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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Cuca não é a vítima na história de violência sexual na Suíça

Cuca falou sobre o caso de violência sexual ocorrido há 34 anos - Ivan Storti
Cuca falou sobre o caso de violência sexual ocorrido há 34 anos Imagem: Ivan Storti

Colunista do UOL

03/03/2021 12h37

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Conheci Cuca pessoalmente num estúdio do SporTV no Rio em 2006. Fizemos juntos um programa e depois voltamos no mesmo táxi para nossos hotéis. Cuca é um cara gentil, tem a fala mansa, é educado e, no táxi, conversamos sobre esse jogo que a gente ama de forma totalmente igualitária. Descobrimos muitas ideias que temos em comum, rimos, reclamamos do comportamento da seleção brasileira na Copa daquele ano.

Em nenhum momento ele me tratou com paternalismo, ou foi arrogante ou tentou me explicar coisas a respeito do futebol como quem fala com uma criança - atitude comum a muitos homens que dialogam com uma mulher sobre o jogo. Guardo desse nosso encontro a melhor impressão possível. Mas o machismo é um suco que a gente toma na mamadeira e que está nas nossas correntes sanguíneas: na de homens, na de mulheres, na de crianças. É bastante difícil a gente se deseducar dele, e a atitude requer atenção, esforço e disciplina.

Cuca e eu somos da mesma geração. Uma geração que cresceu, como tantas outras, objetificando mulheres. Homens eram - e em larga medida ainda são - incentivados a perder a virgindade o mais rapidamente possível, da forma que for. Corpos femininos, fomos ensinados e ensinadas, existem para serem penetrados.

Um "não" muitas vezes é um "sim" envergonhado, ainda dizem por aí. Uma mulher que bate a sua porta num quarto de hotel com a "desculpa" de pedir um souvenir do time está, na verdade, se oferecendo sexualmente. Mulheres existem para satisfazer o desejo sexual masculino e para gerar filhos. Tudo bem que estamos nos aventurando em outras áreas, somos repórteres, setoristas, comentaristas, radialistas, narradoras - mas a gente existe mesmo é para transar e procriar.

Homens conseguem enxergar a gente em dois territórios na vida, e nada além deles: putas ou santas. As putas estão se oferecendo a você do lado de fora da porta; as santas fazem o café da manhã, cuidam da arrumação da casa, têm filhos, levam e buscam os filhos na escola, cuidam de seus maridos quando eles voltam do trabalho - a despeito de elas mesmas trabalharem também fora dos lares.

No vídeo enviado a minha amiga Marília Ruiz, em volta de Cuca a gente via as santas da vida dele. Acusação de estupro é coisa séria. Acusação de estupro envolvendo menor é coisa ainda mais séria. Cuca diz no vídeo que "não é um cara do mal". Não se trata de ser do mal ou do bem, todos somos habitados por sombras e demônios. Se trata de lutar contra eles. Se trata de perceber que tipo de estruturas de poder nos constituem. E não custa lembrar que temos na presidência um genocida que se diz fiel a Deus e um cidadão de bem.

Se trata também de olhar para dentro e perceber que podemos cometer monstruosidades - o estupro uma das maiores - e voltar desse lugar tão sombrio para um de regeneração, de responsabilidade, de perdão. Desde que reconheçamos o crime.

Fomos doutrinados e doutrinadas a acreditar que o perfil do estuprador é aquele corpo negro que nos encontra numa esquina tarde da noite. Mas estupradores são nossos amigos, colegas de trabalho, irmãos, pais, tios, primos. São aqueles caras que a gente acha bacanas, com quem a gente troca uma ideia, que a gente admira.

No Brasil existe um estupro a cada oito minutos. Enquanto você lê esse texto uma mulher foi estuprada. E esses dados são sub-notificados porque muitas de nós temem relatar, ou sentem vergonha em falar sobre isso. As que têm coragem de relatar muitas vezes voltam a ser oprimidas na delegacia.

Estupro é tocar com intenções sexuais o corpo de uma mulher que não quer ser tocada, e não apenas forçar a penetração. É tirar a camisinha durante um ato sexual consentido. É seguir transando mesmo quando, no meio do sexo, ela diz que não quer mais. É levar para a cama uma mulher que bebeu e não está mais em condições de decidir conscientemente se quer ou não quer aquele ato.

"Imagina se fosse sua filha, sua irmã, sua mãe", muitos homens dizem para se colocar ao nosso lado. Mas essas declarações não nos servem. Somos sujeitos que existimos plenamente e devemos ser respeitadas na totalidade de nossa integridade subjetiva - e não porque somos mães ou irmãs ou companheiras.

Não queremos um pedestal, e é esse lugar de admiração que diz "vocês são lindas e fundamentais e importantes e adoráveis" que faz com que alguns corpos femininos possam ser violados, abusados, dilacerados enquanto outros - os das santas que todo homem tem para chamar de sua - estejam sendo protegidos.

O que vocês talvez não saibam é que os mesmos corpos que vocês elegem como santificados e acham que estão protegendo são abusados nos metrôs, nas festas, no trabalho, nos shows por homens igualzinhos a vocês e que, depois disso, voltam para suas santas em seus doces lares. Somos santas, somos putas, e somos tudo o mais entre esses dois territórios. Podemos ser santas pela manhã, putas ao entardecer ou vice-versa. Temos desejos e sonhos. Mas quem diz o que a gente é somos nós mesmas e não o julgamento machista de uma sociedade treinada para nos objetificar. Todas as mulheres que conheço já sofreram algum tipo de abuso sexual. Todas.

Cuca está cercado por mulheres que ele ama. É bastante provável, estatisticamente falando, que alguma delas já tenha sofrido algum tipo de violência sexual que ele mesmo não saiba. Cuca diz que a acusação aconteceu há muito tempo e que ele não aguenta mais viver com isso. Imaginem o que sente a menina, hoje uma mulher, que foi à delegacia contar que havia sido estuprada por quatro homens num quarto de hotel.

A gente segue nossas vidas, mas essa cicatriz fica. Cuca se diz chateado, constrangido com o ocorrido. Diz que não quer ser mal falado. O foco não é você, Cuca. O foco é o machismo que, todos os dias, a cada oito minutos do dia, dilacera nossas vidas para sempre.

Mas, claro, existem falsas acusações de estupro. Elas giram, segundo a escritora Rebecca Solnit, em torno de 5%. Ou seja, para cada 100 acusações, cinco são falsas. É um número muito baixo e, numa acusação, a palavra da vítima vale como prova porque, por motivos óbvios, é bastante difícil encontrar testemunhas. E mesmo quando existem testemunhas, como no caso da acusação envolvendo Cuca, elas podem ter participado do ato.

Que um dia um homem acusado de estupro tenha a decência de se responsabilizar pelo que fez e dizer: Estuprei, hoje sei a gravidade do que fiz, me arrependo e até o ultimo dia da minha vida vou lutar para destruir o machismo e os monstros que me habitam.