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Tales Torraga

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

'Que venham os macacos': racismo foi até manchete de jornal na Argentina

Torcedor do Boca Juniors foi detido após imitar macaco em direção a corintianos nas arquibancadas da Neo Química Arena - NELSON GARIBA/AGÊNCIA F8/ESTADÃO CONTEÚDO
Torcedor do Boca Juniors foi detido após imitar macaco em direção a corintianos nas arquibancadas da Neo Química Arena Imagem: NELSON GARIBA/AGÊNCIA F8/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

28/04/2022 04h00

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Torcedores dos dois principais clubes da Argentina protagonizaram episódios racistas contra brasileiros em intervalo de apenas 13 dias nesta Libertadores da América. No último dia 13, um homem na arquibancada do Monumental de Núñez, durante o River Plate x Fortaleza, descascou uma banana e a atirou no setor onde estavam os brasileiros. Anteontem (26), na Neo Química Arena, um torcedor do Boca Juniors imitou um macaco em direção aos corintianos e foi preso pela Polícia Militar.

A sequência espanta, pois anteontem (26), em La Plata, houve também a queixa dos torcedores do Bragantino contra os do Estudiantes — que, apesar de quatro títulos de Libertadores, não é considerado time grande na Argentina.

Os episódios racistas nos estádios argentinos são abordados com frequência pela coluna e pelo UOL Esporte. Além dos jogos do River e do Boca, já citamos gestos lamentáveis contra colombianos nas torcidas do Estudiantes e do Vélez Sarsfield.

Até um preparador de goleiros do Racing, na Libertadores de 2016, teve a infelicidade de imitar uma banana descascada em direção à torcida do Atlético-MG no Horto da Floresta. Ele foi demitido na ocasião.

Pós-trauma

A sensação de que na Argentina "todo jogo é assim" é enganosa. O racismo no país atravessa uma triste reiteração, é fato, mas antes desses jogos de River e Boca, o último acontecimento havia sido na final da Libertadores de 2019, entre River Plate e Flamengo, em Lima (Peru). Antes disso, no Independiente x Corinthians de 2018.

O aumento das tecnologias disponíveis para o registro de tais gestos também precisa ser levado em consideração, impactando no aumento da "média" dos episódios. Ela vinha sendo de um ou dois por temporada — agora, depois do período sem público na pandemia, são três casos em duas semanas.

O clima dos estádios argentinos é bélico desde a virada do ano. Uma das razões da atual animosidade está bem clara para os portenhos, os habitantes de Buenos Aires: o estresse pós-traumático pela pandemia de covid-19.

A alteração de ânimo entre os argentinos não é justificativa para o racismo, é claro, mas o contexto deste 2022 não pode ser ignorado. A soma entre o desgaste psíquico, o ódio e o preconceito é uma pista segura ao se analisar as repetidas hostilidades no país.

"Há inúmeros relatos de declínio da memória e transtornos de estresse pós-traumático e de ansiedade generalizada", declarou à coluna a psicóloga argentina Yamila Cawara, que mantém um consultório em Buenos Aires, no bairro de Palermo, espaço que já foi conhecido como "Villa Freud".

"Esta explosão de violência e hostilidade nos estádios tem a ver com a gravidade de fatores socioeconômicos, perda de familiares e prejuízos financeiros durante a pandemia de covid-19. Tudo está associado."

Não foi só na Libertadores que houve aumento de tais comportamentos entre os argentinos. Nos recentes jogos da seleção pelas Eliminatórias, a AFA (Associação de Futebol Argentino) foi multada em três ocasiões seguidas, contra Bolívia, Uruguai e Brasil, por "xenofobia e cantos discriminatórios".

No atual Campeonato Argentino (versão Copa da Liga Profissional), na rodada dos clássicos, há um mês, a hostilidade incluiu garrafadas e bombas arremessadas em campo — a distância da violência contra o adversário para o racismo, infelizmente, é de apenas um passo.

As autoridades argentinas reclamam da falta de esforços jurídicos, políticos, educacionais e até mesmo dos meios de comunicação para enfrentar o problema.

