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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

CBF e clubes precisam fazer campanhas contra LGBTfobia o ano inteiro

Torcedores se beijam em foto de campanha da USP e da Prefeitura de São Paulo contra a homofobia - Nelson Caetano
Torcedores se beijam em foto de campanha da USP e da Prefeitura de São Paulo contra a homofobia Imagem: Nelson Caetano

Colunista do UOL

25/03/2021 16h38

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"Ah, que chatice. Não pode mais xingar o juiz de viado nem dentro do estádio? Sai pra lá. Vou xingar como eu quiser". Até outro dia, eu era a pessoa que também me referia ao juiz chamando ele de viado na tentativa de ofender. E eu também pouco entendia sobre por que talvez eu devesse mudar meus hábitos.

Mas estamos enfrentando tempos brutos e que exigem que cada um de nós mergulhe dentro de nossas consciências para entender como podemos sair disso. Diz o velho ditado que qualquer revolução começa com a nossa própria transformação. Não há como mudar o mundo se a gente não fizer a dura tarefa de se olhar no espelho antes.

Claro que cada um de nós tem a nosso respeito opiniões muito favoráveis. Cada um de nós se acha justo, decente, bom. Só que quando a gente começa a se investigar, e não tem medo de ir mais fundo, começa também a ver que estamos todos - sem exceção - infectados de preconceitos.

Não teria como ser diferente. Somos produtos do meio em que vivemos. E o meio em que vivemos é bastante específico sobre as formas de vida que são corretas, as que são incorretas e as que são execráveis. O meio em que vivemos diz que existe um gênero que é o universal (o homem), uma pele que é a universal (a branca) e uma sexualidade que é a universal (a heterossexual). Qualquer coisa diferente disso é tratado como "identidade", "fraqueza", "desvio".

Ser homem, branco e heterossexual é uma identidade como qualquer outra, mas isso não é dito. O que também não é dito é que não existem identidades certas ou erradas. Existem identidades diferentes. Mas como tomamos preconceitos na mamadeira eu cresci achando que jamais poderia levar a vida que eu gostaria de levar, que era a de amar publicamente uma outra mulher, quem sabe me casar, quem sabe ter filhos.

E mesmo depois de conseguir me assumir gay e fazer quase todas essas coisas eu ainda assim me permitia ir a um estádio e gritar que o juiz era viado - e, pior, acreditando que com o grito eu estava xingando ele.

O problema do preconceito é que ele está tão internalizado na gente que podemos passar uma vida sem saber disso e achando que tá tudo bem com a gente. Por que não pode, então, chamar o juiz de viado?

Primeiro porque se sua LGBTfobia estiver mesmo totalmente desconstruída você vai entender que isso não é xingamento. Depois porque palavras importam, palavras têm efeito poderoso e ao seguir reproduzindo o preconceito a gente está reforçando uma estrutura de poder que, no fim do dia, vai ser a mesma que move o porrete na mão do PM que vai entrar na comunidade em busca de "suspeitos".

O racismo, o machismo e a LGBTfobia são três alicerces desse sistema. Enquanto estivermos separados, enquanto olharmos uns aos outros como inimigos potenciais, enquanto acreditarmos que existem formas de vida certas e formas de vida erradas, são os donos desse poder que seguirão lucrando e festejando.

O Brasil é o país que mais mata LGBTQs no mundo e também o que mais consome pornografia LGBTQ. Esses dois dados confrontados dizem uma brutalidade sobre quem somos, e sobre nossos desejos reprimidos. Quando estivermos desconstruídos de nossos preconceitos entenderemos que estamos juntos nas arquibancadas da vida. E que, juntos, a gente pode virar esse jogo. Que é o jogo que trouxe a gente para esse lugar de separação, de medo, de desamparo, de lideranças perversas, fascistas e genocidas.

Nesse dia nacional do orgulho LGBTQIA+ é importante sim que os times de futebol se manifestem nas redes sociais em apoio às formas diferentes de vida. Mas é pouco, é muito pouco. CBF e clubes precisam fazer mais. Precisam fazer campanhas contra machismo, racismo e LGBTfobia o ano inteiro.

Precisam fazer com que o clube seja um ambiente seguro para que, eventualmente, um jogador possa se sentir confortável para assumir sua sexualidade (vocês não acham que todos os jogadores profissionais de futebol do Brasil são hétero, né?), precisam estabelecer regras éticas que possam ser passadas ao torcedor, uma cartilha de códigos de conduta.

Empresas de mídia precisam contratar mais pessoas negras para comentarem futebol, precisam trazer ainda mais mulheres para frente das lentes e também precisam incluir pessoas abertamente homossexuais. Representatividade importa porque é assim que se constroi respeito e dignidade. E a luta é uma luta só: não se separa a luta anti-lgbtfobia da luta contra o racismo e da luta contra o machismo.

Não sou ingênua a ponto de achar que essas coisas bastam, e que se tudo isso foi feito na sexta, no sábado acordaremos num mundo melhor. Mudar o mundo não é um evento; é um processo. Todos os passos e etapas são importantes. Por isso considero fundamental a manifestação dos clubes a favor da igualdade de sexualidade mesmo que apenas nas redes sociais, assim como foram fundamentais as torcidas organizadas gays de Grêmio e Flamengo na década de 80.

Ninguém conquista nada sozinho e estamos ainda em construção de um mundo melhor. Termino com Eduardo Galeano: somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos.