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Por representatividade, Sher criou torneio de LOL só para pessoas trans

Ana Lumi será beneficiada pelo dinheiro arrecadado pelo evento de LOL só para pessoas trans - Créditos: Arquivo pessoal
Ana Lumi será beneficiada pelo dinheiro arrecadado pelo evento de LOL só para pessoas trans Imagem: Créditos: Arquivo pessoal

Camilla Freitas

De Ecoa, em São Paulo

28/01/2021 04h00

Quando foi à maior feira de E-Sports da América Latina, em 2015, Sher Machado conseguiu entrar no camarim para conhecer os participantes do campeonato do jogo League of Legends, o popular LOL. "Será que esse espaço um dia vai poder ser para mim?", foi o que ela pensou
quando se deparou, como descreve, com um ambiente totalmente branco naquela Brasil Mega Arena, no Rio de Janeiro. Sher é uma mulher trans e negra e, ali, ninguém a representava.

Aos 27 anos, quase seis depois daquele dia, Sher comemora a organização de seu próprio campeonato de LOL, a Copa Rebecca Heineman (CRH), dedicado exclusivamente para pessoas trans.

A disputa acontece amanhã (29), data em que se comemora o Dia Nacional da Visibilidade Trans. As inscrições já estão encerradas e foram gratuitas.

"O que eu estou fazendo é dar visibilidade para pessoas trans dentro do mês da visibilidade trans e também proporcionando um espaço saudável para que elas possam ser elas mesmas", explica a organizadora da Copa Rebecca Heineman.

Tudo aconteceu muito rápido. No fim de 2020, Sher recebeu uma proposta para criação de um projeto com a STrigi Manse, organização de E-Sports que se destaca por ser pró-diversidade. Ela aproveitou a oportunidade para desengavetar um regulamento que tinha escrito no início do ano, mas que, por falta de tempo, não tinha conseguido colocar em prática. "A priori, seria um campeonato aberto para pessoas pretas, LGBTs e mulheres no geral", explica Sher. "Fizemos uma reunião quando já estava chegando janeiro e pensei, então, que o campeonato poderia ser direcionado para pessoas trans porque é o mês da visibilidade trans". A ideia de Sher é que a Copa não seja passageira e que possa acontecer, quem sabe, anualmente.

Nenhum campeonato é só voltado para homens cis brancos, todos eles são mistos, e mesmo assim a gente não vê pessoas trans neles

Sher Machado, organizadora da Copa Rebecca Heineman

Você pode estar se perguntando quem é Rebecca Heineman e por que o campeonato leva o nome dela... Rebecca é programadora de jogos eletrônicos e foi a primeira pessoa a ganhar um torneio de E-Sports dos Estados Unidos. Um detalhe importante: ela é uma mulher trans. Sher, que não a conhecia até acompanhar a série "High Score" da Netflix, se surpreendeu com essa informação. Veio daí a ideia de homenageá-la no campeonato. Vale contar também que Rebecca é casada com Jennell Jaquays, veterana designer de games e também uma mulher trans.

"A gente mostra que pessoas trans sempre estiveram lá e que esse também é um espaço nosso", explica a idealizadora.

Torneio comprará equipamento para jogadora

O objetivo de Sher não é só garantir o acesso de jogadoras e jogadores a campeonatos, mas oferecer caminhos para que eles e elas possam ver nos games um modo de ganhar a vida. Por isso, parte do dinheiro arrecadado no torneio será destinado para comprar equipamentos para Ana Lumi, 23. Sem computador próprio, Ana tem utilizado o notebook da empresa para a qual trabalha para jogar. "Meu foco é ficar participando de campeonatos até chegar no nível para conseguir ser chamada para um time e para uma equipe porque esse é o sonho da minha vida", contou a jogadora.

Ser expulsa da casa dos pais deixou a jovem em uma situação muito difícil. Por vezes, Ana ficou sem energia elétrica, sem material para trabalhar e chegou a passar fome. Seus pais não aceitaram o fato dela ser uma mulher trans. Essa história, ela conta em um texto que escreveu para divulgar uma vaquinha online intitulada "Um PC para a Ana Lumi! <3".

