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OPINIÃO

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No Hall da Fama, o legado de David Ortiz transcende as quadras como poucos

David Ortiz quando atuava no Boston Red Sox - AFP
David Ortiz quando atuava no Boston Red Sox Imagem: AFP

25/07/2022 04h00

No último domingo, dia 24 de julho, David Ortiz, a lenda do Boston Red Sox, foi oficialmente imortalizado no Hall da Fama do Beisebol. Entrando nesse espaço sagrado logo no seu primeiro ano de elegibilidade, a honraria não poderia ser mais merecida, e o currículo de Ortiz fala por si só: um dos melhores rebatedores da sua geração, em vinte anos de MLB Ortiz foi eleito dez vezes All Star, sete vezes para o time de melhores rebatedores do ano (Silver Slugger), e tricampeão da World Series (a final da MLB), um de apenas quatro - ao lado dos titânicos Babe Ruth, Mickey Mantle e Reggie Jackson - a terminar a carreira com 500 home runs e 3 títulos ou mais.

Mas David Ortiz é daqueles jogadores cujo tamanho e majestade não podem ser capturados apenas com números e fatos frios. A história poucas vezes pode - como eu sei muito bem, tendo escrito um livro sobre a história da NBA - mas mesmo nesse contexto Ortiz é um caso à parte, e sua relação com o Boston Red Sox e sua torcida transcendem em muito os esportes e uma relação normal entre ídolo e fãs para ser uma das mais bonitas e tocantes de que se tem notícia nesse meio.

Para entender, voltemos um instante a 2003, quando David Ortiz chega ao Boston Red Sox. O Red Sox era, nesse ponto, a franquia mais torturada do beisebol ao lado do Chicago Cubs; oitenta e quatro anos antes, em 1919, o Red Sox - possivelmente o maior time da época - vendeu um jovem e promissor jogador do seu time chamado Babe Ruth para o New York Yankees, na época um time de pouca relevância, em uma movimentação que para sempre alteraria o equilíbrio do esporte: em Nova York, Ruth se tornaria um jogador que até hoje é amplamente reconhecido como o maior de todos os tempos no beisebol, e os Yankees sairiam da irrelevância para se tornarem o time mais vencedor da história dos esportes americanos, vencendo quatro títulos com Ruth e 27 no total desde então.

Já os Red Sox, desde a venda de Ruth, nunca mais tinham sido campeões; a Maldição do Bambino (apelido de Ruth), como ficou conhecida essa seca, não apenas significou que o maior campeão da MLB à época passaria os oitenta e quatro anos seguintes (e contando) sem ganhar um anel, mas esses anos também foram marcadas por derrotas traumatizantes quando o time parecia pronto para quebrar a escrita - a mais famosa dessas sendo a World Series de 1986, quando os Red Sox venciam o Jogo 6 por 5-3 (e a série por 3-2) na décima entrada do Jogo 6, a uma eliminação do título, só para ver os Mets empatarem e depois virarem o jogo quando uma bola rasteira de rotina passou entre as pernas de Bill Buckner, em um dos lances mais infames da história do esporte.

Em 2003, quando Ortiz chega em Boston, os Red Sox não estavam apenas acostumados a perder - e em particular serem o saco de pancadas dos Yankees, seus grandes rivais, e o time que nunca conseguiram vencer em playoffs desde então - mas esperavam a derrota acontecer da forma mais dolorosa possível. "Os Red Sox mataram meu pai e agora estão vindo atrás de mim", disse certa vez o jornalista Marty Nolan, representando o grande medo de uma nação: passar uma vida inteira acompanhando beisebol sem nunca ver seu time ser campeão.

