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"Que estratégia a gente cria pra gente preta não morrer?", Roger Cipó

Roger Cipó, apresentador do "Preto à Porter" - André Lucas/Uol
Roger Cipó, apresentador do "Preto à Porter" Imagem: André Lucas/Uol

Alexandre Ribeiro

Colaboração para Ecoa, de Berlim, Alemanha.

28/08/2021 06h00

Roger Cipó, cria do bairro do Eldorado na periferia de Diadema (SP), é fotógrafo, escritor, comunicador, influenciador digital e esta semana estreou como apresentador. Junto ao humorista Hélio de La Peña, da historiadora Caroline Sodré e da modelo Loo Nascimento, Cipó apresentará "Preto À Porter", uma série original de MOV, a produtora de vídeos do UOL. O programa de variedades é dirigido por Rodrigo Pitta.

Com a participação de nomes como Gilberto Gil, Carlinhos Brown e Ícaro Silva, a séria conta com mais de cinquenta entrevistados entre Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro e Los Angeles.

Iniciado no Egungun, culto africano à ancestralidade, e no candomblé Ketu, o artista diademense Roger Cipó é o fundador da plataforma Olhar de um Cipó, onde ele retrata as religiões de matriz africana através da vivência e da fotografia. Além disso Roger Cipó também é o criador da Tindó, série de lives que realiza em suas redes para falar sobre afeto, relacionamento e sexualidade dentro de sua comunidade.

Cipó conversou com a Ecoa sobre vivências, memória, fotografia e, o principal, a sua estreia no UOL como apresentador de "Preto À Porter".

Um diretor preto, uma equipe preta, uma história preta. Na sua opinião a cor dos companheiros transforma a relação com o trabalho?

Em um país que foi estruturado pelo racismo cor define tudo. Parte do racismo é exatamente a hierarquização do poder a partir da questão da raça. O fato de ter uma equipe preta, uma direção preta, um roteiro preto, não quer dizer que a gente seja perfeito, não, mas faz com que a gente desequilibre a ação do racismo.

Porque não é prioridade para um diretor branco discutir, por exemplo, colorismo, [mas] é prioridade para a gente. O racismo é de grande prioridade na nossa sociedade, mas ele não é prioridade na discussão do programa. O que estamos discutindo no programa é que existem outras contribuições da população negra na arte, na dança, na moda, na estética, na cultura e que essa população vai muito além da tragédia do racismo. O mundo só não vê, só não celebra, só não valoriza [isso] porque o racismo é um impedidor. Gilberto Gil é um rei nosso. Precisa ser celebrado mesmo.

"Ah, mas tem cinquenta programas falando do Gilberto Gil". Se depender de mim vai ter cem, porque precisa mesmo. "Ah, mas a Conceição Evaristo". Faz duzentos também. Roger Cipó

Quais são as discussões específicas você gostaria de levantar no programa?

Me interessa interromper o genocídio da população negra. Minha prioridade é: que tipo de estratégia a gente cria para gente preta não morrer? Tem gente preta passando fome. O que a gente faz?

A gente está morrendo e é complexa a nossa condição, porque a gente morre pela polícia, a gente morre pela doença, a gente morre pela fome, mulheres negras morrem pela violência de gênero, homens negros também são violentados nesse Estado, nessa condição. A maioria das pessoas negras que evadem a escola são meninos negros de treze anos. Se não é o preto aos treze na escola, a gente não vai ter um homem preto de vinte na universidade. A gente vai ter esse moleque sendo morto daqui a pouco.

Para nós o racismo está dado. É essa estrutura que nos mata e marginaliza, mas também nós precisamos nos responsabilizar e agir pelo nosso povo, pela mudança. Só que eu não vou acabar com o racismo unicamente na internet. A gente acaba com o racismo trampando na rua com movimento social, movimento de base. Entendendo que existe a Coalizão Negra por Direitos, por exemplo.

Em entrevista, você contou que antes de trabalhar com fotografia, quase sempre seu ganha-pão foi outro tipo de atividade (professor de capoeira, redator, intérprete, relações internacionais). Acredita que essa bagagem te ajudará como apresentador?

A pessoa começa a ler o meu currículo, vê os cargos e pensa "Orra, Cipó, tá ganhando muito". Mas eu sou um homem preto, mano. Na maioria desses trampos eu estava ganhando o quê? Uns cem conto? (risos)

Eu já desenrolei coisas muito mais terríveis, tá ligado? Então isso aqui [o programa] eu desenrolo. Me dá mais três temporadas disso aqui e pode me colocar em qualquer plataforma, em qualquer canal que eu desenrolo. Sou um homem preto de trinta anos em um lugar que mata homens pretos como eu todos os dias. Sei que se der qualquer merda, posso morrer amanhã. Para mim dar certo é estar vivo.

