Libertadores da América na Espanha é traição a heróis da independência?
Quando foi fundada, a Copa Libertadores da América ganhou esse nome em homenagem à memória dos líderes políticos que lutaram pela independência do continente ante o domínio das metrópoles europeias.
Sessenta anos depois, a final do torneio entre River Plate e Boca Juniors será jogada em Madri, a capital da coroa espanhola, depois dos incidentes que levaram ao adiamento da partida em Buenos Aires.
O ineditismo da decisão da Conmebol levanta um debate curioso. Heróis nacionais como Simon Bolívar, José de San Martín, Antonio Sucre e Tupac Amaru passaram a vida e às vezes morreram lutando contra a coroa espanhola. A final do torneio que os homenageia acontecer na Espanha representa uma traição simbólica à memória e ao legado dos próceres da independência do continente?
"A final em Madri representa uma espécie de confissão, como se a América Latina não fosse capaz de sediar uma final", disse Idelber Avelar, professor de literatura latino-americana da Tulane University, em Nova Orleans.
"Tem todo um simbolismo a mais porque o Real Madrid é um time mais fortemente associado ao imaginário monárquico na Espanha. Existem várias camadas de ironia amarga nessa história que, talvez, os cartolas da Conmebol, no desespero para arrumar uma saída, não tenham percebido. Mas todo o mundo futebolístico percebeu o caráter dessa inapropriedade. É como se estivéssemos voltando a ser colônias simbolicamente."
Na América do Sul, convencionou-se chamar de "libertadores" todos os personagens históricos que se engajaram nas guerras de independência. Em geral, eram mestiços oriundos de classes abastadas, leitores de autores iluministas, que se revoltavam contra o domínio europeu nas colônias. Em seus escritos no século 19 costumavam chamar os espanhóis de usurpadores, tentando engajar a população na luta contra eles.
"Bolívar desceu e San Martín subiu os Andes em pleno inverno. Eles chegavam sem as botas e as palmilhas. Sofreram muito", afirma Yvone Dias Avelino, titular no Departamento de História da PUC-SP e professora de história da América na pós-graduação.
"A batalha mais sangrenta foi a de Carabobo, no norte da Venezuela, onde morreu muita gente. E quando eles chegavam na cidade, eram bem recebidos pela população. As pessoas queriam se libertar porque os espanhóis exploravam as terras, as riquezas, o cacau, o ouro, e exploravam as pessoas, transformando os índios e os negros em escravos", diz Yvone.
Entre os revolucionários, quem mais sofreu a mão pesada da coroa foi o líder indígena Tupac Amaru II, que, ainda no século 18, tentou libertar o Peru dos espanhóis. Capturado pelos representantes do reino, assistiu à execução de sua família antes de morrer degolado e esquartejado para servir de exemplo aos indígenas que se rebelassem contra o governo.
Como a Copa virou "Libertadores da América"?
A história da fundação do principal torneio interclubes do continente soa como mito, mas ajuda a ilustrar o simbolismo da escolha. Conta-se que em 1959, quando delegados da Conmebol foram batizar o torneio criado um ano antes, o representante da federação argentina propôs que ele se chamasse "Copa San Martín".
O delegado venezuelano teria então rebatido: "Que seja Copa Bolívar", em referência ao libertador de seu país. Já o chileno quis homenagear Bernardo O'Higgins, ao passo que o peruano propôs a "Copa Tupac Amaru". Até que alguém levantou a ideia salomônica: "Por que não Copa Libertadores da América?". O nome teria sido aceito pela maioria.
No próximo dia 9 de dezembro, a final da Libertadores será disputada no Santiago Bernabéu, estádio que pertence ao Real Madrid, clube mais representativo da monarquia espanhola.
Idelber Avelar, que falou sobre a ironia da escolha do país colonizador para a disputa da final de um torneio em homenagem aos libertadores, se arrisca a imaginar o que os heróis da independência latina achariam do River x Boca em Madri:
"Eu acho que Bolívar veria como um espírito nativista revoltado. Seria o sujeito que soltaria um grito de raiva e impotência, de revolta", afirma o professor, que é mineiro e atleticano. "San Martín veria a ironia da coisa, seria um leitor mais arguto. Como se a luta pela independência não tivesse dado todos os frutos que ele esperava. No final da vida de San Martín, essa frustração fica muito clara."
Por que a final será em Madri e o que isso significa?
Boca e River empataram em 2 a 2 no jogo de ida, mas quando foram se enfrentar na decisão, o ônibus do Boca foi apedrejado na chegada ao estádio do River, o que motivou o adiamento da partida. Como as autoridades argentinas não garantiram a segurança em uma nova data, a Conmebol decidiu marcar a final para fora do país.
Outras cidades se ofereceram e foram cogitadas para sediar o encontro, até que o campo do Real Madrid fosse escolhido. Essa será a última decisão no formato atual, já que a Libertadores de 2019 terá decisão em jogo único e em campo predefinido (em Santiago, no Chile), aos moldes da Liga dos Campeões.