A temporada 2003 acabou, é claro, da mesma maneira: com o Red Sox tendo a vantagem sobre os Yankees no Jogo 7 das finais de conferência, 5 a 2, um erro do seu técnico permitiu que os Yankees empatassem e depois vencessem o jogo com um home run decisivo. Um ano depois, em 2004, Sox e Yankees novamente se encontraram nas finais de conferência, e os Yankees logo venceram os primeiros jogos para abrir 3-0 na série, uma desvantagem que nenhum time na história jamais tinha revertido. Parecia que o sofrimento dos torcedores de Boston nunca ia terminar.

Mas então David Ortiz aconteceu.

Com os Yankees já considerados classificados no Jogo 4, o time de Nova York liderava o jogo por 3-2 na nona entrada, a três eliminações de mais uma World Series. Mas uma série de jogadas improváveis - um walk de Kevin Millar, o roubo de Dave Roberts e a rebatida simples de Bill Mueller contra o invencível Mariano Rivera - empataram o jogo e levaram a partida para a prorrogação, onde a lenda de David Ortiz começaria a ser escrita.

Na décima segunda entrada, Ortiz aproveitou um arremesso do arremessador dos Yankees e mandou a bola para o outro lado do muro, um home run que deu a vitória aos Red Sox e acendeu uma fagulha de esperança no coração do torcedor dos meias vermelhas de que talvez, só talvez, a série ainda não tivesse acabado.

No Jogo 5, a história se repetiu: os Yankees ganhavam o jogo nas entradas finais quando o Red Sox reagiu, primeiro com um home run (adivinhe!) de Ortiz e para logo depois empatar de novo o jogo contra Mariano Rivera. E, novamente na prorrogação, David Ortiz subiu ao bastão em um momento crítico. E o resto é história.

Agora com o momento da série, os Red Sox venceram o Jogo 6 e forçaram o Jogo 7 decisivo. O momento, naturalmente, trouxe de volta a tortuosa história da franquia; era a cara desse time marcado por 86 anos de fracassos chegar tão perto do impossível, só para entregar tudo no último momento. E, por alguns instantes, parecia que seria o caso: logo na primeira entrada do jogo, os Red Sox começaram atacando e tiveram a chance de abrir o placar, só para Johnny Damon ser eliminado em um erro bobo tentando anotar a primeira corrida do time. Mas não durou mais do que um minuto; David Ortiz subiu ao bastão e mandou o arremesso seguinte para a arquibancada em mais um home run decisivo, dando aos Red Sox uma vantagem que nunca perderiam mais.

A equipe venceu o jogo por 10-3, se tornando o primeira e até esse dia único time a reverter uma desvantagem de 3-0 nos playoffs da MLB (ou da NBA). Uma semana depois, sob um eclipse lunar, os Red Sox venceriam o Saint Louis Cardinals na World Series para conquistar seu primeiro título em 86 anos e quebrar de uma vez por todas a Maldição do Bambino. Ortiz e os Red Sox tinham feito o impossível.

E assim como a troca de Ruth em 1919, a virada sobre os Yankees em 2004 foi um ponto de inversão: depois de passar 86 anos sem vencer um título, os Red Sox venceriam quatro nos 14 anos seguintes, se tornando a mais vitoriosa franquia do século 21 e chocando os torcedores da própria franquia. Nas palavras de Bill Simmons após o terceiro deles, "eu nunca achei que veria um título dos Red Sox na vida; agora eu já vi três em dez anos!". Uma nova era tinha começado para a franquia.

Avancemos agora 9 anos no tempo, para 2013. A essa altura, os Red Sox tinham deixado as sombras do passado para trás; além de 2004, o time - novamente comandado por Ortiz - tinha vencido também o título de 2007. Os Sox tinham se tornado mais um time normal, no melhor sentido possível, e Ortiz já era uma lenda de Boston pelo seu papel nessa trajetória.

Em abril de 2013, dois terroristas usaram bombas domésticas para cometer um atentado na linha de chegada na Maratona de Boston, transformando um dos dias mais sagrados da cidade em um momento de horror e dor, matando 3 pessoas e aleijando tantas outras. Após a prisão dos terroristas, a cidade de Boston começou a tentar se recuperar através da sua união e espírito coletivo, com o neologismo "BostonStrong" sendo o slogan desse processo.