"Meu pai sempre trabalhou na área de tecnologia, então, até ser expulsa de casa, eu tinha um computador. Quando fui expulsa, fiquei à mercê de jogar no celular", contou Ana a Ecoa. Durante o dia, ela desenvolve jogos eletrônicos para conteúdos EADs, e à noite, vive o sonho de ser streamer do jogo Valorant na Twitch. Streamer é uma pessoa que faz uma transmissão de jogos em alguma plataforma, nesse caso, a Twitch.

O próprio computador é o primeiro passo para Ana realizar seu sonho. "Nunca acreditei que o meu trabalho pudesse alcançar esse nível. Isso é muito gratificante porque é o reconhecimento do meu trabalho, eles sabem o potencial que tenho e o potencial que posso alcançar com equipamentos melhores. É uma sensação de gratidão imensa, não tenho palavras para falar o quanto eu sou grata a essa iniciativa", contou Ana sobre a ideia de Sher.

Workshops completam a programação

Rebecca - Divulgação - Divulgação
Rebecca Heineman é uma copa de LOL dedicada para pessoas trans
Imagem: Divulgação

Ana conheceu fundadora do torneio no projeto Wakanda Streamers, uma iniciativa da qual Sher faz parte e que é voltada para dar suporte para a comunidade de streamers negros. Além do Wakanda Streamers, Sher é embaixadora do projeto fotográfico Ceres Trans, que foi criado para enaltecer a beleza trans negra, além de ser secretária geral no Capacitrans. O projeto tem como objetivo a capacitação profissionalizante voltado para a população trans e travestis do Rio de Janeiro.

Fazer parte do Capacitrans fez com que Sher tivesse não só a ideia de criar um campeonato de LOL voltado para pessoas trans, como também trazer para o evento workshops profissionalizantes dentro do mundo dos games. O evento Workshop de League of Legends contou com três painéis dedicados a trazer dicas de como narrar, comentar e analisar LOL, ou seja, como se tornar "caster" [Nome dado aos membros da equipe de transmissão de algum E-sport] .

V Mantuano, além de se inscrever para a CRH, também participou dos workshops que aconteceram no último dia 22 de janeiro. Ela tem apenas 18 anos e, assim como Sher e Ana, começou a jogar bem cedo. "Os jogos tiveram uma importância grande para mim por eu poder ser outra pessoa, com outro nome e por ser fora da realidade em que eu vivia", conta.

Fiquei sabendo da Copa Rebecca Heineman pelo Twitter através de uma amiga. Achei a ideia incrível. Acho que foi uma das primeiras vezes que eu me senti representada dentro da comunidade de League of Legends

V Mantuano, participante da Copa Rebecca Heineman

O ambiente dos jogos eletrônicos não é muito receptivo para pessoas negras, LGBTQIA+ ou mulheres, conta Sher. Além da falta de representatividade, jogadores e jogadoras fora do padrão branco, cis e hétero costumam sofrer ofensas constantes. "A pessoa nem precisa saber que você é preta, ela já vai deduzir pela forma que você joga que você é negra e vai te atacar. Não tem câmera no jogo, mas ela deduz pela sua performance que você é negra e isso vem se você tem uma performance ruim", conta Sher.

Nesse cenário, V Mantuano entende a Copa Rebecca Heineman como um ambiente seguro. "Dentro de uma comunidade que muitas vezes é preconceituosa e tóxica, [a CRH] pode representar o começo de algo muito bonito e necessário, trazendo mais pessoas trans pro competitivo e aumentando até o interesse de outras pelo jogo. Também acho muito positiva porque mostra para outras pessoas como representatividade importa, e tenho certeza que vai abrir oportunidades para muita gente que antes não tinha muita voz".

A CRH contou com o apoio de parceiros para que se tornasse realidade, da gratuidade das inscrições, à equipe de narradores, comentaristas e analistas, e distribuição de premiações entre os quatro primeiros colocados. Você pode acompanhar o campeonato pelo perfil da STrigi Manse na Twitch a partir das 18h.