Julio Gomes

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BH, Recife, Valência, terapia e desesperança. Para que serve o futebol?

Eu ia a muitos jogos de futebol até meus 20 e poucos anos de idade, antes de fazer a transição de simples torcedor para jornalista, alguém envolvido com esporte. Nunca em caravanas, nunca fiz parte de torcidas organizadas, nunca me meti em briga. Mas xinguei bastante, perdi a voz, berrei e ofendi como se não houvesse amanhã.

Anos morando fora, o fundo do poço atingido pelo meu time, a mudança de vida com a chegada dos filhos, os horários da profissão, vários fatores me fizeram ir (bem) menos a estádios somente para torcer, sem compromisso de trabalho. Mas andei indo a alguns jogos da Lusa mais recentemente e foi curioso observar meu próprio comportamento.

Sim, xinguei muito esses dias. Xinguei o árbitro de Portuguesa x Palmeiras, agarrado ao alambrado. Xinguei alguns pernas-de-pau do meu time por cometerem erros grosseiros em campo. Xinguei a Federação e a CBF. Xinguei também ninguém específico, apenas para expressar minha frustração. Sempre dizendo aos meus filhos a velha frase: "Só pode aqui, tá bom? Na escola e em casa, não". Ficou claro para mim como o futebol sempre serviu, pelo menos para mim, como uma válvula de escape da vida. Uma arena onde você pode soltar os cachorros, desabafar. Uma sessão meia boca de terapia, em que você só fala, mas não ouve. E talvez isso seja bom, porque o controle da raiva passa por soltá-la da melhor maneira.

Será que o hiperativismo do brasileiro quando o assunto é futebol combina com a hiperpassividade com os problemas sociais do dia-a-dia. Bem, aqui talvez eu esteja exagerando na tese. Mas, pelo menos para mim, senti que a ausência do futebol me fez guardar e soltar raiva em lugares e pessoas erradas.

De qualquer modo, porém, já não me sinto mais confortável quando vejo tantos palavrões, principalmente quando os xingamentos vêm junto com alguma identificação pejorativa em relação ao adversário. Caipira, veado, baiano, favelado. Já ouvi de tudo, já fui no embalo diversas vezes, hoje me incomoda. Racismo eu nunca vi no Canindé. E nunca vi no Santiago Bernabéu. Não tenho as contas, mas são os dois estádios onde mais fui na minha vida - para torcer, o primeiro, para trabalhar, o segundo. Nunca vi mesmo, de verdade.

Racismo eu só vi uma vez na vida. Foi no Estádio Olímpico, em Porto Alegre, na final do Brasileiro de 1996. Uma mãe com um filho de uns 10 anos de idade imitavam um macaco e gritavam a mesma palavra em direção a um negro, com a camisa do Inter, que se juntou à torcida da Portuguesa. Aquilo me marcou muito. Anos depois, haveria o "caso Aranha". E, hoje, não há relatos de racismo explícito em jogos do Grêmio ou qualquer outro clube brasileiro.

O racismo é um problema estrutural do Brasil, gerado pela própria construção da sociedade. Há racistas "puros"? Claro que sim. Mas até eles têm guardado para si o que pensam. Têm disfarçado. Nosso problema mais latente é a violência em todos os níveis. A violência é absolutamente banalizada em nossa sociedade.

No Recife, semana passada, um bando quase matou jogadores de um time de futebol simplesmente por serem... de outro time. Será que alguém lá atirando pedras e bombas queria mesmo se tornar um assassino? Ontem, em Belo Horizonte, morreu um na briga de torcidas de Cruzeiro e Atlético, que sequer jogavam um contra o outro. Não há como colocar as emoções que o futebol desperta na conta destes dois casos. São "apenas" violência. O futebol é o ambiente que esconde essas pessoas. É o ambiente que "permite" que a selvageria encontre o espaço que ela não tem no dia-a-dia das pessoas - ainda que a violência esteja presente também no nosso cotidiano, e não me refiro somente a roubos, assaltos ou assassinatos, basta espiar o trânsito, a violência na tomada de espaços, a quantidade de brigas em bares ou baladas e também dentro de casa, o feminicídio.