Não foram poucos os críticos a esse novo modelo. "A Libertadores está muito ligada às nossas raízes", afirma o professor Idelber, retomando o histórico do torneio. "Para os países hispano-americanos sempre foi muito importante. Nós, brasileiros, passamos anos dando pouca atenção a ela, que fica meio desprezada por um tempo. Depois, ela realmente vira uma obsessão."
Com o principal jogo sendo realizado em outro continente, é provável que o brilho do torneio seja ofuscado na medida em que aumente a dificuldade de acesso aos torcedores e consequentemente a tradicional "atmosfera" criada por eles em grandes jogos. O que, por sua vez, também representa um baque à identidade sul-americana do torneio.
"A Libertadores é muito simbólica também pelo fato de ser uma competição que envolve o continente inteiro, que inclui todos os países. O nome da competição, a identidade futebolística que ela forjou, o estilo de jogo com muita garra em campo, que alude a um passado de lutas, isso tudo é associado à América", afirma Idelber.
Libertadores tinham relação conturbada com a Espanha
Simon Bolívar
Principal nome associado à emancipação da região que hoje compreende Venezuela, Colômbia, Equador, Bolívia e Peru, Simon Bolívar tinha uma relação violenta com a coroa espanhola. Na famosa "Carta da Jamaica", de 1815, na qual descreve seu ideal para o continente americano, o militar chama os espanhóis de "odiosos" "destruidores" e "usurpadores" que deveriam ser "expulsos" da América.
"Chegou o tempo, enfim, de pagar aos espanhóis suplícios com suplícios, e de afogar essa raça de exterminadores em seu sangue ou no mar", escreveu. "Maior é o ódio que nos inspira a península [ibérica] que o mar que nos separa dela; menos difícil é unir os dois continentes do que reconciliar os espíritos de ambos os países."
José de San Martín
Nascido no que hoje é a Argentina, San Martín passou boa parte da sua infância e juventude na Espanha, terra de seu pai. Lutou em batalhas contra a França pelo exército espanhol antes de voltar à América do Sul para lutar pela independência do continente. Considerado o grande herói nacional argentino, acabou voltando para Europa para passar os últimos dias de sua vida.
Bernardo O'Higgins
O herói nacional chileno tem o sobrenome do pai, um espanhol com ascendência irlandesa. Inspirados em ideais iluministas que conheceu na Europa, fazia oposição ferrenha a monarquias e a governos centralizados.
"Depois de tantas batalhas, de tão felizes e gloriosos esforços, antes deixe o sol de iluminarmo-nos para sempre que consentir que se estabeleça na América um centro, uma coroa", afirmou ele nos debates sobre as formas de governo da sociedade pós domínio colonial.
José Artigas
Conhecido como o "pai da nação uruguaia", Artigas tinha ascendência de espanhóis e argentinos, mas nasceu em Montevidéu. Acostumou-se a lutas contra vários impérios diferentes, liderando batalhas contra ingleses, portugueses, brasileiros e, claro, espanhóis. Era antimonarquista radical e dizia frases como:
"A questão é entre a liberdade e a tirania. Nossos opressores, não por sua origem mas pelo mero fato de sê-lo, são o objeto de nosso ódio."
Tupac Amaru
Antes dos demais libertadores desta lista, Tupac Amaru II liderou sua revolta contra a colonização espanhola ainda no século 18. Batizado como um mestiço de índio com europeu (José Gabriel Concorcanqui), mudou de nome para reivindicar sua herança indígena, se dizendo descendente direto do líder inca Tupac Amaru.
Após se rebelar contra o sistema colonial espanhol, organizou uma revolta que reuniu incas insatisfeitos com as condições impostas pela coroa. As pesquisadoras Kátia Gerab e Maria Angélica Campos Resende, no livro "A Rebelião de Tupac Amaru - luta e resistência no Peru do século XVIII", descreveram assim sua morte:
"Ataram-lhe às mãos e pés quatro cordas e prenderam-nos ao dorso de quatro cavalos [...]. Não sei se porque os cavalos não fossem muito fortes, ou o índio, em realidade, fosse de ferro, não puderam absolutamente dividi-lo, depois de um interminável momento em que o mantiveram puxando, de modo que o tinham no ar, num estado em que parecia uma aranha. Tanto que o visitador, movido de compaixão, para que não padecesse mais aquele infeliz, despachou uma ordem mandando que o carrasco cortasse sua cabeça."
Dom Pedro I
Como uma forma de incluir o Brasil na homenagem ao principal torneio interclubes do continente, costuma-se incluir Dom Pedro I na lista de "libertadores da América". Apesar do imperador ter sido o principal nome da Independência do Brasil, guarda diferenças importantes em relação aos pares sul-americanos: era filho do rei de Portugal, nasceu na antiga metrópole, conquistou a emancipação sem grande incursões militares pelo território nacional e manteve o novo país uma monarquia.
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