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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly: O dia em que o futebol venceu o nazismo

Colunista do UOL

10/02/2022 12h03

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Nove de agosto de 1942. Esse foi o dia do jogo que ficou conhecido como "a partida da morte" disputada entre nazistas e Soviéticos.

Numa União Soviética parcialmente invadida pelo exército nazista, a cidade de Kiev foi ocupada pelas tropas alemãs. O time do Dinamo, então um dos melhores da região, foi desmontado e, seus jogadores, espalhado pelos campos de prisioneiros.

Depois de algum tempo, boa parte foi liberada para voltar à cidade ocupada e tentar sobreviver. Alguns dos atletas conseguiram emprego em uma padaria de Kiev cujo gerente era torcedor do Dinamo, e decidiram voltar a jogar. Formaram um time ao qual deram o nome de "Start", ou "começo" em português. O Start era uma mistura de rivais: o Dinamo e o Lokomotiv, ambos de Kiev.

A intenção dos ex-profissionais ao formar o time era a de encontrarem no campo uma forma de resgatar alguma unidade, alguma identidade e alguma esperança. Diante do horror do nazismo, a rivalidade clubística, em vez de afastar, os uniu.

A princípio o desejo era apenas o de bater uma bola e reunir amigos. Mas os jogadores eram muito bons e ganhavam todos os jogos que disputavam, atraindo cada vez mais público. Foram então chamados a disputar a Liga local, uma decisão difícil porque a liga era mantida pelo exército nazista. Quando por fim toparam entrar no campeonato, o fizeram usando uniformes vermelhos como forma de marcar suas posições.

O Start seguiu ganhando tudo o que disputava e começou a chamar a atenção das lideranças nazistas. No dia 9 de agosto o Start jogou contra um time formado por soldados nazistas.

O juiz, um oficial da polícia nazista, foi ao vestiário soviético antes da partida avisar que os jogadores do Start deveriam fazer a saudação nazista ao entrarem em campo porque o estádio estava cheio de oficiais, alguns de alto escalão.

Os soviéticos escutaram sem dizer nada e, quando o juiz saiu, decidiram que não fariam a saudação que o tal Adriles não se acanhou em, 80 anos depois, confortavelmente executar durante um programa da Jovem Pan.

Com a bola rolando, o juiz, como era de se esperar, deixou os nazistas baterem livremente. Ainda assim, o primeiro tempo acabou com o placar de 3x1 para os soviéticos.

Durante o intervalo, no vestiário soviético, um oficial alemão ordenou que o Start entregasse o jogo. Outra vez, o time escutou em silêncio e nada respondeu.

Voltaram para o segundo tempo e o placar final foi de 5x3 para o Start, com um requinte de crueldade no último minuto de jogo, que foi o de não chutarem para as redes nazistas uma bola depois de terem driblado o goleiro alemão. Na ocasião, o jogador do Start, diante do gol vazio, parou e deu um bico na bola em direção ao meio de campo.

Os soviéticos saíram vivos de campo, mas não permaneceram vivos por muito tempo. Algumas semanas depois, seriam presos e assassinados pelos nazistas.

O nazismo que dizimou tantas e tantas vidas, entre elas a de judeus, comunistas, homossexuais, pessoas com deficiência e ciganos, deve ser, a cada nova tentativa de se reorganizar, dilacerado de forma imediata em todas as instâncias, em todas as esferas, em todas as dimensões. Nazismo não se debate; nazismo se combate.

Essa e outras histórias estão no livro "Como o Futebol Explica o Mundo", do jornalista americano Franklin Foer, e, se não me engano, também no maravilhoso "A Dança dos Deuses", de Hilario Franco Junior.