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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Já é hora de colocar Abel Ferreira em seu devido lugar

Abel Ferreira, durante a comemoração do título do Palmeiras - JOTA ERRE/ESTADÃO CONTEÚDO
Abel Ferreira, durante a comemoração do título do Palmeiras Imagem: JOTA ERRE/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

29/01/2023 11h10

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O encontro entre Abel Ferreira e Palmeiras é desses que rompem com o tempo e têm a capacidade de fazer com que as coisas se transformem de modo definitivo.

Não é possível saber se Abel fez mais pelo Palmeiras do que o Palmeiras por Abel. É possível, isso sim, afirmar que estamos diante de uma história de amor e que ela será eterna.

O Palmeiras pós-Abel terá sido elevado a um dos maiores times do mundo.

O Abel pós-Palmeiras terá sido elevado a um dos maiores treinadores do mundo.

Se essa história de amor começou meio por acaso, se a primeira Libertadores veio meio aos trancos e barrancos, seu desenrolar não teve nada de acidental.

Abel entendeu que, para ter um time competitivo, teria que formar sujeitos plenos e potentes mentalmente.

Se chegou e encontrou meninos foi capaz de compreender que precisaria de homens para vencer.

Rony, Scarpa, Veiga, Zé Rafael, Danilo, Marcos Rocha, Murilo; jogadores que ou eram desconhecidos ou eram, até Abel chegar, usados como moeda de troca pelos clubes onde passaram. Hoje, são cobiçados e reverenciados.

Vejamos o caso de Gabriel Menino, jovem que veio da base - aliás, talvez não houvesse Abel sem o trabalho de base do ex-presidente Paulo Nobre - e chegou ao time principal altamente badalado.

O sucesso precoce parece ter subido à cabeça de Menino e ele perdeu espaço no grupo. Viu, do banco, Danilo ser chamado de craque e se colocar na posição de umbigo de um time que se recusava a perder.

Abel trabalhou com Menino. Deixou o garoto na sombra e fez o que faz com seu elenco: treinou, treinou, conversou, conversou. Menino voltou e, na final da Supercopa, fez o que fez.

Abel construiu um Palmeiras que entra em campo imenso.

A beleza de uma força bruta que dificilmente é vencida.

A ocupação do campo de forma total, a mentalidade inflexível, a solidariedade coletiva, o contra-ataque matador e o domínio dos pequenos espaços quando é preciso segurar a bola.

Teceu uma tapeçaria de um verde profundo feita de fios que não se rompem. Elevou o "ser palmeirense" a uma nova dimensão. Entendeu todos os seus significados e significantes e se implicou como nenhum outro antes dele em um estado de espírito palestrino que hoje é mais forte do que nunca. A quem não sabia o que era "ser Palmeiras", Abel está mostrando de modo inédito.

É engajamento demais; é coisa demais.

Tenho dito que é a nova Academia, e a cada dia que passa tenho mais certeza disso. Falaremos desse time por séculos.

Por causa de Abel e do Palmeiras que ele formou, uma nova geração de torcedores e de torcedoras palmeirenses vem aí - e ela não se limita ao estado de São Paulo. O Palmeiras de Abel é time de alcance nacional e internacional.

E o que ele fez até aqui já é suficiente para impactar todo o futebol brasileiro.

O Palmeiras como modelo e exemplo conta a história do que podemos ser, de como podemos existir, de quanto mais podemos melhorar.

Abel e o Palmeiras puxam a fila da qualidade, da força, da organização e da competitividade para todos os demais clubes.

Não há outro como Abel hoje no Brasil. Não há outro nas Américas hoje como Abel. Há poucos na Europa hoje como Abel.

Em 2023 ele terá que fazer tudo outra vez, agora sem reforços.

Está sendo punido pelo próprio mérito: fez muito com pouco e agora espera-se que faça mais com menos. Conseguirá?

Talvez. Eu apostaria num "sim".

E o comportamento histriônico fora de campo? Precisamos sim falar disso.

Abel se comportaria assim sendo treinador no campeonato da Inglaterra, da Espanha ou de Portugal? Então por que faz aqui? Essa pergunta me parece legítima.

Uma mulher que se comportasse fora de campo como ele faz seria massacrada.

Imaginem Pia Sundhage agindo assim.

