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Por que Fifa erra ao "proibir" braçadeira em defesa de direitos humanos

Gabriel Coccetrone

21/11/2022 09h00

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Um encontro entre representantes da FIFA e Inglaterra foi realizado neste domingo, 20 de novembro, para discutir o uso ou não de símbolos políticos não aprovados pela entidade máxima do futebol. O que antes era apenas um aviso, agora se tornou uma proibição expressa. O atacante e capitão da seleção inglesa, Harry Kane, não poderá usar a braçadeira com as cores do arco-íris e o slogan 'One Love', ação essa que busca demonstrar apoio à comunidade LGBTQIA+. A informação foi divulgada pelo 'The Telegraph'.

Segundo o jornal, Kane e/ou outros jogadores que descumprirem a determinação, estão sujeitos a serem advertidos com cartões. Ao Lei em Campo, especialistas afirmam que uma punição nesse sentido de fato poderia acontecer. Especialistas ouvidos pelo Lei em Campo explicam que a Fifa está usando da força de regulamentos internos para frear o movimento dos atletas.

"A federação internacional pode recomendar aos árbitros a aplicação de cartões no caso de uso indevido de equipamentos ou imagem. É uma recomendação semelhante àquela feita para os casos de uso de máscara em comemoração de gols. E não é apenas o cartão amarelo que pode ser aplicado. Após o cartão de advertência, caso o atleta insista em manter o item pode receber outra advertência e ser expulso da partida", explica Vinicius Loureiro, advogado especializado em direito desportivo e colunista do Lei em Campo.

Igor Serrano, advogado especializado em direito desportivo, entende que "se tem amparo no regulamento da FIFA e da Copa, sim, é legal. Porém, totalmente ilegítimo e imoral."

No entanto, apesar da possibilidade, especialistas entendem que essa punição não seria correta.

"O debate é bem sensível, colocando em tona o tema do relativismo cultural. A FIFA optou por realizar a copa no Qatar por motivos claramente econômicos, mas agora sente na pele a dificuldade de conciliar compromissos daquela natureza com a cultura local. O episódio da venda de cerveja foi bastante ilustrativo. A FIFA, em tese, poderia punir os atletas, mas não deveria fazê-lo, até porque a causa LGBTQIA+ não contraria, mas reafirma os valores do esporte. A questão é que quando se tem um elefante sentado no sofá, é muito difícil não falar sobre ele. Caso as Federações resolvam 'peitar' a FIFA, alternando a faixa do 'One Love' entre seus atletas, o constrangimento será ainda maior. O desejo de silenciar o movimento só irá amplificá-lo. Por outro lado, a cultura local dos anfitriões, mesmo que em contradição com os valores ocidentais de proteção aos direitos humanos, de alguma maneira não pode ser totalmente desprezada, caso se adote a perspectiva do relativismo cultural. A questão é de difícil conciliação. Do ponto de vista ideal, a copa não deveria ter sido realizada no Qatar. A FIFA certamente já chegou a essa conclusão, tardiamente", avalia o advogado Carlos Henrique Ramos, especialista em direito desportivo.

"Historicamente, um nome de uma utópica 'neutralidade esportiva', o futebol e o movimento esportivo puniam manifestações políticas, mesmo aquelas em defesa de direitos humanos. Um erro pela natureza do esporte e uma ilegalidade, uma vez que ninguém pode ser punido por defender direitos protegidos universalmente", afirma Andrei Kampff, jornalista, advogado especializado em direito desportivo e colunista do Lei em Campo.

Carlos Henrique Ramos ressalta lembra que a "FIFA acata certos paradigmas da Carta Olímpica, que tais como o da neutralidade, que visa a evitar que os valores do esporte possam contaminados por questões políticas, morais, religiosas, etc".

