Julio Gomes

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Por que Portuguesa x Palmeiras é e sempre será um clássico

Não é porque pouca gente ouve Mozart que deixou de ser um clássico. Não é porque ninguém mais tem vitrolas que o vinil deixou de ser um clássico. Não é porque entrou em decadência que o Centro de São Paulo deixou de ser histórico. Não é porque se pode ler tudo no kindle que os livros deixaram de ser importantes. Não é porque a Portuguesa virou um clube minúsculo no cenário nacional que vamos jogar no lixo a história maravilhosa do "Clássico das Colônias".

O Palmeiras, maior campeão de torneios nacionais, um gigante, uma potência (que passou por maus bocados), já apanhou bastante no Canindé. Mais do que em outros estádios importantes e contra camisas pesadas do nosso Brasilzão. Se duvida, pergunte aos mais velhos. Sequer é necessário ir ao teu avô. Basta falar com teu pai.

Mas não são os números para um ou outro que fazem deste um clássico do futebol brasileiro. São as histórias de quem já viu, sofreu, acompanhou, apreciou, de quem se fez jogador ou treinador, são os litros e litros de tintas em publicações, as vozes e vozes que falaram deste jogo.

Os jovens de hoje em dia têm um mal. É uma generalização, claro, mas que se aplica. Por isso se chama generalização. Os jovens preocupam-se pouco com a história. Captam pouco os contextos. Acham que o mundo sempre foi a porcaria que é hoje - que, imagino, eles não achem que seja uma porcaria. Vivem uma vida de atitudes e relações digitais. Não ficarei aqui dando de saudosista barato. Mas é preciso explicar a muitos jornalistas da nova geração e a todos os "millennials" algumas coisinhas.

É uma completa ignorância não usar o termo "clássico" para se referir a um Portuguesa x Palmeiras, como o que teremos hoje à noite, a partir das 19h45, no Canindé.

Se a história do Palmeiras sempre foi gloriosa, a da Portuguesa precisa ser dividida em duas. Houve uma Portuguesa grande no século passado e há outra neste. As gestões de pilantras ao longo de anos levaram ao clube à falência - não uma falência completa, é claro, senão as moscas não seguiriam lá disputando os pedaços de vocês-sabem-o-quê que sobraram. Algum dinheiro ainda tem, senão já teriam vazado. Mas o clube quebrou, nunca se recuperou do tapetão de 2013 e sequer tem série nacional para jogar. Só que um clássico não se constrói pelo tamanho de cada clube ou por quantidade de títulos. É um conjunto de coisas. Se o Palmeiras segue sendo competitivo e a Portuguesa, não, isso é simplesmente irrelevante.

Vamos contar um pouco desta história.

Portuguesa e Palmeiras já se enfrentaram 265 vezes e é surreal pensar que o jogo de hoje será o primeiro em 10 anos. Nunca os dois clubes ficaram tanto tempo sem jogar. Na última vez que jogaram, o Endrick tinha 7 anos.

Quando jogavam, nos velhos tempos, costumavam fazê-lo no Pacaembu, onde mais da metade das partidas entre eles foram disputadas. E isso se dava, principalmente, pelo fato de o Canindé e o Palestra Itália (antigo) não serem grandes o suficiente para receber os jogões que faziam os dois times de colônias da cidade. Curiosamente, este sempre foi um clássico do mandante.

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No próprio Pacaembu, onde se enfrentaram 144 vezes, os números mudavam completamente dependendo do mandante. Nos Palmeiras x Portuguesa, o Palmeiras teve 67,9% de aproveitamento. Mas, nos Portuguesa x Palmeiras, quem mandava era a Lusa, com 57% de aproveitamento. O jogo desta quarta é no Canindé. E, no Canindé, o domínio da Portuguesa foi ainda maior ao longo da história.

Foram disputados 24 jogos por lá, com 13 vitórias da Lusa, cinco empates e seis do Palmeiras. São pouquíssimos os estádios em que o Palmeiras tem um aproveitamento pior em sua história. Com um número relevante de jogos, somente no Beira-Rio, contra o Inter, e no Mineirão, contra o Cruzeiro.

Os 32% de aproveitamento do Palmeiras no Canindé estão abaixo dos 34% contra o São Paulo (Morumbi), contra o Grêmio (no antigo Olímpico) e contra o Flamengo (no Rio), dos 35% no Couto Pereira, dos 36% na Arena da Baixada ou contra o Botafogo (no Rio) e bem abaixo dos, por exemplo, 40% contra o Flu (no Rio) e na nova Arena do Grêmio, 42% em Itaquera, 46% na Vila Belmiro, os mesmos 46% no Rio contra o Vasco e em Minas contra o Galo.

É isso mesmo. Jogar contra a Lusa fora de casa sempre foi mais difícil para o Palmeiras do que jogar contra o Santos ou outras camisas importantes do Brasil fora de seus domínios. Em torneios oficiais, foram 40 vitórias da Portuguesa e 20 do Palmeiras quando o mando era rubro-verde.

Este é um clássico que já decidiu Torneio Rio-São Paulo, quando este era um verdadeiro campeonato brasileiro. É um clássico que já reuniu vários jogadores de seleção brasileira dos dois lados. Um clássico que já viu jogadores monstruosos vestirem a camisa de um e do outro, gente como Djalma Santos, Julinho Botelho, Luís Pereira e, mais recentemente, Evair ou Zé Roberto.

Em tempos de estádios com torcida única, o Canindé verá suas arquibancadas divididas e cheias, como muitas vezes aconteceu nos anos 90. A torcida da Lusa, acanhada, limitada a um espaço atrás do banco de reservas do mandante até o gol oposto à marginal. O resto do estádio estará pintado de verde e branco. Não vai ter briga. Vai ter ambiente. Vai ter rivalidade, vai ser escrita mais uma página da história. Vai ter futebol raiz.

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Certamente ninguém pensou nisso no deserto de ideias e ações que é a Portuguesa do Século XXI, mas Abel Ferreira deveria ser homenageado pelo clube que representa a nação do treinador adversário. Porque assim era e assim deveria ser. A rivalidade fica para as arquibancadas, o respeito e o reconhecimento deveriam imperar no terreno de jogo. Abel vai conhecer o clube português de São Paulo, o clube verde e vermelho, o clube onde comia-se bolinho de bacalhau e tomava-se vinho do lado de fora do estádio. O clube onde se vendia tremoço, em vez de batatinha industrializada.

Faz 12 anos que a Portuguesa recebeu o Palmeiras pela última vez. Ganhou por 3 a 0, diante de 7 mil pessoas. Dida estava no gol, o saudoso Ananias jogou demais, Moisés, que depois brilharia no Palmeiras, marcou um, e Bruno Mineiro fez dois gols para o time de Geninho. O Palmeiras tinha Luiz Felipe Scolari no banco e um time pouco condizente com sua história, um time que acabaria sendo rebaixado naquele ano. Foi a última grande vergonha palmeirense. E o último bom Brasileirão da Portuguesa.

Hoje, eu tenho três filhos e pouco cabelo. Não há mais vinho, bolinho de bacalhau, tremoço, jogadores e, possivelmente, não haja mais chances de a Portuguesa vencer um jogo contra o Palmeiras. Mas há a história. E história não se apaga. Se respeita.

Hoje à noite, tem clássico no Canindé. Quem tem saudades do futebol, deveria ir para lá.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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