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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Cinco dilacerantes verdades sobre o futebol que a vitória do City oferece

Manchester City levanta a taça de campeão da Champions -  David Ramos/Getty Images
Manchester City levanta a taça de campeão da Champions Imagem: David Ramos/Getty Images

Colunista do UOL

11/06/2023 11h58

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Imagens da reação de torcedores do Manchester City presentes ao estádio turco, imediatamente depois de conquista inédita e tão sonhada como a Liga dos Campeões, estão viralizando.

Parece, de fato, que estamos vendo aquelas pessoas vestidas em azul receberem a notícia de que seus filhos passaram de ano sem recuperação.

Não são, no nosso imaginário, as imagens de uma vitória emblemática, de uma taça inédita, de um título continental.

Alguns ângulos sugerem uma certa apatia, já outros mostram uma celebração mais efusiva. Seja como for, o que vimos antes, durante e depois do jogo não emparelhava com a emoção que a partida, por sua importância, pediria.

Mesmo se levarmos em conta uma certa frieza emocional que é cultural e associada aos países do hemisfério norte, teremos que perceber que a celebração ao final da partida é estranha em proporção ao tamanho da conquista.

Mas as imagens fazem sentido. Elas refletem com extrema honestidade o que o futebol se tornou.

Em finais recentes da Sul-Americana e da Libertadores vimos coisas parecidas antes, durante e depois do jogo final.

1. O jogo hoje é um produto feito para a TV.

Por quê? Porque é desse modo que se pode acomodar melhor o dinheiro que entra através de patrocinadores.

Esse é o resumo vulgar da situação.

2. O futebol deixa de ser uma mobilização popular, deixa de ser emoção, e passa a ser ferramenta de acumulo de poder e de lavagem de dinheiro.

Não por acaso o dinheiro que hoje movimenta o jogo vem das ditaduras do Oriente Médio.

O City, assim como o PSG, são projetos dessa classe de homens de riqueza obscena acumulada com a exploração predatória da terra e de pessoas.

CR7 foi jogar por lá. Muitos outros estão fazendo o mesmo caminho. Já tivemos uma Copa no Qatar e cada vez mais veremos a geopolítica do futebol pesar para aquela parte do planeta.

Tudo orientado para o lucro e a circulação de riqueza entre os mesmos. A alma do futebol sequestrada por interesses apodrecidos.

3. Se o dinheiro vem de lá, o formato vem dos Estados Unidos e de seus esportes franqueados.

Assim como acontece nos modelos estadunidenses de esportes profissionais, clubes estão virando franquias.

Nosso Bahia faz parte de uma dessas franquias. Justamente a do City.

Também como na NFL e na NBA, o jogo agora é um show feito para as câmeras, e não para quem está no estádio.

Música, luzes apagadas, fogos, hinos, DJs... Tudo ensaiado, tudo premeditado, tudo roteirizado para que o mínimo escape do controle.

O futebol como o conhecemos não vai tolerar essas ofensas. O jogo lida com a falta de controle, com o imprevisto, com nossa capacidade de adaptação ao imponderável.

No dia em que clubes forem franquias e o jogo for controle o futebol acaba.

Nascerá uma outra coisa, uma tecnologia de acumulo de riqueza e de poder dentro da qual os mesmos sempre vencem, mas não vai ser futebol.

As imagens da comemoração na Turquia, com todas as aspas em comemoração, são realmente chocantes e deprimentes.

4. Taticamente, o jogo acompanha a morte simbólica das arquibancadas.

Um jogo previsível, que raramente sai do roteiro.

Transformaram o futebol num jogo territorial e tiraram dele seu caráter humano que sempre envolveu a relação criativa entre pessoas em um espaço limitado e com um objetivo comum.

(Escrevi mais sobre isso aqui)

A gamificação do futebol real, no ângulo das câmeras e no ordenamento tático, é o que vale hoje.

Perder passou a ser intolerável diante desse modelo.

A ideia de que haverá uma nova vida, uma nova chance, agora é orientada pelo formato do game: eu quero uma nova vida agora!

Esse imediatismo tão característico dos temos do ultracapitalismo é artificial. A vida não oferece uma segunda chance de forma automática. Ela exige autoavaliação, recolhimento e acolhimento da tristeza.

Como o futebol sempre foi uma metáfora da vida, essa nova característica trazida pela gameficação é uma das coisas que vai liquidá-lo.

5. Quanto mais elitizado for o jogo mais aquele torcedor, que será chamado de cliente, exigirá comportamentos que sejam coerentes com o que ele pagou.

O racismo cresce com essa ideia. Machismo, misoginia e LGBTfobia também.

Se ele pagou tão caro por ingresso, camisa, canais fechados e o pacote inteiro, então ele se sente proprietário. Como proprietário é direito sagrado que ele se manifeste como bem entender. O jogador negro serve desde que trabalhe adequadamente (faça gols, se mate em campo etc). Se não for assim, eu me refiro a ele como bem entender. Ele é meu. Esse produto é meu.

Como acontece há séculos, seguiremos nos matando aqui no chão de fábrica da vida enquanto os mesmos homens de sempre ganham muito dinheiro vendo a carnificina desde os seus camarotes fechados e climatizados.

A vitória do City fez revelações importantes.

E elas não são nem bonitas nem edificantes.