Milly Lacombe

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Paolla Oliveira, a onça e a desestabilização que elas causaram

* Com Paola Lins

As imagens de Paolla Oliveira desfilando à frente da bateria da Grande Rio, na Marquês de Sapucaí, vestida com uma fantasia de onça, arrebataram multidões de forma bastante inédita. Foram mais de 250 milhões de visualizações em suas redes sociais. Só em uma delas, o Instagram, o número é de 36 milhões de contas alcançadas. No TikTok, 5 milhões de curtidas e 130 mil comentários.

Ficamos suspensos quando a onça de Paolla sambou nas nossas caras. Mas por que exatamente? O que aconteceu para que uma rainha de bateria causasse tanta comoção, tanto encantamento, tanta suspensão, tanta repercussão?

De imediato, o que vemos é a potência do erótico, claro. Paolla e seu corpo deslumbrante e bastante verdadeiro nos encaram como quem diz: sou eu, mas também poderia ser você. Olha bem pra mim. O que você vê? Você vê liberdade? Vê alegria? Vê felicidade? Tudo está bem aqui ao seu alcance.

Mas, se fosse apenas esse aspecto, Paolla não teria se destacado como se destacou porque havia dezenas, centenas de outras mulheres e homens carregando com elas e com eles pela avenida essa mesma potência e esses mesmos convites. Afinal, é Carnaval.

Então tem que haver alguma coisa a mais nas imagens de Paolla Oliveira de onça.

Existe uma dimensão de mistério no fascínio que a fantasia de onça da rainha de bateria da Grande Rio provoca. Talvez uma parte desse mistério venha de uma sensação de desestabilização, de um incômodo que ao mesmo tempo atrai.

Mas por que incômodo e atração?

Por um lado, associar as mulheres aos animais é uma estratégia do patriarcado para nos desumanizar, nos aproximando da natureza e distanciando de um ideal de cultura e civilização.

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Essa estratégia vincula a libido feminina a algo descontrolado e selvagem. Nessa linha, mulheres, animais e os chamados "povos incivilizados" estariam mais próximos de um erotismo refém das pulsões primitivas, desgovernado e perigoso.

Por outro lado, os jeitos de viver e as filosofias de vida de diversos povos indígenas nos falam sobre uma continuidade entre a humanidade e todas as existências, entre pessoas, bichos, plantas, lugares, entre o que entendemos como cultura e natureza. Nessa visão, não existiria uma separação definitiva entre o que é da ordem do natural e o que é da ordem do humano. Pessoas fazem parte da natureza e a natureza parte de nós, e consequentemente do que entendemos como cultura. Pessoas podem virar bicho, os bichos podem virar pessoas, e isso cria uma profusão de possibilidades de existir.

Na fantasia de onça, Paolla mexe com as convenções, convocando a força do elo entre natureza e cultura, entre ser mulher e ser bicho. Ela abala a negatividade da ideia da libido selvagem feminina. Mexe com esse imaginário, mas não propõe uma alternativa fechada.

Assim como o próprio Carnaval faz: transgride, suspende e inverte regras, fazendo com que a gente possa olhar para a vida social com novos olhos, sem necessariamente trazer respostas, mas colocando ao nosso alcance outras formas de enxergar.

Em seu mais recente livro ("Alfabeto das Colisões") o professor Vladimir Safatle fala a respeito das quebras, das rupturas, das colisões: "Talvez a única posição ética à altura de nosso tempo deveria partir da procura por assumir uma insegurança ontológica fundamental. Poderíamos dizer que a ética se tornou para nós um aprendizado sobre como cair e como se quebrar. Há certos momentos em que fica claro que o mais importante é saber como cair. Pois fomos feitos para nos quebrarmos. [...]. Prepare-se porque um dia você irá se quebrar, você irá se trair. Você irá se deparar com aquilo que não se submete ao seu controle, aquilo que te tira da jurisdição de si mesmo, aquilo que te desfaz de suas identidades, aquilo que desorienta a ação e o julgamento".

Paolla passou e desorientou. Desorientou o seu desejo, o meu desejo, o nosso desejo. E não falamos aqui apenas de desejo na dimensão do sexual. Desejo na dimensão do psíquico, do alargamento de fronteiras e de consciências.

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Paolla encantada em uma onça era eu, era você, era a gente. Por motivos com os quais todas as mulheres podem se relacionar, Paolla resolveu encarar o mundo de seu jeito emancipado, mandou um "me deixem" para os exigentes padrões que aprisionam mulheres e, ao decidir se livrar de tanta rigidez, ficou livre, leve e solta para ser quem é.

Ela tinha noção dos ventos que produziria com essa atitude? Tinha ideia do tsunami que estava gerando?

Arriscamos dizer que sim, Paolla sabe que, ao surfar com tanto estilo essa onda, está abrindo as águas para que muitas de nós passemos pela ainda estreita, mas já inaugurada, travessa da liberdade. Ela estava preparada para tanta repercussão? Para responder, vamos recorrer a um ditado: os fados convidam a dançar aqueles que estão prontos. Os que não estão, eles arrastam. Paolla arrastou. E nada jamais será como antes. Não para quem a viu passar.

* Paola Lins é antropóloga, pesquisadora e roteirista

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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