco. Foi um milagre a Pietra viver, mas depois de um ano soubemos que ela teve sequelas. Numa das paradas respiratórias que ela teve, faltou oxigênio no cérebro, que resultou em paralisia cerebral e afetou a parte motora. Desde que ela nasceu é essa batalha de fisioterapia, equoterapia [terapia com cavalos], terapia ocupacional, fonoaudiólogo. É um preço alto que a gente paga, mas fazemos com muito prazer. A gente tem visto a evolução dela, acompanhamos ela andando sozinha num andador pela primeira vez. Os médicos nunca dão certeza, mas o que alimenta nossa esperança é Deus. Tenho certeza que veremos o milagre da Pietra andando e sendo independente acontecer. Ela ainda é muito dependente da gente, mas nossa esperança é que ela seja independente, que ela viva a vida dela de forma normal."
"Não consegui matricular a Pietra em nenhum colégio"
"No Rio, tivemos muita dificuldade com a inclusão. Não consegui matricular a Pietra em nenhum colégio na Barra no meu primeiro ano de Flu. Fui em uns cinco colégios e sempre tinha uma desculpa. Por lei, a Pietra tem direito a uma mediadora, uma pessoa que fique com ela. Muitos colégios que fui queriam que eu pagasse a mensalidade dobrada. Outros diziam que o colégio não estava adequado, mas era um “não” clássico. Num ponto, a Moema disse que não aguentava mais. Depois de cinco "nãos", decidimos deixar a Pietra sem estudar. No segundo ano, conseguimos matricular a Pietra e o colégio abraçou ela de forma maravilhosa. Eles disponibilizaram a mediadora e ela está bem acolhida. A gente encontra muitas crianças ao longo desta caminhada que não têm condições, a gente vê a luta. No Brasil é tudo difícil, você enfrenta o preconceito de ter um filho especial. Não tem coisa pior para um pai que é receber um não. Só quem é pai de criança especial sabe a dificuldade que é. O Brasil não oferece nada. Pelo meu jeito mais retraído, sofro calado. Fui comprar um andador, uma cadeira de rodas e os valores são absurdos. Eu tenho uma boa condição, mas e quem não tem? Chega a ser revoltante. Isso em colégio particular, imagina no público? Não há condição nenhuma, muita escola não tem nem rampa para cadeirante. Os pais sentem muito esse tipo de situação. Não tem incentivo nenhum, já vi mãe vendendo tudo para comprar cadeira de rodas. Em termos de aceitação, é muito complicado o caso de uma criança especial"
Preconceito em parque aquático em Fortaleza
"A gente estava num parque aquático em Fortaleza e, além do preconceito, não queriam deixar minha filha brincar num brinquedo, um escorrega bem pequeno. São coisas que a gente enfrenta, mas aí me indignei. Ela é normal, ela apenas não anda. Tiveram de chamar a direção do parque, falei que ia chamar a imprensa e aí liberaram os brinquedos. Mas depois de todo o constrangimento, a gente fica magoado"
Depois de tudo, nada desestimula
"Chega uma fase da vida em que a gente fica cascudo. A gente adquire maturidade o suficiente para lidar com as situações, lesões, críticas. Quando paro pra refletir sobre o que enfrentei na minha vida para chegar até aqui, nada me desestimula, nada me desanima. Quando enfrento uma situação dessa (a lesão) e vejo que tenho minha família, isso redobra minhas forças. Quando olho a luta diária da Pietra e percebo que superei a perda do irmão, a luta de uma irmã que está enfrentando o câncer... Quando vejo isso, nada me abala e me entristece. Procuro superar os obstáculos".
Amor de escola
"A Moema está comigo desde Itororó, já são quase 18 anos com ela, minha colega de escola. Tem muito jogador que acaba esquecendo da raiz, esquecendo de quem esteve com você. A Moema tem uma grande parcela de contribuição em tudo. Não consigo me ver sem ela, não. Sou um privilegiado por ter uma mulher assim de fibra."
Idolatria em todos os clubes
"É muito bacana tudo que aconteceu na minha vida. Teve um Paraná x Santa Cruz agora e fui homenageado pelo Paraná. Colocamos o clube na Libertadores de 2007, fui homenageado, recebi uma camisa pela minha passagem. Voltei no Palmeiras e gritaram meu nome, a torcida do Galo fez bandeira para mim. É muito bom passar e marcar história no clube. Pude conquistar títulos e marcar história no clube. Com uma sequência boa de jogos, talvez eu possa conquistar o carinho do torcedor tricolor."
Retorno após lesão
"A previsão de retorno era de três meses. Já vinha sofrendo com as dores no tornozelo, cheguei no meu limite. Fui num especialista e acharam necessária a artroscopia, que foi bem sucedida. Volto em um momento de jogos importantes e temos como meta colocar o Flu na Libertadores. Espero voltar com uma performance boa e ajudar. Se analisar esse ano, foi um dos anos em que menos joguei na carreira. Atleta quer estar em campo, nós só somos valorizados jogando."
Rotina fora do campo
"Tiramos o lado bom. Não me recordava de ter ido buscar minhas filhas no colégio e esses dias tive esse privilégio. Cheguei na sala da Rebeca, a minha filha mais nova, e a professora me chamou, disse que era tricolor. Tem o lado positivo de aproveitar a família, mas o jogador tem de estar jogando. Às vezes o torcedor na rua até pergunta em que clube você está. A ansiedade está a mil, chega de sofrer pela televisão. Até concentração passa a fazer falta."
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