Fomos cúmplices

Assisti ontem ao devastador "Zona de Interesse", a história real de uma família alemã que morava em uma mansão ao lado de Auschwitz.
O pai, oficial nazista, era o diretor geral de Auschwitz. Sua mulher e seus filhos ficavam na mansão enquanto ele ia trabalhar. A casa era puro luxo: arejada, clara, com um impressionante jardim, piscina, muitos empregados, muita comida.
No plano de fundo, enquanto as lentes nos convidam a olhar para a riqueza de um lar da elite alemã da época, as chaminés do campo de concentração nunca pararam de queimar. Enquanto a família convive idilicamente em seu jardim paradisíaco, os sons e os gritos vindos do campo de extermínio podem ser escutados de longe.
Ninguém liga.
O vinho gelado é servido à beira da piscina. As crianças correm pela grama. O jantar é preparado. A vida segue na casa dos Hoss enquanto a morte impera do lado de lá do muro.
Ninguém liga.
É desse modo que se convive com o absurdo, com o abjeto, com o inaceitável, com o inegociável.
O filme é dilacerante, sufocante, nauseante.
E precisa ser visto.
Precisa ser visto para que lembremos, sempre, a todo instante, que nossos ancestrais foram cúmplices desse genocídio, um dos piores da nossa história.
Hitler foi naturalizado, suas práticas foram naturalizadas, sua linguagem foi absorvida.
O empresariado financiou. As corporações patrocinaram. O Vaticano apoiou. Os Estados Unidos apoiaram. Churchill apoiou. A imprensa brasileira enalteceu: chamava Hitler de grande liderança.
Até que o mundo finalmente se horrorizasse com o nazismo foram mais de dez anos.
Olhar para esse ponto do passado, antes de ser tarde demais, para ter a certeza de que evitaremos horrores como esse.
Olhar para as populações originárias das Américas, um genocídio que levou cerca de 70 milhões de vidas, e pensar que muitos de nossos ancestrais, acovardados, foram cúmplices.
Olhar para o genocídio das pessoas sequestradas da Africa pela colonização e pensar que muitos de nós, acovardados, fomos cúmplices.
Olhar para as mulheres da Europa medieval, queimadas aos milhões, e pensar que muitos de nós, acovardados, fomos cúmplices.
Olhar para a comunidade negra sul-africana em boa parte exterminada pelo Apartheid e pensar que muitos de nós, acovardados, chamávamos Mandela de terrorista enquanto apoiávamos o governo totalitário dos brancos: fomos cúmplices.
Olhar para o passado e meditar para que, da próxima vez que observarmos o horror chegando, não sejamos cúmplices, não nos acovardemos, não nos calemos, não nos apequenemos e possamos, enquanto grupo humano, nos redimir.
Vocês veem alguma coisa? Conseguem usar o passado para apontar horrores semelhantes no presente?
Congo. Yanomamis. Palestina. Periferias. Favelas. Mulheres.
Que tenhamos a coragem de nos redimir.
Até aqui, assim como nossos ancestrais, temos sido cúmplices.
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