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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pioneiro, ativista e inovador: o legado de Bill Russell na NBA e fora dela

Bill Russell recebe medalha da Liberdade de Barack Obama em 2010. Washington, DC - Chip Somodevilla/Getty Images
Bill Russell recebe medalha da Liberdade de Barack Obama em 2010. Washington, DC Imagem: Chip Somodevilla/Getty Images

31/07/2022 16h29

Em uma era de superlativos, onde nós temos uma pressa excepcional em declarar alguém o "melhor de todos os tempos", ou "um dos maiores de todos os tempos", ou simplesmente correr para colocar tudo em um contexto histórico, existem três superlativos que ninguém jamais vai chegar perto de tirar de Bill Russell, o lendário pivô do Boston Celtics que faleceu dia 31/07, domingo, aos 88 anos de idade.

O primeiro, e mais óbvio, é o de maior vencedor da história dos esportes americanos.

Em 13 anos de carreira profissional, Bill Russell venceu 11 títulos de NBA. Nenhum outro jogador —exceto seus companheiros de time nesses anos— tem mais que 7. Sob seu comando, os Celtics chegaram e vencer 8 títulos consecutivos entre 1959 e 1966. Mesmo antes de chegar à NBA, Russell já tinha ganho dois títulos universitários e uma medalha de ouro olímpica como amador, totalizando os 14 títulos que dão nome a esse humilde espaço. E, se não bastasse, os seus últimos dois títulos de NBA —em 1968 e 1969— vieram como jogador E técnico dos Celtics ao mesmo tempo.

Esses números, essa total e completa dominação de um time construído ao redor de um jogador, nunca vai ser equiparada, assim como esses 11 títulos em 13 anos que Bob Cousy certa vez chamou de "o maior feito da história dos esportes coletivos".

O segundo superlativo atribuído a Russell é, naturalmente, o de maior defensor de todos os tempos.

Russell praticamente inventou o conceito moderno de defesa na NBA. Antes, defesas se limitavam a marcar seus jogadores no chão, impedindo que chegassem onde queriam na quadra, mas o pivô teve uma ideia diferente. Ele percebeu que podia impactar muito mais o jogo marcando os arremessos depois deles serem dados, quando já estavam no ar a caminho da cesta, e que podia usar seu tamanho, capacidade atlética e envergadura para bloquear esses lances com facilidade. Nascia assim o conceito do "toco", tão comum no jogo de hoje —na verdade, talvez a base da defesa moderna do basquete— mas algo alienígena em 1957, e Russell era tão proficiente na prática que é normal, pesquisando relatos de jogos na época (onde, infelizmente, tocos não eram uma estatística oficialmente contabilizada), encontrar comentários citando que Russell tinha 12, 15 tocos em um jogo como se fosse a coisa mais normal do mundo.

Nos seus 13 anos de NBA, os Celtics tiveram a melhor defesa da liga em 12 deles, e Russell era um defensor tão dominante que nas palavras do seu ex-técnico Red Auerbach, Russell conseguia defender apenas com o som dos seus passos, tamanha a intimidação que sua presença criava sobre adversários.

Mas esses dois títulos são pequenos e quase insignificantes em comparação com o terceiro superlativo que Bill Russell merece: Russell foi o jogador mais importante da história do basquete.

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Retrato do legendário Bill Russell, maior vencedor da história do Boston Celtics e da NBA
Imagem: Dick Raphael/NBAE via Getty Images

Referência nas quadras e fora delas

Quando Russell chega à NBA em 1956, a liga simplesmente não tinha atletas negros como estrelas. A liga já tinha quebrado a barreira racial em 1950 com a chegada de Earl Lloyd, Sweet Clifton e Chuck Cooper, mas esses jogadores ainda eram amplamente vistos com preconceito e desdém ao redor da liga, jogadores menos inteligentes e capazes que os brancos, frequentemente boicotados ou sabotados pelos próprios técnicos ou companheiros.

Russell quebrou essa barreira ainda como calouro, levando os Celtics ao seu primeiro título e logo se estabelecendo como melhor jogador do planeta. A NBA viveu à sombra de Russell por 13 anos (e, como dito, 11 títulos) e, se quando ele chegou à NBA os atletas negros eram minoria e muitas vezes limitados a papéis secundários, quando Russell se aposenta, em 1969, a NBA era uma uma liga majoritariamente negra, comandada por estrelas negras, e racialmente integrada de uma forma que a sociedade americana como um todo ainda passava longe de ser.

E a importância pela igualdade racial de Russell vai muito além das quadras. Uma celebridade negra em um país que ainda tratava seus semelhantes como cidadãos de segunda classe —lembrando que estamos falando dos anos 50 e 60, quando os Estados Unidos ainda eram racialmente segregados por lei—, Russell vivia uma vida dupla, idolatrado dentro de quadra e discriminado fora delas até mesmo pela própria torcida dos Celtics e pelos moradores de Boston.

