Por que Sérvia x Kosovo é o maior incidente político da Copa até agora?
Poderia ser a pomba da paz, mas na realidade estava bem longe disso. Os gestos feitos por Xherdan Shaqiri e Granit Xhaka após marcarem pela Suíça contra a Sérvia, no dia 22, foram o primeiro incidente explicitamente político desta Copa do Mundo.
Ao “abanarem” as costas das mãos com os braços cruzados, os jogadores lembraram a bandeira da Albânia. Parece complicado de entender, e é: jogadores da seleção suíça marcando contra a Sérvia e provocando a torcida em Kaliningrado, de maioria sérvia e com a simpatia russa, com alusões a um terceiro país.
Acontece que Xherdan Shaqiri e Granit Xhaka jogam pela Suíça, mas são de etnia albanesa. Para os brasileiros, o conceito de “etnia” diz muito pouco ou nada, mas no leste europeu exerce uma influência profunda sobre a identidade das pessoas.
Você pode, por exemplo, nascer na França, Alemanha ou Suíça. Mas, se tiver raízes albanesas, sérvias ou húngaras, muito provavelmente é com estes lugares, suas culturas e visões de mundo, com os quais irá se identificar.
É o conceito de nacionalismo étnico, que se aplica aos artilheiros da Suíça. Xhaka nasceu na Suíça, mas seus pais são albaneses de Kosovo. Shaqiri nasceu no próprio Kosovo. E, neste momento, talvez você esteja perguntando o que Kosovo tem a ver com isso tudo.
Kosovo era uma região da Sérvia de maioria albanesa. Ou seja, apesar de fazer parte da Sérvia, a maior parte de sua população se identifica com a Albânia, não com os sérvios. E o uso do verbo “era” aqui, assim, no passado, é relativo: declarada há dez anos, a independência kosovar ainda não é reconhecida por 80 países da ONU. O Brasil está entre eles, além, claro, da Sérvia, para quem a pequena e montanhosa região no sudoeste do país é uma província (muito) rebelde.
Se transportássemos o cenário para a realidade brasileira, em um exercício bem criativo, seria mais ou menos como o seguinte: argentinos aos poucos começam a entrar e a viver no Rio Grande do Sul, até que viram maioria e exigem a independência do estado gaúcho ou sua anexação à Argentina.
O Brasil provavelmente não gostaria nadinha dessa história. Agora imagine que, no caso de Kosovo, uma complexa variedade de questões históricas, culturais e religiosas tornam a situação muitíssimo mais complexa que essa eventual (e bem imaginativa) “tomada” do Rio Grande do Sul.
Kosovo é uma espécie de “berço” da Sérvia. Foi o centro do poderoso reino sérvio, que teve seu auge no século XIV, ali construiu mosteiros e fundou o patriarcado de sua igreja ortodoxa. Isso até a chegada dos otomanos, que invadiram a região e derrotaram definitivamente os sérvios em uma batalha em 1389 travada justamente perto da capital de Kosovo, Pristina.
A Sérvia só retomou totalmente Kosovo ao final da Primeira Guerra Mundial, quando os eslavos já eram minoria na região. Muçulmanos, os otomanos privilegiaram a população albanesa, também muçulmana, durante os vários séculos em que lá estiveram.
De volta às mãos dos sérvios, Kosovo passou a integrar a Iugoslávia junto com Macedônia, Bósnia-Herzegovina, Croácia e Eslovênia. Acontece que a relação entre todos esses povos jamais foi tranquila.
Milícias croatas aliadas dos nazistas mataram milhares de sérvios durante a Segunda Guerra Mundial. Além do ressentimento histórico mútuo, a Iugoslávia abrigou sobre o mesmo teto religiões diferentes (a Croácia e a Eslovênia são de maioria católica, a Macedônia, assim como a Sérvia, é cristã ortodoxa), alfabetos diferentes (a Croácia e a Eslovênia usam o alfabeto romano, a Sérvia, o cirílico) e povos não-eslavos. No caso, os albaneses de Kosovo.
Para complicar ainda mais, a Bósnia-Herzegovina também era de maioria muçulmana. Mas de muçulmanos eslavos.
Mas voltemos à Kosovo: todo esse caldeirão começou a ferver novamente após a morte do Marechal Tito em 1980. Ele comandava a Iugoslávia com mão de ferro, e o caldeirão entrou em ebulição de vez no início dos anos 90.
Explodia a guerra civil, que durou de 1991 a 1995 e matou cerca de 140 mil pessoas. A então Iugoslávia estava quase totalmente desmembrada ao seu fim, mas não inteiramente: enquanto eslovenos, macedônios, croatas e bósnios estavam enfim independentes da Sérvia, aquele pedacinho de maioria albanesa permanecia sob seu controle. E não gostava nada disso.
O novo foco de tensão virou um novo conflito em 1998, quando se intensificaram os confrontos entre as forças de segurança sérvias e o Exército de Libertação de Kosovo (ELK). A situação levou à intervenção da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no ano seguinte.
Bombardeada durante quase três meses pelos EUA e seus aliados europeus, a Sérvia acabou se retirando de Kosovo, que até hoje luta por um reconhecimento completo de sua independência.
A guerra em Kosovo, apesar de curta, brindou o mundo com os mesmos massacres, crimes de guerra e desrespeito aos direitos humanos que já haviam ocorrido entre 1991 e 1995. Para os sérvios, alimentou o sentimento secular de que, no final, eles sempre perdem.
Shaqiri e a família de Xhaka migraram para a Suíça justamente para fugir da guerra e da perseguição sérvia contra a etnia albanesa. Se entrar em campo contra a Sérvia já seria delicado, o comportamento da torcida sérvia na Rússia não tem ajudado.
Os dois jogadores eram vaiados sempre que tocavam na bola, e vídeos compartilhados em redes sociais mostram como os sérvios de fato levaram o ressentimento à Copa do Mundo. Uma postagem no Twitter flagrou torcedores no estádio com a camisa de Ratko Mladic’s. O ex-general sérvio ficou conhecido como “carniceiro da Bósnia” e foi condenado à prisão perpétua pela participação no genocídio de muçulmanos.
Outro vídeo compartilhado no Twitter mostra torcedores sérvios cantando “Oj Kosovo” em um bar de Caliningrado antes da partida contra a Suíça. “Oj Kosovo” é uma canção nacionalista que exalta a ideia de que Kosovo sempre pertencerá à Sérvia.
A Fifa decidiu multar Shaqiri e Xhaka em torno de R$ 38 mil pelo gesto em referência à Albânia. O lateral Lichtsteiner também pagará por seguir os colegas na provocação: R$ 19 mil.
A Federação Sérvia também precisará desembolsar uma grana. Primeiro, pelo comportamento de sua torcida: R$ 206 mil, além de mais R$ 38 mil por declarações infelizes do presidente Slavisa Kokeza e do técnico Mladen Krstajic após a derrota para a Suíça.
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