Uma semana depois, o Boston Red Sox - talvez o mais antigo e poderoso fator de união da cidade - voltou a jogar no seu estágio, o Fenway Park, após os atentados. Em uma cerimônia bonita, na qual sobreviventes e heróis foram homenageados em campo, David Ortiz - líder da equipe, o rosto da equipe, ídolo supremo do Boston Red Sox - pegou o microfone e, com uma camisa escrita "Boston" (ao invés de "Red Sox"), fez o discurso que iria definir para sempre seu legado.

"Essa é a p***ra da nossa cidade! E ninguém vai tirar a nossa liberdade!" disse Ortiz, sob aplausos gerais. Com 13 palavras - um misto de desafio e empatia, de força e resiliência, de amor e compaixão - David Ortiz, um homem que não é de Boston, que sequer é americano, se tornou o símbolo de toda a cidade e da sua luta por se recuperar. O movimento BostonStrong tinha ganho seu momento definitivo, e encontrado sua maior forma de expressão.

E, dessa maneira, o Boston Red Sox de 2013 - um time que não foi construído e não era esperado que brigasse por nada - se tornou a força catalizadora e de união do processo de cura da cidade de Boston. Foi nesse momento, também, que algo estranho começou a acontecer: os Red Sox começaram a ganhar, e não pararam mais. Mesmo sem outra estrela além de Ortiz, todos os jogadores fizeram sua parte, elevando uns aos outros e recolocando os Sox nos playoffs como legítimos candidatos ao título. E, quando parecia que esse conto de fadas tinha chegado ao seu limite nos playoffs, com o Red Sox perdendo por 1-0 na série e 5-1 no Jogo 2 para o poderosíssimo Detroit Tigers nas finais de conferência, David Ortiz novamente subiu ao bastão com o destino da equipe nos seus ombros. E só tinha uma única coisa que poderia acontecer nesse momento.

Ortiz fez o impossível. De novo.

Mais uma vez, o home run de Ortiz mudou os rumos da equipe; o Red Sox venceria 8 de 11 jogos (incluindo esse) contra Tigers e Cardinals para novamente vencer a World Series, sua terceira em nove anos, a terceira sob a batuta de David Ortiz. O dominicano ainda rebateria 68% (!!!) com dois home runs na World Series contra os Cardinals, sendo eleito MVP da final. Com o título, BostonStrong tinha completado sua jornada do inferno ao céu, fechado com chave de ouro esse processo da única forma que poderia: com seu símbolo levantando um troféu de campeão.

Ortiz ainda jogaria mais três anos em Boston antes de se aposentar como o atleta mais amado da história da franquia. E se Ortiz não esteve presente para a conquista do quarto título do time nos anos 2000, em 2017, ninguém tinha nenhuma dúvida que este só tinha sido possível por causa da transformação que o Red Sox tinha sofrido graças ao eterno camisa 34.

Outros jogadores que já passaram pela MLB foram melhores que Ortiz; melhores rebatedores, melhores defensores, com carreiras mais longas, mais vitoriosas, jogando por times mais dominantes. Mas não importa; o impacto transformador que Ortiz teve para o Red Sox, tanto dentro como fora das quadras, é algo que transcende em muito o esporte. Suas jogadas heróicas, seu carisma e o papel que ele ocupou durante o BostonStrong mudaram a cultura da franquia, a relação dos torcedores com sua equipe do coração, e deixou uma marca profunda em Boston que nunca vai desaparecer.

David Ortiz pode entrar no Hall da Fama como um grande jogador de beisebol, mas para toda uma cidade e uma comunidade, Ortiz representa algo muito maior, uma relação linda que ilustra o que tem de mais bonito nos esportes e na relação de torcida e jogadores.

A entrada no Hall da Fama, na trajetória mágica de Ortiz, é apenas um detalhe pequeno perto do resto.