Nesse contexto, ele era um líder natural em um momento onde os próprios Estados Unidos viam um surgimento dos movimentos pela igualdade racial em todo o país. Russell marchou ao lado de Martin Luther King e se ergueu ao lado de Muhammad Ali quando esse se recusou a lutar no Vietnã, se tornando um dos maiores lutadores, ícones e símbolos da luta pelos direitos dos negros. Russell foi alguém que enfrentava o establishment branco sem recuar, que usava sua fama e celebridade como jogador para lutar pela melhoria da vida de milhões de outros ao redor do país, e se tornou a inspiração para toda uma geração de novos jogadores e cidadãos negros que continuaram lutando por melhoras nas condições de vida.

Transformação nas quadras

russell - Charles Hoff/NY Daily News Archive via Getty Images - Charles Hoff/NY Daily News Archive via Getty Images
Bill Russell, lenda do Boston Celtics, em ação pela NBA em 1957, contra os Knicks
Imagem: Charles Hoff/NY Daily News Archive via Getty Images

Nesse processo, Russell acabou moldando uma identidade que seria a base do próprio futuro da NBA. Provando que um jogador negro podia ser uma grande estrela no basquete, ele abriu a porta para nomes como Elgin Baylor, Oscar Robertson e Wilt Chamberlain seguirem seus passos. Esses jogadores em grande medida não apenas se inspiraram em Russell como atleta mas também na sua luta fora das quadras, se juntando a ele e carregando cada vez mais essa bandeira pela igualdade racial. E, conforme esses jogadores ascendiam para se tornarem a elite do basquete norte-americano e os grandes craques da NBA, foram eles que começaram a definir os destinos da liga, internalizando sua luta e transformando as batalhas pelas quais esses heróis passaram na identidade da própria NBA. Nós vemos isso até hoje, com a NBA sendo talvez a liga em todo o mundo onde suas estrelas mais se posicionam fora das quadras e lutam por mudanças.

E o timing também não poderia ser mais perfeito. Enquanto em escala nacional a luta pela integração ganhava força e corpo, a NBA, enquanto liga, também fazia o mesmo. A transformação que Russell e o elemento "vertical" do jogo trouxeram para a defesa (citado acima) logo levou a uma nova forma de se pensar e jogar o esporte. Não tardou para mais pessoas perceberem que jogadores que podiam dominar o ar com tocos, enterradas e bandejas tinham uma vantagem natural em uma modalidade na qual a altura sempre foi fundamental. Isso levou não só a um influxo grande de atletas (muitos deles negros) para a liga em uma tentativa de emular o jogo de Russell, mas o basquete em si começou a valorizar e usar mais desses elementos que, além de mais eficientes, adicionavam um elemento explosivo e plástico a um esporte que antes era excessivamente lento e redundante.

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Bill Russell assistindo a jogo do Boston Celtics
Imagem: Brian Babineau/NBAE via Getty Images

Essa nova forma de se jogar basquete se provou extremamente mais atraente para o grande público, e combinado com a personalidade de suas grandes estrelas e rivalidades dos seus principais times, logo foi o catalisador para o primeiro grande período de crescimento da história da NBA. Durante os anos 60, a liga parou de ter dificuldades financeiras e estar à beira da falência para, de repente, ser uma das ligas de maior crescimento financeiro e comercial dos Estados Unidos, se estabelecendo de vez como um produto estável e bem-sucedido e criando os alicerces que a NBA iria usar como base para se tornar a que conhecemos hoje: uma das mais importantes do planeta. Nos anos seguintes, outros jogadores como Julius Erving, Magic Johnson e finalmente Michael Jordan também iriam pegar o conceito da grande estrela que transcende as quadras que surgiu com Russell e levar em uma direção ainda mais comercial e lucrativa, criando o conceito de jogador-marca que temos hoje e alterando para sempre as dinâmicas de poder dentro do esporte.

Hoje, no mundo que se despede de Russell, você pode olhar para literalmente qualquer aspecto da NBA e vai ver algo que chega até nós diretamente através do legado do camisa 6 —dentro e fora das quadras. Mais do que seu maior vencedor, mais do que seu jogador mais importante, mais do que um dos maiores atletas da história, Russell foi a maior pessoa a passar pela National Basketball Association, e os efeitos transformadores da sua influência se sentem até hoje não só na liga mas na sociedade americana como um todo, quiçá em toda a forma como nos relacionamos com esporte ao redor do planeta.

Russell mudou o mundo de uma forma como poucos podem sonhar em um dia fazer, e tanto a NBA como os Estados Unidos se tornaram um lugar melhor e mais justo por causa dele. Ele morreu aos 88 anos cercado pela sua esposa e seus entes queridos, na sua casa e nos seus próprios termos, deixando para trás um legado ímpar dentro e fora das quadras, tendo tocado a vida de mais pessoas do que é possível contar e sendo uma inspiração para milhões.

Na morte, assim como em vida, Russell foi e sempre será o maior de todos.

Descanse em paz, lenda.