"A sociedade argentina é tão racista que nem se dá conta do seu racismo. Ele está naturalizado", afirmou Daniel Mato à "Télam", a agência de notícias do governo. Doutor em Ciências Sociais e investigador de um conselho nacional chamado Conicet, ele clama pela atenção conjunta.

"O racismo contamina as subjetividades de se ver o mundo e a população. Ele se assemelha ao machismo e à homofobia. Mas enquanto esses dois comportamentos são sistematicamente combatidos por pessoas e ONGs na Argentina, o racismo não tem a mesma atenção."

Na Argentina há um instituto a respeito, o INADI (Instituto Nacional Contra A Discriminação, Xenofobia e Racismo), que reconhece como o tema é incipiente no país. "O racismo existe na Argentina e mata. Todos os atos de violência deste tipo têm atrás de si uma trama discursiva que o aprova", diz à coluna Karina Iummato, coordenadora do órgão.

As raízes do racismo na Argentina foram destrinchadas pelo TAB, aqui no UOL, em junho de 2021. Quem quiser se aprofundar no entendimento sobre os "europeus da América e os gaúchos livres" pode ler o material na íntegra aqui.

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Jogadores do Boca se protegem das garrafadas da torcida do River
Imagem: Reprodução TV C5N

Mensagens erradas

Voltando ao âmbito do futebol, as animosidades contra os brasileiros vindas da imprensa argentina também merecem consideração. Elas eram frequentes na virada do milênio. Há pouco mais de 25 anos, o jornal argentino "Olé", especializado em esportes, estampou em sua manchete uma provocação à seleção brasileira de futebol: "Que venham os macacos".

O texto da capa com a óbvia alusão preconceituosa comemorava a vitória da Argentina sobre Portugal e afirmava que Brasil e Nigéria disputariam a segunda vaga na decisão da Olimpíada de Atlanta, realizada em 1996.

Então em seu terceiro mês de circulação, o "Olé" gerou um tenso conflito diplomático. O embaixador do Brasil na Argentina, Marcos Azambuja, enviou uma carta formal de protesto ao assessor de comunicação do presidente Carlos Menem, Raúl Delgado.

Na carta, Azambuja reclamava das "insinuações raciais e depreciativas do jornal". O vice-ministro de Relações Exteriores da Argentina, André Cisneiros, dizia que o governo "estava consternado".

A repercussão assustou os editores do "Olé", que publicaram uma retratação no dia seguinte. O secretário de redação do jornal, Mariano Hamilton, disse que a manchete se referia aos brasileiros, e que "os argentinos costumavam chamá-los de macacos, uma coisa institucionalizada".

No editorial, cujo título era "Sem intenção de faltar o respeito", o jornalista negava a existência de qualquer conteúdo racista no termo "macacos": "Não houve intenção de ofender. Aqui não há nenhum racista".

"A gozação e os jargões do futebol podem mudar como são entendidas as palavras segundo o contexto. Por isso, o Olé pede desculpas ao povo brasileiro", encerrava o editorial.

Responsável por aquela capa, Hamilton seguiu no cargo e construiu uma respeitada carreira na imprensa argentina, sendo comentarista de grandes emissoras de TVs e autor de bem-sucedidos livros publicados pela editora Planeta, a maior do país.

O grave deslize, no entanto, o faz pedir desculpas até hoje. "Vi no dia seguinte e pensei: que cagada imensa. É a maior cagada da minha carreira. Se eu pensasse outra coisa, seria um estúpido", conta.

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Torcida em San Juan na entrada da seleção argentina em campo, contra o Brasil
Imagem: Igor Siqueira/UOL

As justificativas

"Creio que no Brasil o tema do racismo é muito mais sensível do que na Argentina, onde há xenofobia contra paraguaios, bolivianos e peruanos, uma situação que não apoiamos. Mas nós não nos consideramos racistas com os brasileiros", comentou à época o jornalista Leonardo Farinella, então diretor de redação do "Olé".