"Ocorre que o próprio COI já vem relativizando a norma recentemente, permitindo que atletas, sob certas condições, possam manifestar juízos de valor sobre diversas questões nos espaços esportivos. A FIFA também, quando pressionada, já abandonou a neutralidade quando, por exemplo, excluiu a Rússia das competições que organiza por conta da Guerra contra a Ucrânia por motivos de natureza política, diretamente alheios ao esporte. Agora mesmo, quando no contexto da Copa do Qatar a FIFA manifesta quais movimentos ou temas podem ser levantados pelos atletas, ela própria, novamente, abandona o paradigma da neutralidade. E a entidade máxima do futebol sempre fez questão de dizer que o 'futebol poderia o mundo'", acrescenta.

Andrei Kampff explica que "até como forma de proteger a autonomia, o futebol tem reforçado compromisso com direitos humanos via autorregulação. Basta dar uma olhada no estatuto da entidade, a 'constituição' do movimento privado do futebol. No art 4.2, a entidade se declara neutra em matéria política e religiosa (tentando proteger a utopia da neutralidade esportiva). Mas, complementa, escrevendo que exceções se darão em casos que dizerem respeito aos objetivos estatutários da FIFA. Um pouquinho antes, o artigo 3 do estatuto diz que a FIFA protege direitos humanos. Ou seja, o esporte abraça e reforça o compromisso com as causas que os atletas irão defender no Qatar. Não vejo caminho para punição dentro do movimento privado do esporte".

Igor Serrano acrescenta que "a FIFA não deveria jamais punir algum tipo de manifestação que tenha como base a igualdade, a não discriminação e os direitos humanos. A justificativa da entidade seria uma utilização de item em desacordo com seu regulamento e padronização de uniforme. Mas sabemos que é apenas uma justificativa pela FIFA encontrada para "atender" o Governo do Qatar".

As seleções europeias que prometeram usar a braçadeira - Inglaterra, País de Gales, Bélgica, Dinamarca, Alemanha, Holanda e Suíça - estão preocupadas quanto a possíveis punições por parte da FIFA, que poderiam ir de multas até mesmo sanções esportivas para as federações, e decidiram recuar. Nesta segunda-feira (21), elas anunciaram que seus capitães não utilizarão a faixa com a mensagem para evitar que os jogadores sejam alvos de problemas disciplinares.

"A Fifa tem sido muito clara de que vai impor sanções esportivas se nossos capitães usarem as braçadeiras no campo de jogo. Como federações nacionais, não podemos colocar nossos jogadores em uma posição na qual poderiam enfrentar sanções esportivas, incluindo cartões. Então, pedimos aos capitães que não tentem vestir as braçadeiras nos jogos da Copa do Mundo", diz a nota oficial divulgada em conjunto pelas seleções.

O atacante Harry Kane, da Inglaterra, seria o primeiro jogador a usar a braçadeira com as cores do arco-íris nesta segunda-feira, diante do Irã. No entanto, horas antes da partida de estreia, as discussões envolvendo a campanha One Love ganharam força nos bastidores após a FIFA ressaltar a possibilidade de sanções. Diante disso, as seleções decidiram voltar atrás e desistir da campanha.

"Estamos muito frustrados com a decisão da Fifa, que acreditamos que é sem precedentes. Escrevemos para a Fifa em setembro informando nosso desejo de vestir a braçadeira One Love para apoiar ativamente a inclusão no futebol, e não tivemos resposta. Nossos jogadores e treinadores estão desapontados. Eles são fortes apoiadores da inclusão e irão mostrar seu apoio de outras formas", escreveram as seleções.

O regulamento da Copa do Mundo do Qatar diz que a faixa de capitão faz parte do equipamento fornecido pela FIFA para as seleções - como água que ficam nos bancos de reservas, os coletes aos reservas, as bolsas que os médicos usam quando entram em campo para atender jogadores lesionados.

Outro item do regulamento do Mundial diz que nenhum item do uniforme ou do equipamento das seleções pode conter mensagens políticas ou religiosas ou comerciais. As seleções que desrespeitam esta norma estão sujeitas a multa.

O Qatar está recebendo inúmeras críticas pelo seu histórico de problemas relacionados aos direitos humanos - como no caso dos trabalhadores imigrantes e da posição do país sobre os direitos das mulheres e de pessoas LGBTQIA+. O Código Penal do país inclusive proíbe a homossexualidade para homens e mulheres e prevê, como pena máxima, até o apedrejamento.

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