A uma mulher não é dado o direito de parecer estar fora de controle.

Um homem negro talvez também não pudesse fazer o que faz Abel durante uma partida.

Enquanto vence, esse comportamento é colocado na chave do exótico, do pitoresco, da graça. Mas e se começar a perder?

Doses de paixão e destempero cabem em certa medida no futebol.

Erros de arbitragem são difíceis de engolir, e Abel reclama na maior parte das vezes cheio de razão porque alguns erros são inexplicáveis e inaceitáveis. Mas eles acontecem com todos os clubes, talvez com alguns mais do que com outros, mas com todos.

Vendo o jogo em casa, o torcedor muito provavelmente se destempera como Abel. Berra. Xinga. Dá pontapé em pé de mesa.

Existe uma identificação direta com o torcedor quando Abel entra em rota de descontrole; o torcedor se apaixona um pouco mais pelo treinador, afinal, ele é um dos nossos, ele ama esse time como a gente ama. A cada surto, maior a idolatria.

Ok, o futebol é feito mesmo disso.

Mas duas observações precisam ser feitas aqui em relação ao por que essa conduta à beira do gramado - que no limite é maravilhosa - pode também ser perigosa já que ídolos inspiram comportamentos, e quanto maior a idolatria, maior a inspiração.

Entre a legião de fãs de Abel há homens, mulheres, adolescentes e crianças. Muitos adolescentes e crianças. Crianças e adolescentes que berram seu nome e leem seu livro, uma turma que olha para Abel e enxerga perfeição e inspiração.

A primeira observação, então, seria a de que o futebol tem que incluir responsabilidade social. São muitos os que, vida afora, se inspiram em seus ídolos.

Quando vemos o líder e ídolo do time fazer o que Abel faz a gente pode se autorizar a fazer o mesmo ou subir o tom. Se o Palmeiras vence, beleza, fica tudo bem. Mas e se perde?

E a segunda, relacionada à primeira, é o triste entendimento de que, em dias de jogo, a violência doméstica aumenta no Brasil. Mulheres apanham mais, sofrem mais, morrem mais

(Leia a pesquisa completa aqui: Registros de violência doméstica aumentam quase 26% em dias de futebol) .

Esses são fatos, não achismos. São pesquisas, não sensacionalismo.

(Nota da autora dada a imensidão de xingamentos recebidos: a associação que faço, com base na pesquisa acima, é entre o comportamento de um ídolo, qualquer ídolo, com o comportamento espelhado de quem está em casa, e dos riscos que isso pode acarretar).

Não me incomoda que Abel seja um apaixonado inconformado que pula, soca o ar, fala palavrões. Vejo beleza nesse tipo de entrega.

Começo a achar estranho quando ele chuta o microfone ou se aproxima furiosamente da juíza Edna Alves e coloca a mão em seu ombro.

Acho igualmente esquisito quando ele coloca seu corpo entre a bola e Arrascaeta para que o uruguaio não bata o lateral rapidamente e inicie o contra-ataque.

Toda a correção ética que Abel exige de outros de forma rigorosa ele precisa também praticar. Como ele reagiria se o treinador rival impedisse malandramente um contra-ataque do Palmeiras?

Abel sabe que precisa dimerizar paixão e fúria à beira do gramado. Se conseguir fazer isso, será unanimidade nacional e internacional.

Sem o destempero, o olhar estrangeiro que joga sobre nosso futebol é mais do que bem bem-vindo.

Na final da Supercopa, reclamou quando viu que a torcida do Flamengo estaria de frente para as principais câmeras da transmissão. Faz sentido sua reclamação. Por que foi decidido que a torcida do Flamengo ficaria ali? O justo seria um sorteio. Foi feito assim?

Abel diz que precisa formar homens e não apenas jogadores. Faz todo o sentido o que ele diz. Eu só acrescentaria que essa é uma necessidade mundial e não apenas nacional. E também diria que formar homens é formar sujeitos não machistas, não sexistas e não misóginos.

Diante de tudo o que Abel representa, seria hora de colocá-lo em seu devido lugar, que seria o de um pedestal: o que fez até aqui pelo Palmeiras já justifica uma estátua no clube.

É, para mim, o maior treinador da história do Palmeiras e um dos maiores do mundo.