Sou um cara que trabalhou de tudo isso aí, mas com dez anos de idade eu estava trabalhando em um lixão, fuçando em um lixão para catar plástico, metais para vender, mas também para buscar comida. É por isso que eu digo que a capoeira me salvou, porque a capoeira me mostrou que dava para fazer outra coisa. É uma pegada espiritual para mim. Me devolveu coisas da minha identidade.

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Roger Cipó, apresentador do programa "Preto à Porter" do Uol
Imagem: André Lucas/UOL

Você se considera "ponte"?

Eu não sei se eu sou ponte não, mano. A gente precisou se adaptar real. Eu tive uma formação diferente do que a que está posta para a maioria dos homens pretos como eu. Não são todos os caras pretos que saem de Diadema e vão para a Noruega como eu fui e que vai falar dois, três idiomas. Mas a gente sabe exatamente como é a vida da maioria desses homens, e a gente sabe o que é possível nesses outros lugares. Se eu quiser colar de moletom, ou quiser botar um terno, irmão, a gente vai desenrolar. Inclusive pelas violências que atravessavam a gente, a opressão. Por ter pegado as roupas emprestadas do primo. Foram essas coisas que deram repertório para a gente.

E como você sente a sua realeza nesse espaço?

Eu estou aprendendo muito. Sem modéstia nenhuma: eu sou muito pequeno. Eu vivo em um tempo que tem Conceição Evaristo. Que tem Gilberto Gil. Que tem Daniel Omontobi, que é meu pai de santo, meu sacerdote. Que tem Jurema Werneck. Que tem Mãe Equede Sinha da Casa Branca. Que tem Erica Malunguinho.

Eu apresento um programa ao lado de Hélio de La Penha, que é um ícone na história da televisão brasileira. Sou pequeno perto desse cara. E ser pequeno perto deles me faz feliz. Eu fico até emocionado de falar dessa galera também, porque eu cresci assistindo essas pessoas e aí acontece alguma coisa e eu estou em um sofá apresentando um programa ao lado desse cara.

Você acredita que a luta do movimento negro das décadas passadas consegue observar resultados?

Falando como criador de conteúdo, que circula entre pessoas que estão na internet, eu sou um tanto critico. Não gosto da expressão de "ocupar espaços". Nós, aqueles que são forjados pelos movimentos sociais, a gente entende que somos parte de uma luta que é maior. Maior inclusive do que aquelas coisas que a gente sonha para a gente mesmo. Que é maior do que essa história de "pretos no topo". A gente está no topo do que é a morte, no topo do que é doença, no topo do que é miséria no topo do que é cárcere. E isso está estabelecido para a gente. A gente não toma decisão que incide e que transforma a sociedade em direitos.

Alguns de nós se enganam nesse processo todo. Se engana porque tem uma base grande de seguidores e acha que pronto: "Eu sou o cara, sou referência. Questão racial fala comigo". Mas não tem o que hip-hop vai chamar de "rua". Não tem o que o movimento social vai chamar de vivência. Não tem porque se formou na internet. Esse é o grande perigo dessa nossa geração.

Todas as nossas ações são resultados históricos da ação do movimento negro brasileiro, do movimento negro unificado para trás também. A escola de samba também tem essa função social. Tudo isso é por conta da luta dos nossos mais velhos e é por eles que eu também fico pensando, quais são as nossas contribuições dos próximos trinta anos. Eu não trabalho para a minha geração. Eu trabalho para que daqui dez, vinte anos, eles não precisem traçar os caminhos que a gente fez, porque não foi fácil não.

Programas como "Preto à Porter" te fazem acreditar em mais "Eldorados para Duda e Júlia"?

"Um Eldorado para Duda e Júlia" é um trabalho fotográfico que Roger realizou para o Instituto Moreira Salles

Programas como o "Preto à Porter" são também um espaço de respiro. Um espaço onde as pessoas pretas podem enxergar o quanto elas são belas, potentes, realizadoras. Inclusive, a minha sobrinha Júlia é uma menina de dez anos que abriu uma barraquinha de venda de doce e pirulito. Ela precisa me ver com essas pessoas. Por que aí ela pensa "pô, eu vou lá também". Por acaso eu encontrei com uma ex-professora em um aeroporto e ela ficou muito, muito surpresa ao me ver no aeroporto. Ela não esperava que eu fosse chegar em um aeroporto. O que as pessoas esperam é que a gente não passe da infância, e depois que não passe da adolescência, e que se no caso conseguir se tornar um adulto se tornará na margem, será servente. E são através de programas como esse é que a gente está criando oportunidades.