Além de publicar a retratação no dia seguinte, o "Olé" aproveitou o deslize para reforçar sua linha editorial, que "brincava com os limites entre o coloquial, o ordinário, a gozação e a ofensa", mas reconhecia que "ultrapassara uma fronteira sensível".

"Entendíamos que 'macaco' era uma palavra muito utilizada pela imprensa argentina", justificava Farinella. "Pensamos que não ia nos trazer dificuldades. O que não levamos em conta é que a imprensa brasileira tinha um outro conceito do nosso jornal e não esperavam que usássemos essa palavra. Assumimos o erro e nunca mais usamos este termo. Isso é o que acontece quando alguém vai com tudo: corre riscos e às vezes manda uma bola fora."

A alusão do "Olé" aos brasileiros não foi a primeira da imprensa argentina no final do século passado. Tais práticas, porém, são cada vez mais raras nos meios de comunicação do país vizinho. Praticamente desapareceram.

Em 1995, quando houve um conflito diplomático por uma restrição à entrada de veículos argentinos no mercado brasileiro, o jornal "Ámbito Financiero" publicou uma charge de um negro defecando carros.

Em 1997, o jornal "Crónica", de Buenos Aires, chamou os brasileiros de "macacos" ao noticiar a vitória da seleção júnior de futebol da Argentina sobre o Brasil, por 2 a 0, no Mundial Sub-20, na Malásia.

A palavra foi publicada na primeira página de uma edição cuja tiragem beirava os 300 mil exemplares. "A comemoração louca dos nossos juvenis na Malásia, após derrotar a sub-20 dos macacos, que vinha fazendo dez gols por partida", afirmava o "Crónica" na legenda de uma foto dos atletas argentinos.

O embaixador do Brasil na Argentina, Marcos Azambuja, repetiu o que havia feito com o "Olé" e enviou uma carta à direção do jornal criticando a palavra "macacos", que considerava "racial, pejorativa, politicamente incorreta e inteiramente inaplicável".

O secretário de redação do "Crónica", Júlio de Puch, disse que a "expressão 'macacos' estava "institucionalizada como uma referência aos brasileiros", mas que não significava uma "provocação racista". O jornal não fez nenhum reparo à sua edição.

Embora a palavra para designar "macaco" em espanhol seja "mono", o termo "macaco" ou "macaquito" é uma alusão ao pensamento descrito no meio do ano passado pelo presidente argentino, Alberto Fernández, que disse ao premiê da Espanha, em Buenos Aires, "que os mexicanos vieram dos indígenas, os brasileiros, da selva, e nós, argentinos, chegamos em barcos que vinham da Europa."

A metáfora racista, xenofóbica (e obviamente violenta e atrasada) aplicada por parte da população argentina estabelecia que "eles eram homo sapiens, e os brasileiros, inferiores na escala evolutiva, macacos e primatas, pouco evoluídos".

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Charge racista contra seleção brasileira em jornal argentino
Imagem: Domínio Público

A origem dos 'macaquitos'

O apelido de "macaquitos" dado pelos argentinos aos brasileiros surgiu na Guerra do Paraguai, na segunda metade do século 19, porque alguns batalhões de soldados brasileiros eram quase todos compostos por negros, quando o país ainda mantinha a escravidão.

Foi no futebol, porém, que o apelido pejorativo ganhou força.

Nos primeiros confrontos entre as seleções de Argentina e Brasil, na primeira metade do século passado, torcedores argentinos imitavam macacos nas arquibancadas, o que chegou a causar a retirada do gramado dos jogadores brasileiros.

Em 1920, a seleção brasileira fez um amistoso na Argentina e foi recebida com uma charge racista assinada pelo jornalista uruguaio Antonio Palacio Zino, com ilustração do argentino Diógenes Taborda, e publicada no jornal "La Crítica".

A triste situação dos "macaquitos" desenhados foi retratada em novembro de 2020 no completo especial do UOL Esporte assinado por Ana Flávia Oliveira e Eliana Alves Cruz.