O que o futebol "permite" - e não faz absolutamente nada para combater - é a violência de bando. As torcidas organizadas são o guarda-chuva perfeito para isso. E, como muitas delas estão envolvidas em outro tipo de "negócios", há muitos juízes, promotores, policiais, vereadores, deputados, dirigentes de clubes que não têm muito interesse em mexer no vespeiro. Seja porque estão envolvidos, seja por um legítimo medo de ver a família aparecer morta. Abrir a caixa preta das organizadas seria um ato de coragem. Que precisaria ser feito em forma de pacto, todos juntos, todas as esferas da sociedades, sem "mas" e "poréns", e admitindo que haverá baixas, sim, como efeito colateral. Guerra é guerra.

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Enquanto a sociedade não se movimenta para isso, o problema vai aumentando. Ouvi duas frases batidas recentemente.

1- "Vão esperar acontecer o quê, morrer um jogador?", após o episódio dos bandidos travestidos de torcedores do Sport para cima do ônibus do Fortaleza. E eu respondo: que diferença faz? É tão diferente assim o que vimos se houver uma morte? Não mudaria absolutamente nada, no meu ponto de vista. O absurdo é o mesmo. Essa pergunta é feita dando a entender que, se houvesse uma morte, o problema seria finalmente resolvido. Resolvam então, oras bolas. Não, ninguém está esperando uma morte para resolver o problema. Ninguém está tentando resolver o problema.

2- "Não há mais espaço para violência no futebol". What? Que frase bonitinha, né. Cuti-cuti. E que grande mentira proferida para fazer as pessoas se sentirem melhor e para preservar o produto.

A violência é nosso grande problema, mas pelo menos sabemos dele e não negamos o que vivemos todos os dias.

As cenas de racismo em Valência ontem e a reportagem trazida pelo grande Gustavo Hofman, da ESPN, me assustam demais. Conheço bem a Espanha e sei que há muito racismo lá e em outros países da Europa. Países que traficaram negros por séculos, mas que só agora, de algumas décadas para cá, convivem com a absorção deles na sociedade. E não só negros, mas pessoas de outras cores, raças, cantos do mundo que chegam para tentar uma vida melhor. Se o racismo no Brasil está muito atrelado ao classismo, na Europa ele é muito atrelado à xenofobia, a aversão a estrangeiros. Ele é, no entanto, menos estrutural do que aqui e mais personalizado.

As democracias estão em cheque, a revolução do mundo da comunicação deu voz a muita gente que ficava relegada ao próprio canto. E alguns sentimentos que antes ficavam guardadinhos estão sendo expostos sem vergonha alguma. É o que vimos nas arquibancadas de Valência. Pessoas chamando Vini Jr de "mono", com a certeza absoluta que isso não é racismo, apenas provocação de futebol. É a prova de que não basta um país ser desenvolvido e ter um bom sistema educacional, é preciso exagerar nas políticas afirmativas e antiracistas.

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Creio que muitas pessoas, na Espanha, no Brasil, no Mestalla, no Canindé, no Mineirão, na Ilha do Retiro entendam, como eu, que o futebol é um palco importante para sua própria terapia - a válvula de escape. Mas quem desenha a linha no chão em que fica claro que "até aqui se pode chegar, mas, se passar, é crime"?

Quando vejo as cenas de Valência e Recife, a morte em Belo Horizonte, as imagens e mais imagens lamentáveis que temos pelo mundo, a desesperança é total. Não vejo caminhos, não vejo linhas sendo traçadas, não vejo lideranças. E me pergunto para que mesmo serve o futebol. É triste, mas é isso.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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